Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a
seu rosto um ar de mulher.
“Amor”, Laços de Família
Clarice Lispector
A Entrevista (1966), de Helena Solberg, afigura-se como o espelho no qual a realizadora questiona o seu ar de mulher. Em voice over, sete dezenas de outras mulheres, de rostos invisíveis, com a excepção de Helena e Glória Solberg, expressam as mesmas angústias, dúvidas e “incoerências”. Glória é a imagem da ficção, Helena e todas as outras mulheres, cujas vozes são o seu único meio de mostração, são a evidência documental. Situado entre o documentário e a ficção, num espaço intermédio onde a ambiguidade domina a linguagem cinematográfica, entre o Cinema Novo, já inaugurado, e o Cinema Marginal, ainda por vir, A Entrevista é considerado o primeiro filme do cinema brasileiro moderno de autoria feminina.
Os planos aproximados iniciais aos mais variadíssimos objectos de cosmética seguidos por um movimento de câmara ascensional que revela uma Virgem Maria simbolizam a formação burguesa e católica das mulheres que ouvimos, pertencentes à classe média do Rio de Janeiro, da qual Helena Solberg fazia parte. Divididas entre as instituições patriarcais e opressoras que, no geral, caracterizam as sociedades de então, e o questionamento dessas mesmas instituições, numa altura em despertavam um pouco por todo o mundo a luta feminista e o movimento pela libertação das mulheres, o seu discurso é atravessado por reflexões acerca do casamento, da educação, da sexualidade e do estatuto social e familiar da mulher. Ao contrário do uso tradicional do voice over no documentário, em A Entrevista a montagem sonora aproximadiscursos, muitas vezes antinómicos, que manifestam diferentes posições sobre estas questões, como duas faces inescapáveis da mesma condição, da mesma classe social. Tanto nos perdemos na vontade de emancipação em afirmações como “Eu gostaria de ser ativa, de fazer coisas. Mas não vejo bem um caminho. Talvez uma confusão de ideias”, como em ideias balsâmicas provenientes da construção social imposta à mulher em preceitos como “a mulher só é realizada quando se casa” ou “[a mulher deve ser] socialmente perfeita (…) Ela precisa ser culta, ler muito. Encher a vida com aulas, conferências, mas não se dedicar a um trabalho”.
Enquanto o jogo de oposições discursivas se constrói e destrói, estabelece-se a diferença de significados entre a imagem e o som através do olhar que acompanha uma mulher (Glória Solberg) num ritual de preparação para o casamento. O dia começa pela praia, sem que ainda nos seja possível adivinhar o seu destino, com uma atenção erótica pelos corpos que a câmara filma, expostos em tensão pela montagem numa troca de olhares que, de fictícia, apenas é visível ao espectador. De regresso a casa, a troca do biquíni pelo vestido de noiva retoma a imagem da mulher como um ideal de pureza e de virgindade que Deus entrega ao homem. A introdução da ficção através da narrativa visual é interrompida pela única entrevista, em sentido literal, que vemos em todo o filme, entre Helena e Glória Solberg, em que esta, entretanto despida do véu, inscreve nas suas palavras e na sua postura a aceitação da ambiguidade de ser mulher, a resignação perante a injunção da ficção sobre o real.
O gesto final de A Entrevista, constituído por fotografias da “Marcha com Deus pela Liberdade”, movimento conservador apoiante da ditadura militar brasileira de 1964, rompe com o objecto do filme, transportando-o para o intervalo (ou será que era tempo regulamentar?) temporal e contexto social da ditadura. Aí surge Meio-Dia, a segunda curta-metragem da realizadora e o seu primeiro trabalho dito plenamente ficcional. Influenciado pelos filmes Zero de Conduta (1933), de Jean Vigo, e 400 Golpes (1959), de François Truffaut, o filme elege as crianças como agentes de revolta perante a escola como instituição veículo da ordem repressiva estabelecida naquele período.
No muro da escola vê-se uma pixação (movimento de style writing transgressor, de genealogia autónoma em relação ao Graffiti, originário do Brasil e com maior peso em São Paulo) onde se lê “A ditadura é foda.”, um plano onde convergem os planos precedentes e procedentes, configurando-se como motivo principal dos mesmos. Primeiro, uma quase tentativa de suicídio por asfixia, sugerindo a impossibilidade de fugir e de ficar; depois, a troca da escola por um passeio que termina com um gesto radical, simultaneamente de saturação e libertação, os livros escolares atirados ao rio. Dentro da escola, o gesto é outro, o gesto é assumidamente político. Ao plano dos livros abertos a boiar no rio segue-se o plano dos livros abertos pousados nas carteiras da escola. De braço elevado e punho fechado, os primeiros planos dos rostos vigilantes e ameaçadores das crianças anunciam o início, durante a aula, de uma revolução e o fim da infância. Caberá aos alunos do recreio o desfecho dela, que se concretiza na morte violenta do professor, a qual representa, na micro dimensão da escola, o fim da mesma, numa alusão política ao Maio de 1968, e no espaço social macro, ou seja, no todo da sociedade, a procura pelo fim da ditadura. Livres pela sua acção radical e revolucionária, as crianças brincam alegremente no exterior ao som de “Ambiente de Festival”, música de Caetano Veloso censurada durante a ditadura, da qual ecoavam os primeiros instrumentos no início do filme, como prenúncio da revolução que viria. Da música, Do Maio de 1968 provém o emblemático verso da música e o seu lema – “É proibido proibir”.
Tal como em A Entrevista, exemplo do lugar que as mulheres habitam entre o dentro e o fora da história social, Meio-Dia situa-se entre o espaço da expressão institucionalizada, que é a escola dentro de muros, e o espaço da expressão livre, que são as ruas para lá dos muros, o espaço indeterminado onde habitam as crianças. Comum aos dois filmes encontramos como mediação entre o pessoal e o político o diálogo e acção colectivos, dos quais depende por inteiro a luta democrática pela liberdade e a emancipação que asseguram a agência de um povo. O alcance de sentido dos dois filmes, que extravasa as suas dimensões ficcionais para um domínio social e político mais alargado, coloca o trabalho inicial de Helena Solberg na proa do cinema moderno brasileiro e em pé de igualdade com o cinema hegemónico europeu.
Um encontro no passado entre Maria Roxo, trabalhadora sexual nascida em Moçambique, e Renata Ferraz, realizadora e actriz brasileira, ascende ao tempo presente sob o nome de Rua dos Anjos, a primeira longa-metragem de ambas e a última de Maria. No palco diáfano da intimidade, Renata e Maria entregam uma à outra ensinamentos dos seus ofícios, desvelando as singularidades da história de vida de cada uma para juntas se constituírem uma multidão, mesmo que Maria se tenha ido embora com tanta pressa…
O minimalismo da mise-en-scène dispõe os elementos necessários para o devir actriz-realizadora de Maria e o devir actriz-trabalhadora sexual de Renata. Duas cadeiras, uma cama, um espelho, um tecido rendilhado, e pouco mais. É este “pouco mais”, este resto, que se deita na cama, que espreita pela renda do tecido, que “olha” do espelho. É este resto que excede o espaço fílmico, tornando-se o máximo, o superlativo silencioso, de cuja presença se mostra Maria. É este resto que dá substância à tensão no jogo entre o esforço de aproximação e o refúgio da distância.
A união do universo da realização com o universo do trabalho sexual no mesmo palco, na mesma imagem reflectida no espelho, é o que, em última instância, faz delas realizadoras do mesmo filme. Maria tomou a câmara sem que nenhuma legitimação fosse precisa por parte de Renata, que, por sua vez, abraçou as diretrizes de Maria para reclamar uma vivência, um lugar, mesmo que apenas o do filme, num universo no qual nunca ultrapassou as paredes da representação. Tudo se passa como na preparação de um actor para uma peça, da qual a vida de Maria foi a mais real das encenações. Primeiro, o abandono de si, depois a representação, sob pena do peso de quem somos se tornar intolerável.
Se nos parece que o trabalho de actriz de Renata caminha em direcção ao encontro com a vida de Maria, como se já não se tratasse da interpretação de uma trabalhadora sexual, em sentido universal, mas da interpretação herdeira da história de Maria. Todavia, na relação entre elas, ainda que se mostre no filme como horizontal, impõe-se visível o abismo intransponível entre a representação e o real, o filme e a vida. Porque a própria vida está muitas vezes encarregue de distender os limites da nossa imaginação, que, nas palavras de Maria, “só vai até onde a gente quer”. Renata não pode imaginar a vida de Maria, ou de qualquer trabalhadora sexual, porque não a viveu. A distância que vai de uma para outra firma-se na crueldade a que a vida atirou impiedosamente Maria, ainda que a única medida de comparação para o sofrimento seja a subjectividade. Não obstante, o filme não normaliza a realidade de uma, Maria, nem radicaliza a realidade de outra, Renata. Antes, é a mediação da aproximação ao outro, qualquer coisa de intermédio, na intransponível distância que vai de mim para o Outro.
Sob a forma de entrevista, que Rua dos Anjos pede de empréstimo à tradição documental do cinema brasileiro, a subjectividade interpela o substracto ficcional do filme pela confidência. Maria conta-nos a sua vida, que em (quase) nada vota ao segredo, liberta do pudor da aparência, e Renata expõe, a pedido de Maria, um segredo imensurável, de que o tremor das mãos não esconde o medo. No final, é a confidência que lhes vai permitir reconhecerem-se uma à outra em toda a magnitude de serem aí, uma com a outra, no mundo, no filme. O gesto de criação cinematográfica advém desse reconhecimento para cumprir, no filme de Maria e Renata, o cinema como a arte que, nas palavras de Serge Daney, “nos deu acesso a outras experiências que não as nossas e permitiu-nos partilhar, mesmo que por breves segundos, qualquer coisa de muito diferente.”.
Rua dos Anjos não é um filme sobre Maria, mas antes uma aprendizagem partilhada da distância que cabe num “com”, um projecto cúmplice das duas, como o anuncia Renata no prólogo, necessário à força do desaparecimento precoce e inesperado de Maria: “Eu não quero fazer um filme sobre você, eu quero fazer um filme com você.” Perante este propósito, o filme alcança uma dimensão auto reflexiva sobre as possibilidades da sua própria existência enquanto trabalho inteiramente colaborativo, ao qual acresce uma maior responsabilidade ética em relação ao outro. Não deverá o olhar que procura a revelação do outro perante a câmara e faz dela o sujeito do filme interrogar-se acerca do que de si é testemunho dessa revelação e do que de si é mostrado em relação com ela?
Cátia Rodrigues
Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português
Coplas feitas sobre um êxtase de elevada contemplação in Poesias Completas de S. João da Cruz
Só por palavras um tanto toscas, de ambição poética, mas sem os gestos de lirismo próprios ao poeta, pode um participante do Doc’s Kingdom, ou, mais precisamente, esta participante, descrever a sua experiência. Na ausência de qualquer motivo que não o do limite da expressão linguística, apropriei-me do poema de S. João da Cruz, que o acaso quis que lesse nas primeiras horas de envolvimento com a paisagem circundante ao Rio Vez.
Gestos e Fragmentos (1982), filme de Alberto Seixas Santos, dá título à cúpula temática da edição deste ano do Doc’s Kingdom, convidando-nos ao mesmo exercício a que se propôs Seixas Santos aquando da realização do filme, lembrado por José Manuel Costa no texto de 2016 sobre o realizador, que se pode ler no jornal do seminário: “Gestos, fragmentos e grupo zero: o que este cinema dá a ver é também a sua própria matéria, sublinhando o concreto e a materialidade dos gestos tanto quanto do ato de filmá-los – sendo portanto coerente que, na altura em que o contexto pediu ao autor, como a todos, um ainda maior comprometimento social e político, este lhe tenha respondido interrogando os fundamentos e as relações éticas do acto de filmar.” Por outras palavras, à indagação sobre a natureza ontológica, que marca o cinema desde o seu nascimento e a cada momento da sua historiografia, e que parece insinuar-se mais e mais nas nossas preocupações, impôs-se, em cada um dos debates, uma outra pergunta – o que é a práxis cinematográfica?
O que está em jogo é somente uma interrogação “dos fundamentos e das relações éticas do acto de filmar”, usando as palavras de José Manuel Costa. Contudo, quem participou naqueles debates superou pelo diálogo a rigidez da singularidade do acto de filmar, durante décadas totalitária e totalizante. O que ali se discutiu, sobretudo à luz dos filmes de Alexandra Cuesta e João Vieira Torres, foi a possibilidade de outros actos de filmar a partir dos quais se geram uma multiplicidade de outros olhares e de outros sentidos, dos quais a práxis cinematográfica e, em última instância, o próprio cinema per se, podem ser o gesto por excelência.
Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty
A propósito do centenário de Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty, já o seminário ia no quarto dia quando o filme foi exibido na Casa das Artes de Arcos de Valdevez, um movimento inesperado que anunciou uma mudança de tom na programação despertou um outro modo de questionar a nossa relação com o cinema e, através dele, com o mundo. Deixemos de parte a discussão em torno da verosimilhança e veracidade da representação do povo Inuit no documentário de Flaherty, pois há muito se sabe que já então não viviam do modo como o filme sugeria. Mas não esqueçamos o motivo pelo qual a crença do espectador está colocada no centro do debate da representação no cinema documental desde os seus primórdios até à contemporaneidade, como a sinopse de Toré (2015) de João Vieira Torres anuncia: “Filmar um ritual de uma tribo da Amazónia aberto a forasteiros é aceitar que apenas vemos o que nos mostram e o que somos capazes de ver. Assim é Toré.” No que somos capazes de ver, reside a nossa crença e uma certa gramática do olhar. Mas pensemos, antes, naquilo que verdadeiramente continua a fazer de Nanook of the North um solo de reflexão contemporâneo sobre as possibilidades éticas do olhar e os limites da relação, ou, como foi referido durante um debate, da obsessão pelo outro.
Seria injusto, como bem o disse José Manuel Costa, tentar desculpar ou justificar Robert Flaherty pelo seu filme, sob pena de pretensiosamente retirar à obra a sua potencialidade expressiva e ao espectador o direito e o dever de exercer o seu pensamento para assim mobilizar o seu conhecimento a partir dela e para ela. Na medida em que existe, em todos os filmes, pelo menos os de natureza documental, uma obsessão pelo outro, também temos a presença da subjectividade daquele que, filmando o outro, se relaciona com ele numa partilha de intimidade e vivências conjuntas. Atentemos às palavras de Flaherty: “A minha necessidade de fazer Nanook vinha do modo como eu sentia esse povo, da minha admiração por ele, era isso que eu queria comunicar.” Não obstante atribuirmos a Flaherty a melhor das intenções no acto de filmar e de considerarmos, em linha com Rohmer e tantos outros, que “Nanook é o mais belo dos filmes”, não devemos esquecer-nos que, à luz dos nossos dias, esse mesmo acto de filmar assentava num modus operandi patriarcal e se concretizava por meio de um aparato técnico com motivos e efeitos colonizadores. Goradas ou não as vontades do realizador, pouco importa, Nanook of the North, cem anos depois, mais do que a aurora do documentário, pode impulsionar o início de uma discussão sobre os limites do modo como o cinema pode e deve olhar, interrogar e relacionar-se com o mundo.
Foi num gesto de antecipação da sessão de curtas-metragens que aconteceria à noite, após a sessão de celebração do 100º aniversário do filme de Flaherty, seguido de conversa com José Manuel Costa (não fosse este um dos filmes da sua vida) que Nuno Lisboa e Amarante Abramovici, directores e programadores do Doc’s Kingdom, trouxeram o presente e o futuro do cinema para debate. Entre os filmes projectados, dois seriam de maior importância para lançar sobre Nanook of the North tantos olhares e modos de olhar quantos o tempo que os distanciava deixou pluralizar – Beirut 2.14.05 (2008), de Alexandra Cuesta, e Mal di Mare (2021), de João Vieira Torres, assim como todos os outros títulos que constam na filmografia de ambos.
Ambos realizadores naturais da América do Sul, Alexandra Cuesta, do Equador e João Vieira Torres, do Brasil, através de filmes distintos tanto na forma como no conteúdo, reclamam para a sua obra um princípio em comum: como mostrar a subjectividade daquele que filma e daquele que é filmado se, ao contrário do que acontece com o sujeito ocidental, é o Outro no lugar do Eu? As novas perspectivas cinematográficas, e não só, sobre o sujeito e a possibilidade de nos constituirmos sujeito apresentadas nos seus filmes põem em causa o próprio conceito de subjectividade, na sua acepção ontológica ocidental, espalhando fragmentos por outros territórios, corpos, vozes, … Será através do cinema que eles ganharão uma outra forma e novos sentidos, porque, como escreveu Madison Brookshire num texto dedicado à obra da realizadora equatoriana, “(…) an image can be made of many and happens because of the others around it”. É a partir dos outros que cercam João Vieira Torres numa exposição apresentada na Biennale de Veneza, composta por obras de artistas negros, e da pergunta que o realizador coloca aos visitantes brancos: “How many people of color are in this room?”, que nasce assim Mal di Mare. Não seria o primeiro filme político do realizador que vimos no Doc’s Kindgom, mas era, sem dúvida, o seu gesto de mostrar politicamente mais vincado. Por sua vez, todos os seus filmes anteriores, muitos deles sobre amor, como o próprio afirma, e dotados de uma ternura, tantas vezes risível (quem não se rendeu à criança que assiste ao Planeta dos Macacos, o de 2011, no seu quarto em Crianças Fantasma (2016)), exigiam uma gramática do olhar que nela contivesse a vontade e os instrumentos precisos para descortinar a dimensão política a eles subjacente e que Mal di Mare torna visível e inescapável, ainda que sempre distante.
Uma outra dimensão da (inevitável) obsessão pelo outro interpela-nos em Babel: Letter To My Friends Who Stayed In Belgium (1991) quando, pela voz de Boris Lehman, se ouve o realizador a questionar-se (e a devolver-nos as questões) sobre o quão justo seria contar a sua história usando os outros (e os seus corpos) e não exclusivamente as suas vivências através da sua figura. Trata-se de um filme que gravita em torno do realizador, cujo constante adiamento do fim revela o quão difícil é, senão mesmo impossível, dar uma obra por terminada, sobretudo quando sofre de uma depressão e, consequentemente, se atira para uma incessante procura por uma reunião com a vida e o presente, numa luta contra a melancolia. Por isso, afirma que filma as coisas que estão a desaparecer, “(…) uma frase que ilustra o próprio acto de filmar: o registo de imagens e sons de uma realidade que está sempre a escapar-nos, e que, por isso, como que desaparece quando é filmada.” Neste sentido, encontramos na natureza do próprio acto de filmar um impulso melancólico que antecipa, intencionalmente ou não, a perda do objecto ou realidade filmada ou, como diria Agamben em Notas sobre o Gesto, “In the cinema, a society that has lost its gestures tries at once to reclaim what it has lost and to record its loss.”(Agamben, 2000: 53).
Em nenhum outro filme o peso do desaparecimento a que o futuro tudo veta se fez sentir como em Notes, Imprints (On Love): Parte I e Notes, Imprints (On Love): Parte II, Carmela (2020), de Alexandra Cuesta, nos quais cada gesto filmado corresponde depois a um gesto total ao qual a possibilidade de perda dá sentido. Existe nestes dois filmes, como noutros da realizadora, a capacidade fantasmática de tornar visível uma atmosfera de luto que envolve e se aproxima, através do olhar cinematográfico, dos gestos, corpos, cidades e casas por onde passou o seu quotidiano. Da melancolia do acto de filmar desponta o sujeito melancólico, para quem o vínculo afectivo apenas a memória, infalivelmente falível como ela é, pode reter.
Findo o Doc’s Kingdom de 2022, mais do que as imagens que a memória pôde cristalizar, são os gestos que ainda nos olham e ecoam por estas palavras. Se podemos culpar o cinema por fazer de nós um sujeito melancólico, ao Doc’s Kingdom cabe a culpa, e que bela culpa, desse sujeito que nos tornamos não poder continuar a não se exprimir nas dimensões ética e política – e não só estética ou ontológica. Um dever ético de sempre questionarmos qual a nossa relação com o mundo e de compreendermos que o nosso olhar deve constituir uma atitude ética e politicamente envolvida, dever esse ao qual o Doc’s Kingdom nos parece inteiramente devotado. Por isso, quando ali me vi pela primeira vez, na leitura dos versos que principiaram a experiência do seminário, um compromisso com ele nascia, um onde, de forma consequente, grandes coisas, daí a poucas horas, poucos dias, entenderia e sentia.
Lisboa, Outubro de 2022
Cátia Rodrigues
[Foto em destaque: Gestos e Fragmentos, de Alberto Seixas Santos]
“What I’m trying to do here is to celebrate the wonder of the imagery.”
Werner Herzog
Ainda antes da viragem documental definitiva de Werner Herzog com o filme Grizzly Man (2005), o fascínio do realizador por acontecimentos vulcânicos mostra-se, pela primeira vez, em 1976, com La Soufrière. Desde então, Herzog tem perseguido o prenúncio do factum da morte que ascende ciclicamente do núcleo do subterrâneo para o estrato material do visível. Poder estar diante da grandiosidade de uma catástrofe vulcânica que outra coisa é que não estar face a face com uma experiência de mergulho no empírico da transcendência?
Não é de espantar a admiração de Herzog por Katia e Maurice Krafft, dois vulcanólogos franceses, cujo amor um pelo outro andou de mãos dadas com o amor pelos vulcões até ao dia dos seus desaparecimentos. Como o próprio realizador anuncia no começo de The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft, o filme não trata de uma biografia do casal, no sentido descritivo, mas antes do advento do seu olhar cinematográfico a partir do que permanecia por ver. “Escrito no fogo”, como bem descreveu Tomás Baltazar, na apresentação do filme numa sessão única do DocLisboa’22, o mais recente triunfo no documentário de Herzog tem como intenção a celebração da magnificência das imagens e do seu potencial assombroso.
Nenhuma ou quase nenhuma das imagens de The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft foram filmadas por Herzog. Pertencentes ao espólio visual de Katia e Maurice, elas são testemunho de dois cientistas que, ao procurar registar um objecto de estudo para efeitos de investigação, se tornam cineastas, sem o saber ou pretender. À medida que o casal percorre o mundo, o que começa por ser imagens imponentes de erupções vulcânicas devém um olhar “mais humanista”, como o designa Herzog, dirigindo-se para os rostos das vítimas das “garras do diabo”, que estas catástrofes personificam na tragédia. Quem, para além de Herzog, que desejaria poder ter acompanhado Maurice e Katia no seu peculiar ofício, poderia dar a estas imagens a forma de um filme que fizesse justiça ao temor e tremor que delas emana? Tal como numa missa de homenagem aos falecidos, Herzog pede de empréstimo ao Requiem de Gabriel Fauré a atmosfera fúnebre, um tanto romântica, ainda que sempre penosa, para erigir, através da montagem, uma peregrinação estática, uma catedral de fogo e “pedras que caem do céu” a que deu o título The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft.
Katia e Maurice morreram a 3 de Junho de 1991, junto do Monte Unzen, no Japão, consumidos pelo fluxo piroclástico de um vulcão que escondeu as suas intenções até os surpreender com a cesura inescapável da morte. The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft é o seu mais majestoso legado e Werner Herzog o seu remanescente herdeiro.
Sobre o território periférico de Contagem, cidade do estado de Minas Gerais, no Brasil, André Novais Oliveira expande a aritmética do verbo e acto de habitar para uma alteridade composta por imagens, sons e gestos a que os seus filmes dão forma, matéria e tempo num diálogo entre cinema e paisagem, cinema e vida. Em Fantasmas, Pouco mais de um mês e Quintal o movimento de rompimento e alargamento eleva-se a fenómeno poético e alegórico.
Longe do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, dominante na produção de cinema brasileiro sobretudo até ao ano 2010, o realizador mineiro ajudou a definir um novo realismo, novo porque plural, sob o tecto da produtora Filmes de Plástico, que ele mesmo fundou com os realizadores Gabriel Martins, Maurílio Martins e o produtor Thiago Macêdo Correia. Desde 2009, a produtora tem-se afirmado no campo do Cinema de Periferia, no qual se inscrevem cada um dos seus nomes na historiografia do cinema brasileiro. Segundo Zanetti, o Cinema de Periferia caracteriza-se pela coexistência de uma dimensão interna, “que diz respeito à forma e ao conteúdo dos produtos audiovisuais em foco”, e uma dimensão externa, de viés político e social, “que diz respeito à posição simbólica ocupada por esses novos realizadores”. André Novais Oliveira, por sua vez, inverte e entrelaça o domínio de cada uma das dimensões, através de escolhas estéticas e narrativas que rompem com a distinção entre documentário e ficção e com o naturalismo expectável do Cinema de Periferia. Ao fazê-lo, o realizador coloca os seus filmes num lugar fílmico paradoxal entre uma interioridade social e uma exterioridade doméstica que construiu.
O seu primeiro filme, Fantasmas, é um filme de um só plano-sequência e de um só propósito. Na expectativa de uma aparição, ouvem-se dois amigos conversar, sem que nunca se lhes veja o rosto, até à tomada de consciência por parte de um deles da existência de uma câmara que aponta na direcção da bomba de gasolina do outro lado da rua. A essa tomada de consciência segue-se o enunciado do propósito do filme – vislumbrar um amor do passado com a câmara, a qual irá mostrar o seu regresso, repetidamente confirmado na montagem. Vislumbrado esse amor, ao invés de se revelar a aparição que esperávamos desde o início do filme, ela prolonga-se à luz da descoberta de que os fantasmas estão no contra-campo que a câmara não mostra.
Servindo-se de um fenómeno ele próprio fantasmagórico, o da câmara escura, Pouco mais de um mês convida-nos a entrar na atmosfera de um amor que o casal filmado, André e Élida, o realizador e a sua namorada, ainda não sabe ser amor. Ao ficcionalizar a sua vida, como se se tratasse da projecção de sombras no tecto do quarto do casal, André Novais Oliveira transforma-a na mise-en-scéne do filme, prolongando a intimidade do espaço doméstico para o espaço público, onde o filme se inscreve no tecido social das ruas de Contagem, nas quais o casal confessa um ao outro os receios do novo amor.
Quintal introduz dois elementos novos na cinematografia do realizador, a epifania e o cómico. Uma rajada de vento arrasta para o quintal de um casal de idosos, Maria José Novais Oliveira e Norberto Novais Oliveira, os pais do realizador, um portal de aspecto cósmico que vai invadir com um som crescente a sua casa. Se deste evento se esperava uma transformação na direcção narrativa do filme, na verdade, é nas acções que compõem o quotidiano do casal que a epifania se dá. De uma cassete de vídeo pornográfica antiga encontrada por casa surge uma tese de mestrado sobre movimentos estéticos do cinema pornográfico americano da década de 1990.. O tom cómico que envolve os acontecimentos do filme enfatiza o carácter surrealista da narrativa do filme, que o distancia da tendência realista que inicialmente parece seguir, nem por isso o afasta de uma reflexão social e política que começa dentro da casa de Noberto e Zezé e se expande tanto para o ginásio quanto para a academia.
A obra inicial do realizador mineiro aponta para lugares intermédios, nem físicos nem psíquicos, onde o interior e o exterior se conjugam, onde os vários fragmentos se concentram num todo que paira como plano de fundo nos seus filmes. A pluralidade estética que encontramos nos seus filmes é atravessada pela horizontalidade da importância de cada um dos espaços filmados como lugares contíguos de diferentes vivências numa mesma realidade geográfica, Contagem.
Ouvem-se duas vozes, contam-se duas histórias, mas nenhuma personagem é visível em Trazos de Silencio, de Valentina Pelayo Atilano. Na primeira narrativa, ouve-se a voz de Valentina a descrever uma viagem de Uber pela Cidade do México. Na segunda, o actor Lázaro Gabino Rodriguez lê a crónica True History of the Conquest of New Spain, de Bernal Díaz del Castillo, sobre a conquista espanhola do México. Nenhuma das vozes possui um corpo, no entanto, elas ecoam pelas paisagens do filme como a sua matéria sensível e concreta. Sobrepostas uma na outra, o passado e presente que cada uma narra dialogam no filme numa dimensão atemporal, na qual a experiência sensorial predomina e põe em evidência a história colonial no México ao lado da violência de género.
Nos silêncios quase inaudíveis que interpelam as duas vozes sente-se subtilmente a sugestão da violência que perpassa os dois eixos narrativos em contraste com a beleza das paisagens de Aguascalientes, Altadena, Bakersfield, Cidade do México, Estado do México, San Luis Potosí, Baja California Sur, Tlaxcala e Zacatecas. À índole naturalista destas imagens, compostas por diferentes elementos paisagísticos, combinam-se os sons não naturalistas da passagem de cavalos, da água, de ferrovias, … e a marca dessa violência toma forma, substância, sempre em silêncio. A alternância entre a impossibilidade de ouvir o que se mostra e de nunca se mostrar o que se ouve gera, dentro do filme, uma alteridade, um espaço e uma dimensão outra que abrem uma fissura entre os conceitos “aqui” e “noutro lugar”, passado e presente, conquistador e conquistado, identificados por Raquel Schefer no texto dedicado ao filme. A imagem dessa fissura é povoada por uma constelação de borboletas que representam as deambulações da própria realizadora entre “um ambiente canibalista e patriarcal”, entre o México descrito em True History of the Conquest of New Spain e o México que ela conhece e vive 450 anos depois. Mais do que as diferenças que a passagem do tempo e a história deixou na terra de Valentina e del Castillo, Trazos de Silencio procura na paisagem ferida, comum à experiência de ambos, algum sinal que se projeta para lá da transitoriedade.
A gradual colonização pela escuridão da fissura atmosférica e do espaço visível de Trazos de Silencio é símbolo da realidade pré-colonial em subducção, do desaparecimento da crença ancestral na reincarnação pela sobreposição de um conceito de morte enquanto facto externo à vida, por contraste com o misticismo da morte enquanto facto interno à vida. O duplo estatuto da morte desdobra-se em duas metáforas: a borboleta que inaugura o filme, num estado de passagem da vida para a morte, e os pirilampos que inundam e se movimentam na escuridão da última paisagem, que, mais do que encerrar o filme, deixam no espectador um traço de continuidade da vida.
Pela sua natureza experimental, igualmente notável no plano narrativo e no plano formal, Trazos de Silencio propõe um outro olhar, uma outra geografia, onde se esbatem as fronteiras entre o pessoal e político e a experiência individual e colectiva se tornam uma e a mesma. Só assim a experiência de del Castillo se projecta na experiência de Valentina e a fragilidade de um ecoa na fragilidade do outro, pois, independentemente dos seus tempos e histórias pessoais, há algo de avassalador que perpassa pelos dois, que não reconhece nem bem, nem mal, nem passado nem presente, a experiência individual da mortalidade.
Cátia Rodrigues
Entrevista com Valentina Pelayo Atilano no Curtas Vila do Conde
Vila do Conde, 17 de Julho de 2022
Cátia Rodrigues (CR): Trazos de Silencio teve a sua estreia nacional aqui no Curtas Vila do Conde. O que é que te levou a escolher Portugal e o Curtas para exibir pela primeira vez o teu filme fora do México?
Valentina Atilano
Em primeiro lugar, quero agradecer o teu interesse e o espaço para refletir sobre Trazos de Silencio, que, não vamos esquecer, é uma co-produção com Portugal e Espanha e que esta foi a primeira estreia do filme fora do México onde estreou no FICUNAM. Talvez deva mencionar que vivi em Portugal algum tempo durante o desenvolvimento do filme e recebi o apoio tanto do espaço de desenvolvimento Arché do Doclisboa como de Elias Quereta Zine Eskola, tendo tido o privilégio de ter como tutora principal do projecto a Salomé Lamas.
Foi uma honra e muito importante estrear o meu filme no Curtas Vila do Conde, porque é um festival com uma enorme projecção nacional e internacional e um marco entre os festivais de curta-metragens, do qual ouvi falar tanto e tão bem antes, tendo sido incentivada por amigos a enviar o meu filme.
Outra razão para o Curtas ser tão especial para mim prende-se com a hospitalidade da equipa talentosa e carinhosa do festival e de todos os que tive oportunidade de conhecer, o que torna a vivência do Curtas uma das mais singulares e extraordinárias.
CR: O teu filme envolveu muita pesquisa, como é possível ver no booklet que criaste para o acompanhar. O que é que motivou essa pesquisa e como é que chegaste ao livro de Bernal Díaz del Castillo, True History of the Conquest of New Spain?
VA: Eu saí do México com nove anos para viver nos Estados Unidos e, por isso, não aprendi na escola a história do meu país. Quando regressei ao México com 26 anos, tudo o que sabia tinha-me sido contado pelos meus pais. Mas não era suficiente para compreender o país onde nasci e para o qual regressei e o porquê de as coisas lá serem como são. Porque seria impossível estudar toda a história do México, decidi começar pelo início e procurar textos e livros pré-hispânicos e aztecas, um povo dizimado pelos espanhóis aquando da conquista do México. Um dos poucos textos que restavam e retratavam o México como ele era antes da colonização é o de Bernal Díaz del Castillo. Há rumores de que del Castillo era o próprio Cortez, o conquistador espanhol do México, o qual, porque não queria revelar a sua verdadeira identidade, escreveu True History of the Conquest of New Spain sob o pseudónimo Bernal Díaz del Castillo.
O que me atraiu neste livro, apesar de ser uma crónica sobre a conquista espanhola, não foi apenas um “olhar de fora para um território desconhecido”, mas também foi a sensibilidade das descrições de del Castillo, muito sensoriais. Num espanhol antigo, difícil de ler até, o que tornava a experiência ainda mais desafiante e fascinante, ele falava muito do espaço que o rodeava e de como se sentia nele, deixando transparecer uma fragilidade. Por isso, usei-o como bode expiatório da minha própria fragilidade, como se na experiência dele se pudesse revelar a minha. Outros dos motivos que me levou a escolher True History of the Conquest of New Spain foi a diferença da terra que eu e del Castillo partilhamos. O México que estava a redescobrir e que via é completamente diferente do México que encontramos no livro. Perguntava-me – como pode este lugar idílico de então ter desaparecido completamente? Atualmente, o México é um lugar de tensão e fragilidade, especialmente para as mulheres. Neste sentido, fui motivada por colegas e consultores que trabalhavam comigo no filme a juntar à experiência de Bernal Díaz del Castillo, a minha voz, elemento essencial da minha fragilidade.
CR: Foi daí, dessa tensão e fragilidade que encontras agora no país, que surgiu a ideia de acrescentar uma segunda narrativa a Trazos de Silencio sobre uma viagem de Uber na Cidade do México?
VA: Quando regressei ao México vivia-se um contexto de grande violência no país. O desaparecimento de mulheres e violações, algo que era comum noutras partes do México, começava a acontecer com maior frequência na Cidade do México e afectava também a classe média alta. Havia sempre uma amiga, uma amiga de uma amiga, de quem se conheciam histórias por terem sido vítimas de violência de género. Eu não sabia bem como lidar e aguentar esta realidade, tinha medo de que um dia pudessem acontecer-me alguma dessas coisas e acabou mesmo por acontecer a viagem de Uber que eu conto no filme. Penso que terá sido a primeira vez que esse medo ganhou forma na minha vida e fiquei profundamente desiludida por viver numa cidade onde isso poderia acontecer. Pela primeira vez na minha vida sentia-me frágil e essa fragilidade abriu a minha sensibilidade e motivou-me a usar o meu conhecimento, a minha voz. O objectivo do filme é precisamente transmitir estes sentimentos e experiências de fragilidade e medo, mas sempre através da beleza. Não bastava para mim, contudo, ter apenas imagens belas, eu queria poder questionar, através e com elas, o porquê de eu poder usar a minha voz. Eu queria fazer um filme que refletisse a realidade de outras mulheres, no qual esses sentimentos e experiências se tornam, através do cinema, numa experiência colectiva, com a qual, infelizmente, todas mulheres se relacionam em maior ou menor grau. Enquanto artista, acho que é da maior importância discutir estes assuntos e abordá-los no nosso trabalho. Não obstante, a verdade é que me sinto privilegiada por ter tempo e os meios para fazer um filme.
CR: O título do teu filme é Trazos de Silencio, mas nele nunca se “ouve” o silêncio. Porquê?
VA: O silêncio não existe no México. Aliás, o conceito de silêncio não existe em si. O título vem precisamente de traços de memória de um lugar. Há pausas no filme e essas pausas são os seus silêncios. Um exemplo são as imagens do pôr do sol quase no final do filme e a sequência longa e vermelha do pôr do sol no cerro del muerto em Aguascalientes, México.
No booklet pode ler-se um email do músico Bernardo Feldman, no qual fala de pregnant pauses, como algo que se pode ouvir, mas não ver. Tal e qual como os segredos. Com o Miguel Martins, designer de som, discuti muito o processo de como representar o silêncio ao longo do filme com sons subtis.
Essa é a abertura do filme, o seu sussurro, com o qual o espectador pode relacionar-se, descobrindo o seu segredo.
O título Trazos de Silencio possui um segundo sentido. É comum prestar-se uma homenagem às pessoas que desapareceram com um minuto de silêncio e foi isso que eu fiz.
CR: Que papel desempenha a paisagem no teu filme? Porquê filmar a paisagem e não, por exemplo, personagens que tornassem visíveis, corpóreas a tua voz e a voz do actor Lázaro Gabino Rodriguez?
VA: A minha decisão de trabalhar com a paisagem foi muito intuitiva. Antes de começar a fazer cinema, eu vim da pintura, nomeadamente da pintura abstracta. A representação físicade pessoas não me interessa tanto, prefiro os elementos formais, como por exemplo o som e a cor, que é muito importante para mim, que são tão vitais para mim quanto a imagem, como se pode ver na presença do vermelho no filme. Gosto de filmes simples e queria que o meu filme fosse assim. O que há de mais simples e elementar do que a paisagem? A luz é outro aspecto importante. Eu comecei o filme a falar de pirilampos num sítio onde eles não existem até se fazer noite e acabei o filme no mesmo espaço com uma paisagem iluminada por pirilampos, introduzindo o conceito de memória da paisagem. Como é que um sítio é habitado ao longo do tempo?
Os sons não naturais que ouvimos, como por exemplo as ferraduras dos cavalos, o som do metal das ferrovias, foram sugeridos pelo Miguel Martins quando trabalhávamos juntos durante a montagem, como marcas da evolução do material no tempo, na paisagem, do que desapareceu e do que foi ficando.
CR: Consideras Trazos de Silencio um filme feminista?
VA: Considero que este filme é um pequeno acto de resistência, porque abrange desde um lugar íntimo a um lugar colectivo, fragmentos de uma realidade onde a opressão patriarcal e a violência de que as mulheres são vítimas é sufocante e, em certo sentido, indissociável da opressão colonial.
Filmei quase tudo no México, mas editei fora do país, para me afastar do contexto violento que lá se vivia, tendo, no entanto, criado o filme fazendo uso desse mesmo contexto. Na verdade, precisava de alguma distância para conseguir representar a densidade e tensão do México, um país belo, mas ferido. Trazos de Silencio tem essa magia e beleza do México pré-colonização, mas também a violência e fragilidade de hoje, da invasão espanhola e do povo azteca. Escolhi mapear uma complexa constelação de questões e sentimentos passível de ser livremente interpretada pelo espectador.
CR: Por isso é que é tão importante para ti o conceito de paisagem ferida que tão bem se sente e mostra no teu filme?
VA: Sim, paisagem ferida, terra ferida. Outro dos objectivos do filme era contrastar a beleza da paisagem com a ferida aberta do colonialismo e com a fragilidade em que sempre encontramos no filme o próprio Bernal Díaz del Castillo. A presença das borboletas não é senão uma metáfora da fragilidade. Por isso, abri o filme com uma borboleta quase morta, isto é, no momento de passagem da vida para a morte. Num filme marcado por uma presença da morte, a minha voz, o movimento das borboletas são sinais da vida. Mas a parte mais difícil para mim foi descobrir como retratar essa fragilidade através do som, porque eu queria acrescentar uma outra camada, uma outra textura. A presença do som do metal foi uns dos instrumentos importantes para tornar visível essa ideia de terra ferida.
CR: Dessa noção e da presença da morte forma-se o sentido mítico de Trazos de Silencio? Mítico como uma metáfora que diz respeito tanto à história do México e da sua colonização como também ao actual estado de coisas no país.
VA: A dimensão mítica serve como uma ponte entre o passado e o presente do México. Antes da colonização, o povo aztecafazia sacrifícios, desmembrando e ingerindo pessoas como uma oferenda aos deuses. Mais do que representar a violência que já existia antes da colonização, no filme manifesta-se, metaforicamente, claro, o canibalismo que ainda pauta a sociedade mexicana contemporânea. Atrás de um país vibrante e incrível, pleno de celebrações, sons e cores, o México foi e continua a ser um país mutilado, e isso faz parte do seu ADN.
CR: Qual é a razão para teres filmado em três formatos diferentes, 16mm, 35mm e digital?
VA: Vem do acto de preservação, dos limites no momento do filmar em película e do mistério que esse momento encerra. Existe um certo mistério e surpresa associado aos formatos analógicos. Gosto de não ver o que estou a filmar no momento, porque isso me leva a tomar decisões de enquadramento mais emotivas e intuitivas, isto é, o facto de filmar em película ser muito caro, coloca limites que me obrigam a estar segura em relação à intuição do que quero filmar.
Quanto ao digital, a razão foi puramente económica. Filmar em película é muito caro e em algumas situações bastante difícil e demorado. Por exemplo, os timelapses do pôr do sol eram muito longos, tinha mesmo de filmar em digital, assim como os pirilampos, impossíveis de filmar em analógico. Além disso, o cruzamento de diferentes formatos foi uma forma de questionar as fronteiras e ultrapassar barreiras do próprio meio cinematográfico, rejeitando o pressuposto de que para cada filme apenas um formato é adequado. O cinema experimental dá-me essa liberdade.
CR: Mais do que questionar as fronteiras do meio cinematográfico, em Trazos de Silencio também encontramos uma reflexão sobre o conceito de fronteira, num sentido geográfico, e de terras fronteiriças, que coloca em causa as divisões políticas e territoriais. Consideras que este aspecto é uma consequência da tua geografia pessoal, composta por mais do que um país?
VA: Eu cresci perto das montanhas de Sierra Madre em Pasadena, Califórnia, um subúrbio de Los Angeles, depois da minha família ter deixado a Cidade do México. A diversidade paisagística e geográfica faz parte do meu crescimento. Quando penso nas fronteiras como algo que delimitam um país, lembro-me que a Califórnia fazia parte do México, quando o país ainda era uma colónia espanhola. Além da relação que tenho com ambas as terras, essa foi uma das razões que me levou a filmar parte de Trazos de Silencio na Califórnia. Sentia-me como se não pertencesse a lugar algum, uma imigrante sem terra, navegando numa esfera liminar, como as borboletas, que migram do Canadá para o México. Tudo isto são texturas do meu filme, que, no fundo, é um acto de encontrar solo, pertença, de me enraizar em algo. Como eu o penso, o meio de cinema é universal, e, por isso, o processo de filmagem foi para mim uma forma de me enraizar, não a um lugar, mas em mim mesma, para lá de qualquer território ou fronteira.
CR: Outra das principais características de Trazos de Silencio é a abertura tanto formal quanto narrativa. O teu filme contém segredos, sugestões, mas nunca um olhar último e definitivo sobre os assuntos que nele abordas, deixando espaço para que o espectador possa construir o seu próprio olhar sobre ele, a sua interpretação.
VA: Todas as pessoas que vieram falar comigo sobre o filme tinham a sua interpretação, sempre diferente da anterior e, muitas vezes, davam-lhe significados nos quais não tinha pensado ao fazer o filme. O mais importante para mim foi sempre deixar uma impressão em quem vê o filme, de modo a que ele passe a pertencer ao mundo. Trazos de silencio é uma espécie de semente que cresce no olhar do espectador, ele é colectivo e não apenas o meu filme. Neste sentido, a criação transforma-se num perpétuo diálogo, uma conversa entre mim e quem vê o filme, que completa a minha interpretação do mesmo. Inconscientemente, quando falo do filme, como estou a fazer agora, partilho contigo não só a minha experiência de o criar e de lhe dar significado, mas também todas as interpretações e experiências que foram partilhadas comigo. Isto é maravilhoso, pois são elas que mantêm o filme vivo, o tornam, de certo modo, imortal.
A obra de Carla Simón, que a 30ª edição do Curtas Vila do Conde dá a ver naquela que será possivelmente a primeira exibição de toda a obra de Carla Simón em Portugal, começa com Mujeres (2009) e com mulheres, acerca de mulheres, pelo olhar de uma mulher se distingue e cria uma mundividência própria. Um olhar que serve de mediação entre o pessoal e político, inscrevendo o primeiro no último através das diferentes faces do seu cinema. As múltiplas formas dessa inscrição, que a cada filme conhecem uma nova história, uma nova exploração imagética, têm em comum a família, como força gravitacional do movimento vital das mulheres que Simón filma, lembra, imagina, preserva, ama.
Entre a ficção e o cinema de cariz experimental, a realizadora deixa sempre entrever algo da sua história pessoal, algo do seu ser mulher no mundo, em relação com o mundo e com outras mulheres, que entrelaça com o seu conhecimento da história do cinema, das possibilidades da linguagem cinematográfica e dos infinitos significados que com ela se pode gerar. Mujeres é o nascimento de um corpo cinematográfico que vai começar pelo solo, como se do corpo da mulher nele deitada nascesse o mundo e o (seu) cinema. A expressar uma ideia de começo, a montagem e a estética do filme fazem lembrar as primeiras vanguardas cinematográficas. Simón irá repetir o exercício experimental em Llacunes (2016) e, mais tarde, em Correspondencia (2020). Llacunes concretiza o pressuposto do cinema como uma possibilidade de materialização da memória, recuperando imagens da mãe biológica, Carla Simón repete as suas viagens lendo as cartas que ela escreveu. Como se o filme pudesse transformar a ausência da mãe numa voz, numa imagem e ocupar a lacuna entre a vida e a morte, unindo-as, aproximando-as, ao som de um saxofone, talvez a única presença tangível do filme. Também dotado de um cunho pessoal é Correspondencia, um objecto de partilha entre Carla Simón e a realizadora chilena Dominga Sottomayor, construído em torno do que contam uma à outra de si próprias, das suas famílias e do ofício de ambas, o cinema. De longe a mais madura das suas curtas-metragens, Correspondencia dá continuidade ao tema mais presente na obra de Simón, a ausência que a morte impõe, ausência essa que assume sempre o rosto da mãe, que voltamos a rever nas mesmas imagens de vídeo inaugurais de Llacunes. No quotidiano que mostram uma à outra e que o filme nos mostra, a dimensão pessoal da sua conversa confronta-se com a situação política do Chile experienciada por Dominga Sottomayor. Neste momento, o filme sofre uma fractura profunda e a harmonia que pautava o início da conversa entre elas transforma-se numa distância intransponível entre a vida e a obra de cada uma. Das imagens de arquivo das suas famílias, das suas casas, das histórias de amor passadas e presentes, só retemos na memória a sua beleza. Mas dos protestos no Chile, com os quais o filme termina, ainda permanece a violência, que nos atira para a consciência da impossibilidade de separar o que é pessoal do que é político, sob o risco de desvincularmos o outro da construção e da expressão da nossa subjetividade.
Do lado da ficção, Simón realizou, antes de Estiu 1993 e Alcarràs, duas longas-metragens também ficcionais, Batom (2013) e Las Pequeñas Cosas (2014). De Batom pouco ou nada há a dizer, para lá daquilo que o filme não excede ou ultrapassa, o estatuto de filme de escola, mesmo que nele a presença da ausência perante a vulnerabilidade da infância, que tanto fascina a realizadora, vá ganhando densidade. Las Pequeñas Cosas, por sua vez, é a primeira das curtas a introduzir o contexto familiar no núcleo do filme, que se irá desenvolver em torno da difícil relação entre uma mãe e filha. A espera de um terceiro filho, cuja notícia da vinda desencadeia um processo de preparação da casa onde ambas vivem para o receber, é o mote narrativo do filme, a partir do qual cresce um jogo de aproximações e distanciamentos entre mãe e filha, à medida que a amargura que cada uma sente em relação à outra se torna evidente. Sem catarse, a interminável espera acaba por culminar numa resignação não só das duas mulheres, mas do próprio filme, algo que se irá repetir no final de Alcarrás (2022). O construir de tensões no qual assenta o desenvolvimento da narrativa do filme parece não conseguir completar-se, como se mais não se pudesse fazer do que assumir que o filme é isto e não pode ser mais nada.
A infelicidade dos finais de Las Pequeñas Cosas ede Alcarrás, a falta de graça e maturidade das primeiras curtas-metragens, Mujeres e Llacunes, demasiado condicionadas por códigos de género ou regras de estilo da tradição cinematográfica em que se inserem, tornam o conjunto de curtas-metragens de Carla Simón, à excepção de Correspondencia, não por acaso uma co-realização, pouco impressionante. O mesmo não acontece com as suas longas-metragens, que expandem, sobretudo Alcarràs, para terrenos mais férteis, o que até então ainda não tinha conseguido florir – um olhar feminino e feminista que Carla Simón subtilmente e com a medida certa de sensibilidade mostra numa teia de relações nas quais esse olhar ainda é invisível.
A última sessão do Curtas Vila do Conde dedicada à realizadora acontece no Domingo, às 16H00, com a exibição de Estiu 1993.
Será uma sessão louquíssima, mas, por isso mesmo, estimulante. A diferença é poderosa atração e você terá nessa sessão um exemplar de mundos distintos atraídos por uma gravidade quase circunstancial: meu nome.
Affonso Uchôa
O nome de Affonso Uchôa está longe de constituir uma gravidade quase circunstancial no cinema brasileiro contemporâneo. Mais do que exemplares de mundos distintos, sobretudo pela distância de vinte anos que entre eles se entrepõe, Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde, a primeira curta-metragem, de 2009, e Sete Anos em Maio, de 2019, são dois polos do mesmo gesto de mostrar o cinema, que neles não esgota a nossa atracção por Uchôa.
Como o próprio título indica, Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde é um filme sobre a realização de outro filme, Mulher à Tarde, a primeira longa-metragem de Affonso. O realizador descreve-o como um caderno visual que reúne imagens do elenco, dos ensaios e dos lugares do filme, acompanhado por anotações suas lidas em voz over. A forma documental que Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde assume à força de ter Mulher à Tarde como objecto possui uma singularidade que se tornará característica do cinema de Uchôa. O primeiroé um documentário só e apenas na medida em que o segundoé uma ficção. Não é tanto a realidade, ou factos do mundo real, o substracto que dá origem ao filme, como habitualmente acontece no género documental, mas a possibilidade real e concretizada do(s) filme(s) na e através da ficção. Para que se torne real, para que essa possibilidade se revele diante de nós, apenas uma imagem é símbolo de uma finitude – a da tela negra, morta e possível – que habitualmente encerra o filme. Ao invés de entrar a luz pela sala, ouve-se câmara, acção e o filme continua como se estivesse a começar, como se irrompesse na tela como o real irrompe no filme.
Pelo contrário, Sete Anos em Maio parte do real em direcção à ficção, em direcção ao filme. No mais assumidamente político dos filmes de Uchôa, é posto a descoberto a violência policial de que foi vítima Rafael dos Santos Rocha numa noite que irá ditar o seu futuro. Quem nos poderia contar a sua história senão o próprio Rafael dos Santos? Por um lado, o testemunho apresenta-se sob a forma pretérita do que aconteceu. Por outro lado, a ficção oferece uma instância de reflexão sobre o acontecimento quando o diálogo é introduzido com um inesperado contra-campo, quando a sua história se torna a história do outro. “A ideia do depoimento que vira diálogo é um princípio do filme: partir da forma mais básica do documentário, que é a entrevista, para a forma mais básica da ficção, que é o contra-campo. Isso era, desde o início, algo fundamental.”[1] Um é o ponto de partida do filme, o outro é o ponto de chegada, o que os une a crença de que “o real precisa ser ficcionado para ser pensado.”[2]
A extensão do que nos mostra o realizador e do cinema que por ele nos é mostrado é visível se pensarmos estes dois filmes como duas faces da mesma moeda, ou, melhor dizendo, como duas manifestações de um cruzamento entre o real e a ficção, dimensões indissociáveis do filme, o qual não é senão uma materialização da sua reunião. Sem o real a ficção não seria possível, mas sem a ficção o que é que teríamos para devolver ao real depois de o experienciarmos?
Assim, é fácil perceber porque a ficção nos fascina tanto. Oferece-nos a oportunidade de exercer sem limites as nossas faculdades, quer para percebermos o mundo, quer para reconstruirmos o passado.[3]
Ao longo das duas décadas que separam Desígnio: caderno de notas e esboços a respeito de um filme chamado Mulher à Tarde de Sete Anos em Maio, Affonso Uchôa não abandona nem o género documental nem o ficcional, consolidando no intervalo entre ambos e a partir deles uma obra que, para lá das diferenças de cada filme, mostra-nos o cinema na sua potencialidade mais transformadora – a potencialidade de pensar e dizer, mas sobretudo de imaginar a realidade. Que outro modo há de afinidade, de aproximação do cinema à vida?
Folha de sala da sessão dedicada ao Affonso Uchôa na Mostra de Primeiras Curtas, na Livraria Térmita, no Porto.
Cátia Rodrigues
Notas de rodapé
[1] A periferia reimaginada: uma conversa com Affonso Uchôa por Maria Chiaretti e Mateus Araújo paraAniki, Revista Portuguesa de Imagem em Movimento.
[2] Cf. RANCIÈRE, Jacques – A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2005. p. 57.
[3] ECO, Umberto – Seis Passeios nos Bosques da Ficção. Lisboa: Gradiva.
Águas do Pastaza não é um filme antropológico, nem tão pouco etnográfico. E ainda bem, pois todos sabemos os perigos que a antropologia visual corre quando olha a vida dos outros. Alertados de antemão para estes limites de acesso da representação, a sinopse do filme suscita imediatamente uma certa apreensão face ao que vamos ver. Porém, desde logo ela se dissipa nas palavras de Agostinho da Silva escolhidas pela realizadora, Inês T. Alves, para anunciar, logo no primeiro plano do filme, o que nos será mostrado daí em diante.
“As qualidades infantis deveriam conservar-se até à morte, como qualidades distintivamente humanas – as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação.”
Águas do Pastaza é um filme sobre a infância e não um estudo sobre as crianças das comunidades Achuar, que habitam a floresta da Amazónia junto à fronteira que separa o Equador do Peru. Pode ser uma infância outra, remota a um tempo que já não existe na memória de muitos de nós, até mesmo estranha, mas é a infância, em todo o seu esplendor, do qual todos nós guardamos uma imagem, que nos olha do lado do ecrã. Estranha porque as crianças protagonistas da infância que o filme mostra parecem demasiado autónomas para serem crianças. Das duas uma: ou as crianças são adultos em potência, isto é, aqueles que se caracterizam por um modo de existência definido pelas qualidades do saber, do trabalho e da separação, ou as crianças são mais adultas que os adultos, e são-no na medida em que precisamente se mantêm crianças, ou seja, na medida em que as qualidades da imaginação, do jogo e da totalidade, ao invés de descobrirem, exprimem um modo de sintonia mais autêntico com o meio. É isto que Santo Agostinho pretende ver conservado, e que Águas do Pastaza pretende mostrar. Elas andam de catanas na floresta à procura de comida, pescam, lavam a sua roupa, cozinham a sua comida, tudo sem a presença de um adulto. Tratando-se de um documentário e não de uma ficção, devemos, na medida do possível, acreditar no que vemos, isto é, nessa forma de vida das crianças – é este o segredo do filme, explicitamente colocado em palavras por Agostinho da Silva. Não obstante essa autonomia ser impressionante, o que está em causa é uma forma de vida, que o filme não só nos mostra em plena harmonia com o meio, razão pela qual não estranhamos ver uma criança manusear com tanta perícia uma catana e, com igual perícia, um telemóvel, como também nos mostra a possibilidade de reter a infância, de fazê-la durar mesmo nas acções menos infantis.
Entre banhos, a brincadeira, entre a pesca, a tranquilidade, entre o cozinhar, a cooperação, … entre tudo, entre a vida, a infância. E não há maior dificuldade para o cinema do que a de mostrar a infância, porque aquilo que dela é mais visível constitui uma das maiores dificuldades para a representação cinematográfica, para não falar do invisível. À parte alguns planos que parecem retirados dos documentários sobre a vida selvagem, os quais têm o mérito de recordar as manhãs de fim-de-semana da infância, e que a televisão portuguesa muito gostava de acompanhar com esse género de documentários, Águas de Pastaza supera essa dificuldade, isto é, torna visível o invisível, com toda a delicadeza e respeito que a infância exige, mostrando-nos a totalidade de existir sempre criança. Como no último plano do filme, onde, voltadas de costas para nós, as crianças correm livres e sorridentes em direcção à àgua, como se só assim o mergulho fosse possível.
E por muito longínquas que sejam as águas do Pastaza, o rumor da natureza que as cerca é o rumor que se impõe nem que não seja apenas numa memória de infância de qualquer um de nós. Já o dissemos, é um filme sobre a infância, mas não sobre a nossa, como é claro. Contudo, e aí reside a beleza do filme, ele olha-nos, lembra-nos esse precioso passado ou, quem sabe, somos nós que o olhámos e lembramos o presente esquecido através do filme, pois são qualidades intrínsecas que permanecem de algum modo durante toda a vida.
“Tu tiras duas imagens, e cada uma delas é neutra; mas de repente, ao lado uma da outra, elas vibram à medida que um novo tipo de vida entra nelas. E não é realmente a vida da história ou dos personagens; é a vida do filme.”
Robert Bresson[1]
Cinema e plantas encontram na luz a sua condição necessária de existência. Sendo necessária, não é única. Inscrita no tempo, o conteúdo positivo da luz advém de um acto de luta e de resistência perante as ameaças de desaparecimento até à extinção. No fundo, requer a presença animada e/ou inanimada de um gesto que sintetize e dê sentido ao acontecimento da luz. A sobrevivência da arte cinematográfica e das inúmeras espécies de plantas joga-se aqui. Com este propósito, dois organismos, o da película e o das plantas, radicalmente dissemelhantes, são justapostos e daí nasce um terceiro organismo – Herbaria. A segunda longa-metragem do realizador argentino Leandro Listorti, que teve a sua estreia mundial na secção Burning Ligths da última edição do Festival de Cinema Visions du Réel, venceu o Prémio Especial do Júri pela Société des Hôteliers de la Côte.
Porque designamos a película de organismo, uma vez que, paradoxalmente, é na qualidade de organismo que a planta se distingue do cinema? Porque ela para nós significa o que as plantas significam para Narcisa Hirsh[2], para quem “as flores são o que anunciam a presença do Homem”. Neste sentido, o filme torna-se o próprio gesto de preservação, o acto de resistência que coloca a unidade do diverso em movimento.
A relação entre os dois organismos que dá corpo ao filme concretiza-se na justaposição entre imagens do cinema e imagens de plantas, a fazer lembrar a montagem dialéctica eisensteiniana. Planos dão lugar a organismos e o cinema abre-se para a vida e para a biodiversidade das plantas, “como um único organismo interligado”, diz-nos o realizador. Nova Iorque, Berlim e Buenos Aires, dão lugar a uma só geografia fílmica. Assim, Herbaria materializa a unidade do diverso[3].
Esse gesto em movimento, que persiste em cada plano do filme, é o derradeiro elemento de aproximação entre o cinema e as plantas. A medida dessa aproximação, desse gesto? O tempo. Mas um tempo que não conhece a linearidade da sucessão e da sequência narrativa. Antes, um tempo tutelado pelo novelo de imagens, de movimentos e de ligações que se mostra numa relação tensional de dependência com o meio, ora dissonante, ora convergente, quase sempre incompreensível. Um tempo de pura exterioridade, como a das plantas, que, aquilo que são, são-no para a diversidade dos outros, sem abdicar de um si de que não têm consciência enquanto fronteira, como se pode definir a autenticidade de qualquer gesto em movimento. Um tempo, enfim, a que Herbaria dá vida. Mas como Herbaria traduz tudo isto? Respeitando o sentido artesanal que regia o modo de fazer cinema de Bresson, ao qual o filme de Leandro Listorti apela, quer no objeto de representação – a preservação da película –, quer no modo como representa – em 16mm, Super 8 e 35mm. A feitura do filme, ela própria plena desse sentido, não é senão um prolongamento do trabalho artesanal envolvido nesse gesto primeiro. Fragmentos de pessoas, de plantas, de movimentos, de luzes e de sombras, atraem-se de tal modo que herbários se confundem com arquivos cinematográficos, realizadores com botânicos e forma com conteúdo.
Inconfundível é a relação que se cria e se nos mostra em Herbaria, a qual não tínhamos visto anteriormente. A sua singularidade não se prende com o evento inédito que ela constitui não só para a história dos dois organismos e para o olhar do espectador e do botânico, mas pelo cruzamento de duas taxinomias, as quais tão naturalmente se integram uma na outra. Estranho é dela não nos termos apercebido mais cedo. Diante dela, um verdadeiro vislumbre da beleza e delicadeza do filme inicia um novo movimento interior, o qual já não pertence ao filme. E de novo olhamos o mundo para nele ver à luz do filme o anúncio da presença do Homem.
Cátia Rodrigues
[1] Bresson, R. (1983a). Entrevistado por B. Cardullo. The Poetry of Paucity, the Art of Elision: Robert Bresson in Conversation. In The films of Robert Bresson: A Casebook. B. Cardullo (Ed.). New York: Anthem Press