Objectos de Luz: Memórias luminosas

Comecemos pela referência bíblica: “Antes não havia nada, depois fiat lux.” Do vácuo e da escuridão nasceram a matéria e a luz. Esta frase é determinante para nos ajudar a olhar Objectos de Luz, filme de Acácio de Almeida e Marie Carré, obra escolhida para a sessão de encerramento do 20º DOCLISBOA. Para além de uma bonita homenagem à arte da luz, assim como ao caso específico do cinema português, fica o registo de uma meditação fulgurosa sobre a importância da luz enquanto criadora da matéria cinematográfica.

Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa

Acácio de Almeida participou como director de fotografia em dezenas de filmes de realizadores como António Reis e Margarida Cordeiro, João Botelho, João César Monteiro, Manoel de Oliveira, Margarida Gil, Paulo Rocha ou Teresa Villaverde, entre muitos outros, que são revisitados neste inusitado ensaio visual. O seu amor pelo desenho da luz e a sua inscrição em imagens levou Acácio e Marie a prestarem toda a atenção e pensamento àquilo que faz existir não só o cinema, mas toda a vida. Partindo dos diálogos que Marie ia guardando dos almoços entre os dois, é a voz de Acácio, o “Homem da Luz” (como aparece creditado no genérico final), que nos guia ao longo de uma série de imagens em que a luz é a protagonista e o centro em torno do qual gravita o pensamento deste filme.

Entre as memórias invocadas e o conhecimento que foram reunindo no trabalho e na vida em conjunto, Acácio de Almeida e Marie Carré viajam no mundo da luz e das sombras, naquela que ambiciona ser uma viagem universal pelo cinema, mas também uma imponente reflexão sobre a existência das coisas. Disperso na sua forma, trabalhando com vários registos, do arquivo do cinema português a novas imagens produzidas para este filme, a obra entusiasma pelo foco que incide no acto cinematográfico, no acto de fazer cinema e tudo o que rodeia a arte de criar imagens. A dada altura, o narrador constata que, não só precisamos da luz para as criar, como para dar vida a uma bobine que contém o universo de um filme. Numa das sequências vemos uma personagem, interpretada por Manuel Mozos, a correr atrás de uma bobine que ganha vida e foge. O objectivo é claro: pará-la e perceber o que ela contém. Até que a vemos a ser projectada – iluminada e dada a ver.

Com pouco mais de uma hora de duração, este jogo de luzes vai mostrando os rostos que foram iluminados por Acácio de Almeida ao longo da sua vasta carreira no cinema. Rostos de actores como Isabel Ruth, a própria Marie Carré ou Luís Miguel Cintra, que numa das cenas mais impactantes do filme confronta-se com o seu rosto reanimado 50 anos depois do filme de João César Monteiro Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971).

Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa

Ao longo do filme são várias as perguntas que o narrador vai fazendo sobre a luz ou directamente a ela, “O que somos nós em relação à luz?” ou “que seria de ti sem nós?”, lembrando as palavras dirigidas ao sol em Assim Falava Zaratustra: “Ó grande astro! Que seria da tua alegria se te faltassem aqueles a quem iluminas?”. Objectos de Luz é a estreia luminosa de Acácio de Almeida e Marie Carré na realização e, mais que filme-testamento, é um filme que se alavanca nas memórias para lançar ao futuro a vontade que continuam a ter de fazer cinema.

Ricardo Fangueiro

[Objectos de Luz, Acácio de Almeida, Marie Carré © Doclisboa]

Onde Fica Esta Rua? ou o antes e o depois de uma paisagem humanizada

Era o amor

Que chegava e partia

Estarmos os dois

Era um calor, que arrefecia

Sem antes nem depois

Era um segredo

Sem ninguém para ouvir

Eram enganos e era um medo

A morte a rir

Dos nossos verdes anos

“Canção dos Verdes Anos”, Carlos Paredes

Depois da estreia mundial no Festival de Locarno, foi na 20ª edição do Doclisboa que pudemos ver Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022), na secção Riscos, uma secção que o festival caracteriza com foco em: “um cinema que arrisca, questiona as suas fronteiras e relaciona a sua história com o seu futuro.” Nesta secção, na subcategoria “AUSÊNCIAS, PERSISTÊNCIAS E APARIÇÕES”, onde estão programados filmes que se questionam “sobre o que fica e o que desaparece, o que se lembra e o que se esquece, o que se procura e o que se encontra”, a nova longa-metragem da dupla de realizadores João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata pareceu encaixar que nem uma luva. Como o nome da secção na qual foi programado indica, Onde Fica Esta Rua? é um filme que arrisca, que não tem medo de não resultar, filmado num tempo onde a necessidade de filmar se revela urgente.

Assim que o filme abre é nos dada a informação de que da janela da casa de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, na Avenida de Roma, se poderia ver um décor de Os Verdes Anos, o clássico português de Paulo Rocha. Com essa informação navegamos naquilo a que o filme se propõe: um remake plano a plano do filme de Rocha retirando-lhe as personagens e a narrativa. Todavia, cedo percebemos que este filme não é bem um remake, assim como também não é bem um documentário. Embora dentro desse género, percebemos que é um pouco aquilo que quer ser, apresentando-se, sobretudo, como um questionamento visual sobre a mudança do espaço nos últimos 60 anos. Como é que são os espaços ocupados na contemporaneidade? 

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire

Normalmente estamos habituados a sobrevalorizar a história em relação à ‘mise-en-scène’. Nos Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era a relação entre o ‘décor’ e o personagem, o tratamento da matéria cinematográfica. Eram as linhas de força, num plano, que lhe davam o seu peso e a sua importância.

Paulo Rocha, Jornal de Letras e Artes, 6 de maio de 64

O ponto de partida do filme foi olhar os lugares do filme de Paulo Rocha, numa carta aberta de amor à cidade de Lisboa, filmada em 16mm, quase como se de uma sinfonia da cidade se tratasse. Podemos olhar ainda o filme como uma homenagem a Rocha, sendo para ele a questão do espaço determinante no cinema. A partitura musical, escrita em 1963 por Carlos Paredes, segue aqui o arranjo de Séverine Ballon e é esta que envolve graciosamente o espaço. 

“Esta terra é como uma dama que tem de ser engatada com muito jeito, nada de pressas”, diz-nos Afonso, tio de Júlio, em Os Verdes Anos. Lisboa veste bem a pele desta dama no filme de Rodrigues e Guerra da Mata, uma cidade que é vista e engatada com muito jeito. A personagem de Afonso é, de certa forma, crucial, não só pela lembrança que temos das suas falas mas por o único plano trazido do filme de 1963 ser um plano seu a assentar azulejos, profissão que exercia. Afonso é usado também como símbolo de mudança da cidade, visível através da sua profissão, no antes e no depois do assentar dos azulejos.

O cinema de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, quer em colaboração como realizadores quer em colaboração como realizador-diretor de arte, é um cinema que cria uma história entre si. No início da sua mais recente longa-metragem, presenciamos o encontro entre o bombeiro e o príncipe do recém-estreado Fogo Fátuo, uma fantasia musical, e mal esperamos que este mesmo se transforme numa fantasia musical. O bairro de Alvalade, cenário aqui e em Os Verdes Anos, é também cenário de muitos dos seus outros filmes (como O Fantasma e Odete), e o caráter fantasmagórico de uma Lisboa desprovida de humanos pode ainda fazer ligação com O Fantasma. Por sua vez, Onde Fica Esta Rua? carrega com muita força os fantasmas das personagens do filme de Paulo Rocha e os fantasmas de uma sociedade fechada em casa devido a uma pandemia.

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire

As dicotomias cidade/campo e modernidade/ruralidade, temas fortes em Os Verdes Anos, principalmente na caracterização da personagem do Julio, são bem visíveis nas mudanças que podemos ver nos espaços. Rios são ciclovias e pequenas carroças são trotinetes e hoverboards. O Texas Bar que facilmente reconhecemos como Musicbox, na Rua Cor de Rosa, ou mesmo aqueles espaços que quase já não reconhecemos, como o café Vává. Estas mudanças transformam o filme quase num documento teórico, num estudo arqueológico, num jogo de descoberta que lhe dá também um motivo quase interativo para aquele que o recebe (o espectador).

Esta interatividade funciona também através dos movimentos de câmara, que nos permitem recordar as cenas daqueles verdes anos, ou imaginá-las, caso não tenhamos visto o filme de Rocha. É a câmara que carrega este peso humano numa paisagem vazia que se torna também ela humanizada. As pessoas (ou personagens), apesar de inexistentes, acabam por ser visíveis, e o filme trabalha muito com estas partes do cinema que nem sempre são tão valorizadas. À falta de diálogo e personagens, a banda sonora, a fotografia e os movimentos de câmara conduzem de forma exímia a narrativa destes lugares. Lisboa transforma-se numa cidade humanizada, mesmo que vazia. Uma cidade capaz de ressuscitar Lídia e, acima de tudo, de sonhar, um sonho cantado na voz doce de Isabel Ruth. 

Inês Moreira

[Foto em destaque: Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata – © Terratreme Filmes, Filmes Fantasma, House on Fire]

A Date in Minsk: A vida é uma ficção

A Date in Minsk é um objecto curioso por várias razões. Nikita Lavretski, realizador bielorrusso – que, para além deste, apresentou, ainda nesta edição do DocLisboa, o filme que realizou com Alexey Suhanok, Jokes About War -, é já conhecido pelo baixo ou inexistente orçamento das suas produções e por uma profunda paixão pelo cinema e engenho para construir os seus filmes. A Date in Minsk é filmado totalmente com um smartphone e um par de microfones de lapela, num longo plano sequência que dura os 88 minutos do filme. 

Através do cartão inicial e da sinopse percebemos a premissa do filme: Nikita e Volha são, na “vida real” (não é certo o que isso significa neste filme), um casal disfuncional com uma relação tóxica que dura há anos e que aqui interpretam um casal que acaba de se conhecer. O filme é todo filmado pelo terceiro elemento presente, a também realizadora bielorrussa Yulia Shatun, que vai apontando a câmara para a ação, tentando encontrar (de forma improvisada como é toda a ação o filme) o ângulo adequado para cada momento. Facilmente se percebe a potencialidade existente nesta ideia e o que ela pode alcançar.

Começando por acompanhar uma partida de bilhar entre os dois num salão de jogos, a câmara segue este casal no seu percurso até à estação de metro, onde cada um segue o seu caminho. Por entre a conversa ligeira de encontro amoroso, vai sendo revelado o contexto político e a actualidade da Bielorrússia. Rodado há poucos meses, já depois da invasão russa na Ucrânia, essa é também uma temática presente no filme e, simbolicamente ou não, ao sair do salão de jogos, Nikita veste um cachecol com as cores ucranianas.

A Date in Minsk, Nikita Lavretski © Doclisboa

Para quem não percebe russo, o constante diálogo entre as personagens que se estão a conhecer torna-se cansativo de acompanhar, já que o espectador dá por si a ler durante o filme inteiro, sobrando pouco tempo para olhar com atenção as imagens e reparar nos pormenores da ação. Contudo, o filme funciona, pois a dinâmica entre Nikita e Volha permite que do seu total improviso saia uma espécie de comédia romântica (algo que o realizador assume ter como inspiração) pautada por momentos de discussão e curiosidade pelas opiniões um do outro sobre os mais variados temas.

Do ponto de vista formal, este é um filme surpreendente. Como afirma o realizador, o aspecto performativo é o seu conceito central, daí só fazer sentido este ser realizado num só take, sem qualquer escrita de diálogos ou tópicos ensaiados. Entre a comédia e o drama, com a cidade de Minsk em pano de fundo, o jogo ficcional que o casal cria faz-nos questionar sobre as barreiras que separam a vida do cinema.A Date in Minsk acabou mesmo por vencer o grande prémio da 20ª edição do DocLisboa, “pelo conceito cinematográfico, pela preocupação com temáticas atuais, pela autenticidade dos diálogos e interpretações”, segundo as palavras do júri. Nikita Lavretski é já um dos nomes a acompanhar do cinema bielorrusso e a sua inventividade faz-nos querer seguir de perto o seu percurso.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: A Date in Minsk, Nikita Lavretski © Doclisboa]

Terra que Marca: imagens colhidas da terra

Terra que Marca, o mais recente trabalho de Raúl Domingues – que teve a sua estreia nacional nesta edição do DocLisboa -, à semelhança do seu anterior Flor Azul (2014), é o cinema do gesto e do fragmento, obra que revela uma profunda sabedoria do ato de apontar e enquadrar. Num registo de câmara à mão, a função do realizador neste filme é sobretudo a de apontar a câmara para o movimento das ferramentas, para a natureza e para o corpo das figuras humanas que aqui são vultos que pairam trabalhando a terra. 

Ao abrir o leque de imagens, encontramos as únicas palavras do filme que contam como “em tempos, vieram dois malfeitores cumprir a pena de tomar conta desta terra desabitada e em pousio. A sua sentença passou de geração em geração e foi herdada pelos homens que a trabalham. Uma mulher descalça ajeita a terra e é surpreendida por uma folha.” Da força literária destas palavras, partimos para um contacto profundo entre o trabalho da câmara e o da enxada.

Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes

Num dos primeiros planos do filme vemos as mãos de pessoas diferentes rasgarem o plano da vegetação e apontarem para o fora de campo. Logo desde início, fica evidente a forma peculiar como Domingues escolhe enquadrar, mostrando que tem bem ciente aquilo em que se quer focar,  podendo dizer-se de forma jocosa que, se os seus familiares trabalham o campo, Domingues trabalha o campo e o fora-de-campo. Também o som é trabalhado de forma exímia, tendo a função de destacar certos momentos ou acontecimentos e, por exemplo, segundo as palavras de Domingues, “realçar o passarinho que passa em 2 ou 3 frames”. 

Além disso, para além do seu trabalho enquanto realizador, Domingues tem vindo a trabalhar como montador  em  filmes como António Um Dois Três (2017), Canto do Ossobó (2017) ou Entre Leiras (2021). Dessa forma, tem desenvolvido uma capacidade para olhar o material que tem e juntá-lo de forma a estabelecer fortes relações entre as imagens, a encontrar rimas, texturas, sobreposições ou raccords improváveis. Sendo essencialmente na montagem que se fazem todas as derradeiras escolhas, em particular no género documental, o trabalho do montador é um trabalho de filtragem – o de separar o trigo do joio. Através de um arquivo de imagens que foi reunindo ao longo dos últimos anos, foi na montagem que o realizador descobriu o seu filme.

Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes

Terra que Marca é sobre o labor da terra e sobre a aproximação do realizador àqueles que são os gestos familiares, mas  é sobretudo um ensaio visual sobre a textura e cores da natureza e desse trabalho no campo. A sua técnica remete para uma certa expressão primitiva e também aí reside o fascínio pelas suas imagens: pintar o que se vê na natureza e juntar as peças de forma a criar um retrato vivo do labor familiar. O cinema tem essa força e Raúl Domingues percebe-o. Esse respeito pela terra conflui num aspeto animista que o seu filme parece também conter. Lembrando as palavras de Jean Epstein: “One of cinema’s greatest powers is its animism. On the screen there is no still life. Objects have attitudes. Trees gesture. Mountains, like this Etna, signify. Each element of staging becomes a character.” É desse espírito presente nos objetos e nos elementos que  emana a força cinematográfica do filme.

Essa sincera disponibilidade para olhar o trabalho dos familiares e para se deixar deslumbrar pelos seus gestos, ritmo e sonoridades, é a semente de onde nasce esta obra: esta terra que marca, mas que sobretudo é marcada pela presença de outra natureza – a humana.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Terra que Marca, Raúl Domingues © Oublaum filmes]

A catedral de fogo e “pedras que caem do céu” de Werner Herzog

“What I’m trying to do here is to celebrate the wonder of the imagery.”

Werner Herzog

Ainda antes da viragem documental definitiva de Werner Herzog com o filme Grizzly Man (2005), o fascínio do realizador por acontecimentos vulcânicos mostra-se, pela primeira vez, em 1976, com La Soufrière. Desde então, Herzog tem perseguido o prenúncio do factum da morte que ascende ciclicamente do núcleo do subterrâneo para o estrato material do visível. Poder estar diante da grandiosidade de uma catástrofe vulcânica que outra coisa é que não estar face a face com uma experiência de mergulho no empírico da transcendência?

The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft, de Werner Herzog © DocLisboa

Não é de espantar a admiração de Herzog por Katia e Maurice Krafft, dois vulcanólogos franceses, cujo amor um pelo outro andou de mãos dadas com o amor pelos vulcões até ao dia dos seus desaparecimentos. Como o próprio realizador anuncia no começo de The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft, o filme não trata de uma biografia do casal, no sentido descritivo, mas antes do advento do seu olhar cinematográfico a partir do que permanecia por ver. “Escrito no fogo”, como bem descreveu Tomás Baltazar, na apresentação do filme numa sessão única do DocLisboa’22, o mais recente triunfo no documentário de Herzog tem como intenção a celebração da magnificência das imagens e do seu potencial assombroso. 

Nenhuma ou quase nenhuma das imagens de The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft foram filmadas por Herzog. Pertencentes ao espólio visual de Katia e Maurice, elas são testemunho de dois cientistas que, ao procurar registar um objecto de estudo para efeitos de investigação, se tornam cineastas, sem o saber ou pretender. À medida que o casal percorre o mundo, o que começa por ser imagens imponentes de erupções vulcânicas devém um olhar “mais humanista”, como o designa Herzog, dirigindo-se para os rostos das vítimas das “garras do diabo”, que estas catástrofes personificam na tragédia. Quem, para além de Herzog, que desejaria poder ter acompanhado Maurice e Katia no seu peculiar ofício, poderia dar a estas imagens a forma de um filme que fizesse justiça ao temor e tremor que delas emana? Tal como numa missa de homenagem aos falecidos, Herzog pede de empréstimo ao Requiem de Gabriel Fauré a atmosfera fúnebre, um tanto romântica, ainda que sempre penosa, para erigir, através da montagem, uma peregrinação estática, uma catedral de fogo e “pedras que caem do céu” a que deu o título The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft. 

The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft, de Werner Herzog © DocLisboa

Katia e Maurice morreram a 3 de Junho de 1991, junto do Monte Unzen, no Japão, consumidos pelo fluxo piroclástico de um vulcão que escondeu as suas intenções até os surpreender com a cesura inescapável da morte.  The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft é o seu mais majestoso legado e Werner Herzog o seu remanescente herdeiro. 

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft, de Werner Herzog © DocLisboa]

Lama, água e tarafes: a geografia da utopia em Mangrove School

“Dez granadas foram distribuídas por cinco guerrilheiros. Quantas granadas cada um recebe?”: na aldeia onde nasce a mãe do realizador Sana Na N’Hada, um dos grandes fundadores do cinema guineense, Filipa César e Sónia Vaz Borges recriam o quotidiano de uma Mangrove School (2022), escola de guerrilha em Guiné Bissau. Estreado mundialmente na mais recente edição do Cinéma du Réel, o filme pensa as redes de resistência engendradas — e ainda possíveis — no país a partir dos centros educacionais livres, entidades que, sendo alvos indispensáveis dos bombardeamentos coloniais, tornaram-se móveis, nómadas, tão voláteis e maleáveis como o rio, e a mão, que encerram as primeiras imagens da curta-metragem. Em constante fuga, muitas destas escolas chegaram às profundezas das selvas e, lá, encontraram os mangais. No espaço impenetrável da mata, a natureza alia-se à militância, “parceira das nuvens na luta contra o sistema de vigilância de Estado”, como descreve uma das personagens. 

Nesta geografia de ramificações, lodo e água, o ofício do cineasta é como o do arquiteto – um arquiteto restaurador. Mangrove School é símbolo e recorte físico da transmissão radical, um filme que incorpora o processo de rememoração oral na sua própria mise-en-scéne e que se torna, ele mesmo, um conto para atravessar histórias e gerações. Aqui, documento e ficção partilham os mesmos contornos, e a mesma relevância: toda a equipa técnica e artística envolve-se numa performance que reinveste de luta, de imagem e de corpo o espírito daqueles homens, mulheres e ecossistemas. Trata-se, assim, de uma tentativa de reviver – e reavivar – os gestos coletivos, transgressores, resilientes, atribuindo-lhe um olhar, que é o da câmara, e uma coreografia, que é o dos atores e atrizes. “Se se caminhar direito, colocando primeiro o calcanhar no chão, imediatamente se escorrega e cai nas represas dos campos de arroz alagados ou se fica preso na lama dos mangues”, revelam as diretoras. 

Mangrove School, de Filipa César e Sónia Vaz Borges. © Direitos Reservados

Numa costura atenta e minuciosa – que parece alargar os horizontes temporais do filme sem, no entanto, torná-lo enfadonho – das interações viáveis entre humano, animal e tarafe, como os enclausurados de Buñuel n’O Anjo Exterminador que se libertam ao conquistarem a repetição das suas ações e dizeres, redescobrem-se as memórias e os movimentos aprendidos, emprestados de outros tempos e ainda urgentes no agora. É este, também, o convite político audacioso do filme de Filipa César e Sónia Vaz Borges: que o cinema possa contribuir para o resgate e o fortalecimento de redes colaborativas e criativas, respostas aos desafios presentes – ainda coloniais – de uma Guiné Bissau com um gravíssimo índice de crianças fora do sistema escolar e entre os países com menor PIB per capita do mundo (Banco Mundial, 2018).

Eleito como o lugar para esta utopia passada e futura, o mangue — e a escola — é este território fértil de opacidades, que preserva a vida de todas as espécies; espaço para reparar, lavar e pintar as representações de mundos de longa data, preparando-nos para os mundos por vir. Tentáculos e fantasmas, trazidos de volta à vida pelo cinema, recordam a coragem e a potência de abrigar-se no outro, com o outro. No mangal, rompe-se para aumentar, parte-se para construir — como o lápis de criança que se perde, mas que se reencontra no fracionar do lápis ao lado. Está, aí, a força de Mangrove School, que será novamente exibido no âmbito do Doclisboa a 15 de outubro, na Cinemateca Portuguesa: demonstrar a possibilidade de acréscimos — ou decréscimos — de realidades a partir da corporeificação de novos modos de existir, de ensinar e de aprender.

Laila Algaves Nuñez

Foto em destaque: Mangrove School, de Filipa César e Sónia Vaz Borges. © Direitos Reservados

A questão colonial no Doclisboa’22: a curadora Amarante Abramovici apresenta a retrospetiva dedicada a cinemas anticoloniais na 20ª edição do festival

Diante do horror, o que pode o ato de filmar? Que silêncios pode ou não remediar? Foi Jean Louis-Comolli que, ao desfiar as particularidades do cinema documental, afirmou, categoricamente: sob o risco do real, com todas as suas dobras, fissuras, resíduos e escórias, a sua maior obrigação é a de criar. Num jogo contínuo entre o aproximar-se e o esquivar-se das armadilhas do mundo — e, nesse caso, também literalmente da guerra —, a ética poética do documentário faz-se na dança com a estranheza, com a parte maldita, com a parte absurda: com a vida e a morte.

De 6 a 16 de outubro, na 20ª edição do Doclisboa, e integrada na programação da Temporada Portugal-França 2022, uma retrospetiva dedicada à questão colonial rompe com as narrativas abrandadas e embranquecidas dos dois países colonizadores, devolvendo o olhar aos cineastas africanos e, à guerra, o seu nome sinistro e a sua verdade íntima. Com curadoria de Amarante Abramovici, realizadora e programadora de história e ascendência franco-portuguesa, o programa reúne filmes que cobrem um arco temporal de 72 anos, de 1950 a 2022, e que continua a se estender pelo futuro. Passa-se, assim, por toda a Guerra da Argélia e a Guerra Colonial portuguesa, bem como as subsequentes vagas migratórias que, ainda hoje, deixam a sua marca nas comunidades de ambos os territórios.

Se a ideologia colonial perpetra as suas violências a nível material e, mais decisivamente, a nível espiritual, os filmes d’A Questão Colonial resistem, também, à lógica da dominação corpórea e criativa. Realizados “contra a corrente do sistema colonial e neocolonial”, mas sobretudo “contra o mercado dos filmes ou dos autores”, representam a “luta pela existência dos novos cinemas africanos e transcontinentais”, descreve Abramovici em entrevista à Temporada. As mesmas redes coletivas de solidariedade que, no passado, permitiram que muitas destas obras fossem possíveis repetem-se, hoje, para permitir que estas histórias continuem a ser vistas e ouvidas, em toda a sua diversidade de gestos e formas.

Motivada pela busca de uma “outra” história do cinema, “que começa quando a liberdade se conquista”, a curadora apresenta-nos os itinerários de Cabascabo (1969), o primeiro filme do nigeriano Oumarou Ganda – depois de ser fuzileiro na Guerra da Indochina, estivador no porto de Abidjan, na Costa do Marfim, e ator em Moi, un Noir (1957), de Jean Rouch –; a grande festividade do Carnaval da Vitória (1978), realizado pelo angolano António Ole no primeiro ano da independência do país; ou, ainda, Mueda, Memória e Massacre (1979) e Os Comprometidos – Actas de um Processo de Descolonização [Acta 5] (1985), de Ruy Guerra, um dos criadores do cinejornal Kuxa Kanema (O Nascimento do Cinema) em Moçambique, devotados a filmar a nova imagem, ferida e contraditória, do povo, com o povo e para o povo.

Trata-se, portanto, de ir ao encontro de cinematografias por muito tempo relegadas à clandestinidade e ao silenciamento, cujos esforços, antes de mais, precisavam furar a dura censura do Estado Novo português ou da lei Laval em França. É o caso de Afrique 50 (1950), que valeu a prisão do realizador francês René Vautier, ou Catembe (1965), de Manuel Faria de Almeida, “que partia de uma encomenda, mas acabou por se tornar o filme português mais ‘cortado’ pelos censores”, com 103 cortes e menção no Guiness, conta-nos Abramovici. Outras formas de censura, porém, seguem-se ao controlo político estatal: o desamparo económico, a falta de recursos para preservação e a carência de práticas de arquivamento. 

Mangroove School, de Sónia Vaz Borges e Filipa César. © Direitos Reservados

Nesse sentido, como pontua a curadora, é emblemática “a exibição de Nossa Terra, o filme realizado por Mário Marret nas zonas libertadas da guerrilha do PAIGC, desaparecido durante décadas e só agora reencontrado nos arquivos da Newsreel em Nova Iorque”. A curta-metragem, que data de 1960, é integrada em sessão conjunta com trabalhos de Sónia Vaz Borges e Filipa César, “cuja criação se vêm articulando com o resgaste de filmes perdidos do início do cinema da Guiné-Bissau, como é o caso da seminal obra colectiva O Regresso de Amílcar Cabral, ou dos registos das escolas-piloto mostrados em Navigating the Pilot School“, obra de 2016. Neste movimento de des-re-construir e reflorestar os imaginários europeus do passado e do presente, “A Questão Colonial” não se esquiva de assumir e pensar a responsabilidade de todas e todos os “cineastas, técnicos, arquivistas, programadores, críticos e espetadores, em todas as sessões e todos os debates, em todos os momentos em que os filmes acontecem”, de manter vivas estas obras – e estas lutas. Como adivinha 7 cortes de cabelo no Congo (2022), dos brasileiros Luciana Bezerra, Pedro Rossi e Gustavo Melo, ou Afrique sur Seine (1955), de Paulin Soumanou Vieyra e Mamadou Sarr, Amarante Abramovici sonha com um cinema internacionalista, que “atravessa tempos e oceanos”, e cuja promessa depende da abolição de uma Europa ainda “fortaleza, envelhecida e decadente”, que condena “a humanidade à repetição dos mesmos erros”. 

Laila Algaves Nuñez

Foto em destaque: Catembe, de Manuel Faria de Almeida. © Direitos Reservados

A Questão Colonial, Cinema Marginal e 13 estreias mundiais no DocLisboa 2022

Entre os dias 6 e 16 de Outubro, o cinema documental invade as salas de cinema da capital pelas mãos do DocLisboa. Com a programação dividida entre a Culturgest, o Cinema São Jorge, a Cinemateca Portuguesa e o Cinema Ideal, o Festival, que celebra este ano a sua 20.ª edição, comemora o Cinema Brasileiro numa retrospectiva do cineasta Carlos Reichenbach; reflete, a partir da obra de realizadores africanos e europeus, A Questão Colonial; e conta, ainda, com várias estreias mundiais.

A Questão Colonial em foco na Cinemateca Portuguesa

Flora Gomes, Abderrahmane Sissako, Ousmane Sembène, Asdrúbal Rebelo, António Ole… São apenas alguns dos realizadores que recebem o destaque nesta Retrospectiva que tem como ponto de partida o fim de uma guerra – a da Argélia – e o subsequente início de outra, a Guerra Colonial travada pelo Estado Novo português. A recontextualização das imagens das coleções coloniais que, até ao aparecimento dos “cinemas africanos” eram compostos sobretudo por filmes encomendados para fins de propaganda nacional e internacional e que, maioritariamente, faziam o percurso Colónia-Metrópole, era essencial. 

Partindo, então, da necessidade de se reajustar o olhar para esta materialidade de arquivo, e da inevitabilidade de, com o aparecimento de cineastas africanos que resignificaram a imagem audiovisual, com um olhar confrontacional às “narrativas benignas” (a Guerra da Argélia era apelidada de um simple évènement) impostas pelos países europeus, neste caso, Portugal e França, Amarante Abramovici faz está curadoria integrada na Temporada Portugal-França 2022. A Retrospectiva convoca testemunhos directos: da Guiné-Bissau, Flora Gomes, José Bolama, Josefina Crato, Sana N’Hada; do conjunto de realizadores radicados em França, Mamadou Sarr, Paulin Soumanou Vieyra e Ousmane Sembène, dos angolanos Asdrúbal Rebelo e António Ole, do mauritano Abderrahmane Sissako… Nesta Retrospectiva cabem os olhares destes e vários outros realizadores que moldaram o cinema africano, oferecendo um novo ponto-de vista sobre A Questão Colonial.

“Eu costumo dizer que o cinema feito por nós, guineenses, começou quando nós começámos a filmar. Quando nós chegámos de Cuba, nós: a Josefina Crato, o José Bolama, o Flora e eu. Nós chegamos a Conacri a 7 de Janeiro de 1972. Havia guerra. Nós tínhamos saído da guerra, ido a Cuba e voltámos para a guerra.” (Entrevista de Catarina Laranjeiro a Sana N’Hada, Berlim, Junho de 2015)

O Cinema Marginal de Carlos Reichenbach

Também na Cinemateca Portuguesa, outra Retrospectiva. Desta feita, um apanhado da obra de Carlos Reichenbach, cineasta natural de Porto Alegre que fez das ruas de São Paulo a casa do seu Cinema – um Cinema Marginal que partilhou com realizadores como Ozualdo Candeias, Andrea Tonacci, Rogério Sganzerla ou Júlio Bressane. 

Rompendo com a tradição do Cinema Novo, o Cinema Marginal (ou Cinema de Invenção ou, ainda Udigrúdi), fortemente associado ao movimento revolucionário e ao tropicalismo, procurava um diálogo intertextual com o classicismo narrativo de Hollywood. Numa época altamente marcada pela ditadura brasileira, onde a censura reinava, o Cinema Marginal de Carlos Reichenbach mostrava inventividade e um arrojo sem-igual, onde o melodrama, o pornográfico e o experimental cantavam o sonho e o desejo. Entre mais de uma dezena de longas-metragens, onde se incluem filmes como Liliana M: Relatório Confidencial, As Libertinas ou Amor, a Palavra Prostituta, e várias curtas, a obra de Carlos Reichenbach é aqui explorada sem amarras ou constrições.

As Libertinas, de Carlos Reichenbach © DocLisboa

13 estreias mundiais nas Competições 

Cobertas as retrospectivas, foquemo-nos nas Competições Nacional e Internacional que, este ano, contam com, ao todo, 13 estreias mundiais. Na Competição Internacional, A Landscaped Area Too Quiet for Me, de Alejandro Vázquez San Miguel (Espanha), Moto, de Gastón Sahajdacny (Argentina), A Date in Minsk, de Nikita Lavretski (Belarus),  I Saw, de Vadim Kostrov (Rússia) e Such a Long March, de Dominique Loreau (Bélgica) traçam as estreias mundiais numa viagem que parte da Argentina e aterra na Rússia, juntando-se a elas It’s Party Time, de Léo Liotard (Bélgica), Se’-back, de Shichiri Kei (Japão, a única entrada da Ásia), Elfriede Jelinek – Language Unleashed, de Claudia Müller (Alemanha) e 100 Ways to Cross the Border, de Amber Bemak (EUA). 

Já na Competição Nacional, uma mescla de temas que vão desde a crise da habitação e a descaracterização que tem assolado a cidade de Lisboa, à vida secreta de uma artista pouco conhecida, e profundos exercícios de memória. Compõem as estreias mundiais a co-produção luso-uruguaia de  Maria Simões e Tiago Melo Bento, Luana, May the Earth Become the Sky, de  Ana Vîjdea (Portugal, Hungria, Bélgica), A Ilha, de Mónica de Miranda, o regresso de Leonardo Mouramateus com Vexations, Silêncios, de César Pedro (Portugal, Angola), A Casa da Rosa, de ​​Rosa Coutinho Cabral, A Morte de uma Cidade, de João Rosas, Ultimate Bliss, de Miguel de Jesus (co-produção com a Austrália). Juntam-se a estes filmes Olho Animal, de Maxime Martinot (co-produção franco-lusófona), A Visita e um Jardim Secreto, de Irene M. Borrego (Espanha, Portugal), Memória, de Welket Bungué (Brasil, Guiné-Bissau, Portugal) e Terra que Marca, de Raul Domingos.

Da Terra à Lua aos Verdes Anos: uma viagem pelas secções do DocLisboa

Dentro das secções já conhecidas do DocLisboa, figura-se também uma programação que traz à baila nomes sonantes do Documentário mundial. Na secção Da Terra à Lua, a Trilogia de Vincent Carreli sobre as comunidades ameríndias; o regresso de Werner Herzog com a longa-metragem The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft, co-produção entre os Estados Unidos, a França, o Reino Unido e a Suíça que celebra o legado dos vulcanólogos e cineastas Katia e Maurice Krafft, e o mais recente filme de Fredrick Wiseman que traz para o ecrã Un Couple, filme-monólogo que narra, a partir das cartas trocadas ao longo de 36 anos de casamento, a relação entre Lev e Sofia Tólstoi. 

Un Couple, de Fredrick Wiseman © DocLisboa

Em Heart Beats, os traços de  João Ayres por Diogo Varela da Silva, e a Pina Bausch pela lente atenta de Florian Heinzen-Ziob, que filma os ensaios de A Sagração da Primavera. O que Podem as Palavras, de Luísa Marinho e Luísa Sequeira traça a história de As Novas Cartas Portuguesas e Still Working 9 to 5, de Camille Hardman e Gary Lane analisa as desigualdades no trabalho através do ativismo de Jane Fonda, Lily Tomlin e Dolly Parton.

Ana Carolina Soares e Éric Baudellaire são os convidados da secção Riscos, que expõe “a vertigem de um cinema que arrisca, questiona as suas fronteiras e relaciona a sua história com o seu futuro”. Quatro curtas-metragens de Želimir Žilnik (cujo cinema já teve uma retrospectiva  no festival em 2015) compõem também esta programação, juntamente com o documentário de Laurent Achard, sobre Saturn Bowling, de Patricia Mazuy (montadora de Agnès Varda), também presente na secção. Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois marca o regresso da dupla João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao festival numa ode a Os Verdes Anos de Paulo Rocha, numa exploração de uma cidade que, no fundo, já não existe.

Onde Fica Esta Rua? ou sem Antes nem Depois © Terratreme

Como não podia faltar, fechamos as secções com Verdes Anos, que acompanha obras de realizadores emergentes de toda a Europa. São oito filmes portugueses em mostra, incluindo os competidores ao Prémio Fernando Lopes, CANAL44, de Tiago Bastos Nunes, Bentuguês, de Daniel Borga, Originalmente Verão, de Bianca Dias, Febre Postal, de Vasco Vasconcelos, Flores Para o Meu Pai, de Luís Afonso Matos, e Home, Revised, de Inês Pedrosa e Melo. Entradas de França, Polónia, Eslováquia, Bélgica, Espanha, Suíça, Alemanha, Húngria e Itália também fazem parte da programação. A sessão de abertura desta secção (dia 9 de outubro no Cinema São Jorge) conta com os filmes Fiesta Forever, de Jorge Jácome (2016), Manhã de Santo António, de João Pedro Rodrigues (2012) e A Soft Hiss of This World, de Federico Cammarata e Filippo Foscarini (Itália, 2022).

Cinema de Urgência a olhar pelo Futuro

Desde, 2015, a secção Cinema de Urgência integra o DocLisboa com o objectivo de “​documentar e testemunhar situações e acontecimentos relativamente aos quais é urgente criar uma comunidade de debate, de reflexão, de modo a que nos possamos posicionar”. Este ano, o Cinema de Urgência foca-se na vida de jovens que ou se encontram em zonas ocupadas ou em campos de refugiados.

Uma Nova Narrativa Para a Ucrânia é uma mostra de 46 filmes feitos por jovens que nos mostram como se vive numa zona em conflito (os jovens são oriundos de Carquive, Mariupol, Severodonetsk, Sloviansk e outras cidades da Ucrânia ocupadas pela Rússia desde 2014) inventando formas de comunicar os seus medos, as suas saudades, os seus sonhos, buscando construir novas narrativas sobre o Futuro. À sessão, que terá lugar no dia 10 de outubro no Cinema São Jorge, seguir-se-á uma conversa via Zoom com Chris Schuepp (da One Minutes Jr., que realiza oficinas com os jovens) e de realizadores dos filmes exibidos.

No dia seguinte, também no Cinema São Jorge, há a mostra Campo Aberto,onde  crianças e jovens que vivem em campos de refugiados de Katsikas, Lesbos e Thermopylae, na Grécia, recriam as histórias de vida delas e das famílias através de filmes de animação: a travessia de quatro países até se chegar ao destino final, a Grécia, o bombardeamento de uma escola, as noites de verão na Terra Natal. Aqui também se seguirá uma conversa  com a presença de Fausta Pereira (Open Camp) e Ghalia Taki (coordenadora da Bolsa de Intérpretes do Serviço Jesuíta aos Refugiados), participação via Zoom de Carlos Pastor (Open Camp) e Tahereh Rezaee e moderação de Cristina Mai Len.

Tanto numa como noutra sessão, sobressai a realidade implicada – uma realidade distante mas que cada vez mais se torna próxima através das redes sociais e dos meios alternativos. O Cinema Urgente acaba, assim, por preencher uma lacuna existente nos media tradicionais, oferecendo um olhar real a estas situações tão pulsantes, tal como elas são. 

Kenia Pollheim

[Foto em destaque: Morte Nega, de Flora Gomes © DocLisboa]

Antevisão Doclisboa’22: o sonho escorre pelas brechas da realidade em mundos uma vez privados de si

os pombos não nos pertencem
roubá-los será inútil por enquanto
e que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?
Orlando Parolini, Descrição da Praça da República para a amada que mora no interior 

Na noite da última sexta-feira, primeiro dia do mês de julho, apresentou-se na esplanada da Cinemateca Portuguesa, como habitualmente, a sessão de antevisão do Doclisboa’22, que acontece de 6 a 16 de outubro. Nesta edição, o festival celebra os seus 20 anos com a exibição de duas grandes retrospetivas: um tributo ao realizador brasileiro Carlos “Carlão” Reichenbach e uma mostra dedicada à Questão Colonial, no âmbito da Temporada Portugal-França 2022, com filmes que contam e recontam as histórias das invasões e colonizações portuguesa e francesa. Em certa medida, ambos os programas – cujos títulos datam desde as décadas de 50 ou 60 até à contemporaneidade – partilham a qualidade de testemunho, rastos de mundos que ainda cicatrizam as feridas abertas pelos saqueamentos empreendidos pelo Norte global. Do Brasil, com as curtas-metragens Sangue Corsário (1980) e Sonhos de Vida (1979), a Niger, com o filme de estreia de Oumarou Ganda como realizador, Cabascabo (1968), um destino comum marca a trajetória dos protagonistas: a premência da realidade que se impõe sobre o sonho almejado. 

Cabascabo, de Oumarou Ganda. © Direitos Reservados, Argos Films

No primeiro filme, pioneiro no retrato de uma geração pós contracultura, pós Cinema Novo e pós ditadura militar, Orlando Parolini, poeta e grande amigo de Reichenbach – e que encontra mais suporte para os seus escritos no cinema do que nos livros –, erra pela cidade de São Paulo na companhia de um velho companheiro de resistência, agora engravatado, bancário e pai. Dos “mais malditos entre os malditos”, o poeta quase não interage com o seu conhecido, que é todo admiração e elogios por Parolini. Não conversa, declama. É sozinho. E logo também o bancário o abandona: a sua hora de almoço acabou. Há que se deixar os tempos de liberdade e voltar ao trabalho sério que sustenta a família. O tempo também está contado na pequena viagem turística de duas mulheres operárias da periferia paulista. Em Sonhos de Vida, as jovens decidem embarcar numa aventura logo após se reconhecerem no comboio. A aventura, porém, guarda uma incumbência prática: a protagonista precisa buscar água potável para levar de volta à terra onde vive com a mãe. Rapidamente, a espontaneidade do itinerário imaginado vê-se comprometida. 

Também Cabascabo, soldado que regressa à sua aldeia natal depois de integrar as tropas francesas na guerra da Indochina, assiste ao gradual desaparecimento do seu dinheiro e boa reputação na medida em que escolhe viver do prazer e da generosidade. Para o personagem, as economias não interessam, verdadeiramente. O crítico e jornalista Manuel Cintra Ferreira supunha que o motivo para tal desambição fosse uma mentalidade ainda próxima de um sistema “primitivo” de troca, nas suas palavras. Contudo, suspeitamos de que também se tratasse de uma ingênua confiança no seu próprio futuro – Cabascabo chega a afirmar que um ex-soldado como ele lograria, facilmente, qualquer emprego como segurança ou polícia. É rejeitado. No desfecho do filme, resta-lhe apenas o machado e o trabalho, “para o qual parte sem lamento nem deitar culpas a ninguém”, ainda a parafrasear Ferreira. 

Em todos os casos, portanto, o trabalho aparece como força de resignação. O desejo ardente por uma renovação radical da vida transforma-se numa frágil, fraca chama, que passa a conviver com a conformidade. O sonho a escorrer pelas brechas da realidade, da fome e da sede. Há uma certa melancolia latente em todas estas tramas, seja no silêncio final e na câmera distanciada de Cabascabo, seja pela récita desesperada de Parolini, que, do topo de um carro em movimento, esbraveja ao espetator: “ah, perdida geração / o último avião passou e nos esqueceram / na plataforma nos deitamos / esperando, esperando, esperando, esperando…”. A profecia de Belchior, contemporânea do lirismo social de Reichenbach, não cessa de se repetir: apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos.

Laila Algaves Nuñez

[Foto em destaque: Orlando Parolini em Sangue Corsário, de Carlos Reichenbach. © Direitos Reservados]