O desmantelar do ego lusitano em Rosinha e Outros Bichos do Mato – Entrevista com Marta Pessoa no IndieLisboa

Rosinha e Outros Bichos do Mato, a mais recente longa-metragem da realizadora Marta Pessoa, estreou mundialmente no IndieLisboa. Na ribalta, a Exposição Colonial Portuguesa de 1934, realizada entre junho e setembro no Palácio de Cristal, no Porto, cujo objetivo era realçar a “grandeza do Império Português”. Aldeias erguidas nos jardins, parque zoológico com animais exóticos, réplicas de monumentos ultramarinos – o símbolo do império português, que se dizia uma grande nação por vias dos países ocupados, procurava ser um objeto de desejo. 

A utilização de imagens e vídeos de arquivo, acompanhada do texto denso, é reveladora do racismo secular emergindo dos poros de um império que erotizava a imagem dos povos africanos, em específico da mulher – por isso Rosinha, a mulher-símbolo de peito nu. 

O filme de Marta Pessoa, com argumento desta e de Rita Palma, apresenta no ecrã um questionamento constante sobre as práticas de uma Exposição que serviu de ode à virilidade lusa, num tempo onde muitos ainda defendem que Portugal não é um país racista. Numa exploração que transmuta o significado de nação e pertença com encenações dramatúrgicas em vários atos — destacando-se a atuação sem igual de Binete Udonque — Rosinha e Outros Bichos do Mato mantém aberta uma discussão indispensável sobre racismo e colonialismo, e a maneira como desencaixotar os arquivos pode ser uma maneira de repensar e reestruturar estigmas passados.

Entrevista com Marta Pessoa no IndieLisboa

Kenia Pollheim Nunes (KPN): Em Rosinha e Outros Bichos do Mato temos três vozes que aparecem. Duas vozes femininas em conversa e uma voz masculina que lê e explica os excertos de enciclopédias e textos ditos científicos. A narração foi sempre uma espécie de mote que conduzia o filme ou surgiu do resultado dos outros factores?

Marta Pessoa (MP): Todo o filme teve um processo de escrita e de pesquisa muito longo. Passou por várias versões. Começou por ser pensado mais como um filme já  com este título em 2016, e entre esse tempo muita coisa se passou. A determinada altura, quando já tinha o material mais ou menos todo reunido, percebi que quem tinha de falar daquilo, quem tinha de dar a “voz e o corpo ao manifesto” tinha de ser eu e a outra pessoa que escreveu o argumento. Não era bem uma estreia para mim, talvez uma semi-estreia, no filme anterior já tinha começado a aparecer em campo, não com a voz, mas com a minha presença. Alguns cineastas sentem-se muito confortáveis nessa situação – eu não, por isso fiz esse ensaio –, e neste filme achei que tinha de ser eu, que tínhamos de ser nós a fazer. Foi no processo de escrita para esta versão final que nos apercebemos que tínhamos de ser nós a fazer esse questionamento, que não podíamos deixar isto em mãos alheias porque essa é a nossa História e é uma História que estamos a questionar. A partir do momento em que percebemos isso, houve essa construção e nunca mais largámos a narração do início ao fim e começou logo por aí: “que frase é esta?”, “será bom começar o filme por aqui?”, “o quê e como é que queremos contar”.

Depois, também foi evidente que precisávamos de uma voz para aqueles textos todos que fomos encontrando. Devo dizer que há uma coisa muito importante, a maior parte deste material, talvez 95% do que aparece no filme, está disponível online. Isto para mim e para a Rita Palma [co-argumentista], que construiu isto comigo e é a outra voz, foi muito importante. Todo o material fílmico está disponível online, a maioria das fotografias também, assim como grande parte dos textos. Isto para nós foi fundamental, porque assim quem quiser ter acesso a esta história pode ter, basta pesquisar. Não precisa ir a arquivos fechados, nem a caixas recônditas. Está tudo muito acessível e estando disponível, tínhamos mesmo muito texto e material. E para nós foi evidente que quem tinha de ler aquele texto tinha de ser um homem para representar a voz masculina, o olhar masculino, o discurso do regime da ditadura, o discurso oficial. Só a determinada altura é que percebemos que podia ser só uma voz. Tínhamos pensado que, como há a voz dos repórteres, do diretor da exposição, dos “cientistas” – entre muitas aspas –, podiam ser vários atores a fazer aquilo. Mas no final percebemos que tinha mesmo de ser só uma voz. Então fizemos essa maldade àquele desgraçado do Paulo Pinto, que foi muito generoso e disponível. Demos-lhe de “presente” aqueles textos “fantásticos” para ele ler. Foi assim uma construção até determinada altura, quando fixámos o modelo, o argumento, no fundo a estrutura que se  vê agora no filme. Não sei se guiar é uma boa palavra, mas era a voz que tinha de guiar o filme todo.

Rosinha e Outros Bichos do Mato © Três Vinténs

KPN: Grande parte do filme é a montagem dos arquivos e das fotografias e dessa iconografia que mostra, como é dito no filme “os povos das colónias nas suas aldeias falsas e os portugueses na sua variedade regional”. Como é que fizeram essa montagem e curadoria de uma informação de modo a dar novo significado ao arquivo utilizado? 

MP: Nós juntámos o material todo de arquivo, o máximo possível. Às vezes queixamo-nos muito dos arquivos mas, neste caso, foram muito abertos e muitos generosos. De facto, é um material muito delicado, não é para andar a circular por aí. Nesse aspecto, foram mesmo muito sensíveis e disponíveis. Tínhamos essa responsabilidade com o material, e havia muito dele produzido na Exposição Material do Porto de 1934 que nós, porque tivemos financiamento, conseguimos ir adquirindo. Os postais feitos para a exposição, muitas revistas, alguns livros, os guias, os roteiros, os mapas, as brochuras. Tendo esse material, fizemos a curadoria e fomos articulando com as questões todas que queríamos pôr. Nós achámos que tínhamos de começar o filme por isso: “e se o filme começasse como se fosse um documentário sobre a Exposição, para depois sair daí?”. É por isso que ele começa com um lado de mostrar muito o arquivo. 

Depois, “e se o filme fosse só sobre a Exposição Colonial de 1934? Como é que mostraríamos?”. Mostraríamos as imagens em movimento e fazíamos esse questionamento do que está ali. Mostraríamos o material fotográfico e daí partiríamos para os outros materiais. Tentámos dar algum sentido àquela riqueza e muito material visto de uma forma que ainda é pouco vista como arquivo, especialmente o material sobre as mulheres, as quais, neste caso posso mesmo dizer, são o objeto de olhar e que circulam como objetos exóticos. Havia muitas camadas que tínhamos de desconstruir a partir do arquivo. 

Quisemos começar pelo material que tínhamos e pelo material do jornal. É muito engraçado, num evento, haver assim um jornal como o do Comércio do Porto Colonial, que estava montado no próprio recinto da informação para reportar o quotidiano. Tivemos de tirar sentido do material e ver como é que ele estava a comunicar connosco. Depois disso, veio tudo o resto, desde a música, as encenações e começámos a fazer essa desconstrução e questionamento do que é que eles estavam a encenar, o que é que as fotografias estavam a mostrar. Foi daí que partimos e o filme explodiu para as outras ideias, recuso-me a dizer a palavra… “ficções”!

KPN: Tinha algum receio em usar essa palavra, mas queria muito tocar no assunto das encenações. São muito teatrais, na reencenação dos bailarinos, ou quando a Binete Undonque apresenta-se enquanto Rosinha, ou com as minhotas. As expressões parecem-me tão bem trabalhadas, o ar reverente e obediente vs. o ar soturno em outras partes. Como é que foi trabalhar com os actores numa obra tão informativa, que busca a ressignificação dessa informação? 

MP: Foi exatamente como se estivéssemos a fazer uma dramaturgia. Foi tudo pensado como uma encenação. Se calhar, neste caso, mais ligado ao teatro porque parecia-nos que uma exposição seria mais aproximada a isso. Tivemos de refletir sobre a exposição colonial, o que eles expunham e como expunham. E havia a ideia, já noutra versão muito antiga do argumento, de reconstruir a exposição. Uns stands, montar umas aldeias, essas coisas todas. Isso foi sendo depurado e percebemos que tinha de haver um trabalho performático e de encenação, mais próximo do mundo teatral e da dança. Nós trabalhámos com uma coreógrafa, a Joana Bergamo, para refletir e trabalhar sobre a peça de Jean Philippe Rameau, Os Selvagens, que remonta também a uma história colonial comum ao colonialismo europeu. A partir dessa peça, tentámos  pensar quais são as várias versões.

O caso das minhotas foi muito específico. Houve um contacto direto com o Grupo Etnográfico da Areosa, um grupo muito aberto e que percebe estas questões. Elas foram muito corajosas em aceitar o trabalho. Nós falámos muito e elas acharam muito importante falar destas questões relacionadas com o racismo e desconstruir estas ideias feitas do que é a etnografia, o típico, a representação, o que é um português. Aquilo que estava presente, dos portugueses a aprenderem o que um português deveria ser, que foi uma ideia também muito explorada no Estado Novo e que ainda hoje se sofre com isso.

A solenidade é uma solenidade do próprio grupo, por isso isso foi muito fácil. Aquilo é tudo muito precioso, elas fazem tudo de uma forma muito preciosa e muito precisa, muito profissional. Aí não tive de fazer nada. O que faz parte do trabalho de quem olha e de quem cria é aquilo que eu e a coreógrafa precisámos ver como é que elas faziam e inspiramo-nos no próprio trabalho etnográfico tradicional para ver como podia ser feito.

Com a Binete, foi mais direto, porque ela é uma atriz profissional, tem feito muito trabalho no teatro e agora também no cinema e, até pelos trabalhos que ela tem desenvolvido, reflete muito estas questões. Foi outro tipo de trabalho.

Com os miúdos [da peça Os Selvagens], foi ainda outro tipo de trabalho porque foram alunos da própria coreógrafa. Percebemos como é que eles se relacionavam, que contacto é que tinham com as questões do que é ser português, do que não é, questões raciais e étnicas. O universo deles foi sempre como alunos de dança e era aí que eles estavam, e pusemos-los em confronto com uma realidade que eles não faziam ideia de ter acontecido, de ter havido zoos humanos no Século XX – para mim é chocante mas eu nasci mais perto, nesse século. Eles, nascidos no século XXI (isto continua a causar mesmo muito espanto), repudiaram aquilo, mas perceberam que há muita gente que se calhar não acha aquilo assim tão repugnante como é. Eles perceberam que ainda é uma realidade e que no futuro ainda terão de lutar contra isso. 

Rosinha e Outros Bichos do Mato © Três Vinténs

KPN: Passando às últimas cenas no museu de ciências naturais. É muito adequado acabar o filme num sítio cuja tarefa é, de certa forma, embalsamar o tempo, literalmente. Num dos últimos planos, as duas narradoras olham para os esqueletos de primatas — há alguma mensagem mais profunda ou filosófica que tentou passar com esse plano? Outra questão relacionada é se vê este filme também como uma tentativa de embalsamar aquele tempo, especialmente numa altura em que estes temas seculares, que sempre estiveram presentes, ressurgem com ainda mais força atualmente.

MP: O museu é o Museu de Ciência da Universidade de Coimbra. Aquilo é a secção zoológica, é um museu que está em transformação como muitos, e é aliás isso que digo no filme. Sempre tivemos a ideia de acabar com um museu e com essa ideia da taxidermia não só para falar com esse “bicho empalhado”, mas para questionar sobre o que é um museu e o que pode ser um museu na e para a memória futura. Não é uma coisa fechada e há coisas que podem ser desconfortáveis para nós, não só com o animal embalsamado. Mas é pensar como é que nós pensamos no passado, como é que pensamos essa informação, porque estou convencida que não é deitando as coisas fora, não é escondendo, não é reescrevendo, não é deformando. É dando mais informação, mostrando mais. Estar em constante pensamento e em constante movimento. É isso que aquele museu especificamente está a fazer. O último plano é com as caixas numa sala, que não foram valores de produção, não fomos nós que pusemos aquilo lá. Aquilo era a seção antropológica do museu porque ele estava em obras e estava tudo empacotado. Encaixotar, guardar, tirar do olhar. Ali é transitório, porque aquilo está encaixotado para se repensar como é que se pode voltar a dar a ver. Isso é o mais importante — voltar a dar a ver e estar em constante reflexão. O que é que isto significa, o que pode significar, como é que nos relacionamos com o passado, como é que voltamos a trazer o passado para dialogarmos. Acho que o Museu é isso e tem de ser isso. 

Tento não pôr essas questões — é claro que filmámos os esqueletos dos primatas mas não tenho resposta para se é metafórico ou não. Foi uma coisa muito prática e às tantas é o lado daquele cineasta prático e infantil que tem de haver: “que bonito que isto é, vamos fazer um plano assim, vamos ver se funciona e se depois nos vai trazer algum sentido”.  E algum sentido trouxe porque aquele plano esteve sempre ali e foi sempre pensado com aquela versão da música em piano, que remete automaticamente, pelo menos para mim, para uma coisa mais de salão, do século XIX e que combinava muito bem com aquilo, mas não houve essa questão. É claro que nós pensámos… é claro, esqueletos de primata, o que é isto vai dar? Mas avancemos! Tentámos deixar muitas coisas em aberto para que haja diálogo com o filme. 

KPN: Falou muito da questão etnográfica presente no filme – quais, se houver, realizadores ou tentou transpor para este filme.

MP: Ah, nunca expor os nossos mestres…! Com certeza que sim. Mas posso dizer outra coisa. Há muitos realizadores portugueses que fizeram trabalho e que não conseguiram fazer mais por diversas razões e há uns que foram esquecidos e que de vez em quando são recuperados. Um deles é o António Campos. Falo dele porque durante muito tempo pouco se falava nele ou falava-se como cinema amador. Não tenho formação em etnografia nem antropologia — há muitos realizadores portugueses que têm essa formação, a minha é em cinema, mas lembro-me do António Campos porque durante muito tempo falou-se nele como alguém secundário. E, às vezes, isso prejudica o nosso olhar sobre o país. Tem de se olhar, nem que seja para se recusar. Por isso, falo do António Campos. Falemos de António Campos.

Kenia Pollheim Nunes

[Fotografia em destaque: Rosinha e Outros Bichos do Mato © Três Vinténs]

Do invidual ao colectivo: a luta feminista mexicana pela lente do Colectivo Cine Mujer

Y Si Eres Mujer? (1976)

O título ecoa o questionamento que se impõe na curta-metragem de animação de Guadalupe Sánchez Sosa, integrante do colectivo de cineastas feminista Cine Mujer, fundado no México em 1975. Y Si Eres Mujer reitera, nos seus resolutos 7 minutos de duração, como a educação molda as expectativas individuais e exteriores sobre o que é ser mulher. A viagem desde o nascimento à vida adulta, em que o léxico da feminilidade e os rótulos de «menina», «mulher» e «senhora» abarcam fronteiras definidas e perspectivas reduzidas desde o momento do parto. 

Y Si Eres Mujer? (1976), de Guadalupe Sánchez Sosa © Direitos Reservados

Através da colagem, técnica mais que apropriada no retrato de uma vida que é, maioritariamente, uma manta de retalhos tingida pelos laivos do patriarcado e convenções sociais pré-estabelecidas pelos papéis de género vigentes, Guadalupe Sánchez Sosa traça, num registo experimental, a importância de se devolver (ou conceder) a autoridade do corpo à própria mulher. A mão de Guadalupe aparece guiando os passos expectáveis e ecoa-se na animação que se vai transmutando de inocente a cáustica, as dores de crescimento. A certa altura, a personagem confronta-se com o seu reflexo, rodeada por um espólio de batons e maquilhagem, reforçando a opressão exercida ao corpo pelo próprio corpo. Ao fundo, a canção indelével da chilena Isabel Carra é estampada no movimento, acompanhado a curta ao clímax num rasgo de cor sobre imagens que sublinham a variedade de esferas onde a objectificação da Mulher se reproduz. 

Vicios en la cocina, las papas silban (1978)

Da realizadora brasileira radicada no México, Beatriz Mira, surge Vicios en la cocina, las papas silban. As reivindicações de Y Si Eres Mujer? afunilam-se num retrato fechado a quatro paredes do dia de uma dona de casa. A névoa da rotina e do atordoamento quotidiano é racionalizado. Esta repetição é contida sobretudo na cozinha, espaço que se acumula, tornando-se demasiado pequeno para as actividades que lá se sobrepõem em simultâneo.

Vicios en la cocina, las papas silban (1978), de Beatriz Mira © Direitos Reservados

Num preto e branco que remete à nouvelle vague e num cinema doméstico comum a Vardas ou Akerman, Beatriz Mira transforma a casa num espaço de labuta. Valoriza-se o trabalho doméstico como trabalho — o plano contrapicado do frigorífico ou o close-up no liquidificador firmam-nos como totems inultrapassáveis do dia a dia. A voz off vem rematar o paradigma usual do documentário em que se narra os actos. Em Vicios en la cocina, a voz é da protagonista que reflete sobre a sua vida enquanto dona de casa, chefe de família inaudita — nos dois sentidos —, que reflete sobre o seu tédio e inseguranças. 

No final, um excerto do poema Lesbos de Sylvia Plath destoa do resto. O doméstico separa-se do domesticável, os papéis de mãe, esposa e mulher se fundem e confundem. Cede-se ao arregalar-se que surge como tarefa, uma ária à repetição:

«Now I am silent, hate

Up to my neck,

Thick, thick.

I do not speak.»

Yalaltecas (1984)

O primeiro documentário de Sonia Fritz, Yalaltecas, ruma ao alto das montanhas de Oaxaca. Das paredes cercadas de uma casa, chega-se ao seio de um colectivo de mulheres indígenas que, depois de anos de opressão, tomaram a Revolução pelas próprias mãos. O estilo documental clássico, com narração e intertítulos que separam cada uma das áreas de intervenção onde as mulheres Yalal intervieram permite o mergulho na condição feminina de um México mais profundo.

Yalaltecas (1984), de Sonia Fritz © Direitos Reservados

Filmada a 16mm, a ação da União de Mulheres Yalaltecas põe a mulher em primeiro plano em todos os sentidos – as entrevistas 1 – 1 com a líder da União, os planos em que se revelam o seu legado junto da escola técnica, da banda, das festas da aldeia, da puericultura. Sonia Fritz atribui um lugar especial a Yalaltecas na sua filmografia, considerando-o o filme que lhe fez despertar a necessidade de resgatar a histórias de mulheres e deixá-las contá-las em primeira mão.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Vicios en la cocina, las papas silban (1978), de Beatriz Mira © Direitos Reservados]

Tótem, a alquimia humana na corrida contra o tempo

De Lila Avilés, realizadora de La Camarista, filme que representou o México na corrida aos Óscares para Melhor Filme Internacional em 2020, chega-nos Tótem, drama familiar cujo burburinho o coloca no grupo de favoritos a receber Urso de Ouro na 73.ª Berlinale. 

Passado ao longo de um dia preenchido por preparativos de uma festa de aniversário, importante por, provavelmente, vir a ser a última do infermo Tonas (Mateo García Elizondo), Tótem toma como ponto de partida Sol (Naíma Sentíes), sua filha. Num ritual comum entre mãe e filha, em que a bem-sucedida travessia da ponte com a respiração presa equivale a um desejo realizado, é-nos apresentado o panorama: “pedi que o pai não morra“.

Sol é deixada em casa da família do pai, um casarão cheio de vida. Por todo o lado pairam plantas e animais das mais variadas espécies, desde caracóis a papagaios, mas também pinturas e fotografias, estabelecendo-a como uma casa repleta de história. Enquanto as tias Nuri (Monserrat Marañon) e Alejandra (Marisol Gasé) se apressam pela casa em limpezas e cozinhados, Sol ronda a casa em passinhos de lã, observando as diferentes dinâmicas enquanto não lhe é permitida a visita que tanto anseia ao quarto do pai. 

Tótem, de Lila Avilés Sol © Limerencia

Através de um trabalho de câmara intrinsecamente ligado às sensações, habitamos demoradamente nas expressões de Sol, por onde espreitamos o seu mundo interior. Com uma sensibilidade imensa, contraposta pela franqueza infantil da prima mais nova Esther, Sol vai-se soterrando pelos cantos mais íntimos da casa. “Quando é que o mundo vai acabar?” pergunta ao motor de busca do telemóvel do avô. Ainda nos restam milhões de anos, responde-lhe o software. A dúvida existencial é imensa, ainda mais através dos olhos de criança, mas a pergunta não é naïve. Contrapõe-se o fim do mundo ao fim do pai  – um tão longínquo, o outro tão iminente. 

Mesmo com as conversas focadas em Tonas, é no grupo de mulheres que lideram a casa que o filme se debruça. A relação quezilenta entre as irmãs Nuri e Alejandra, que acompanham de perto a obliteração causada pelo cancro do irmão, é simultaneamente carregada de tensão e de carinho constrangido. A relação entre mães e filhos é desenvolvida com delicadeza, num retrato provável da afeição que obriga ao walking on eggshells em volta de temas complicados que, todavia, Sol observa com atenção redobrada.

A cinematografia é quente e abafada, espelhando a casa. Envolta na penumbra da memória, a câmara acompanha a fugidia Sol. A exigência de arejar é sublinhada pelo formato 4:3, que delimita a família numerosa em planos apertados e frenéticos e enfatiza a doença de Tonas numa aproximação aterradora à vulnerabilidade da sua pele nua. Lentamente, o foco é deslocado entre os membros da família, instalando-se enquanto voyeur, um papel que Sol frequentemente encarna no meio do alvoroço.

As curandices e remédios caseiros estão, desde o princípio, cravados em Tótem. Num discorrer que privilegia a espiritualidade acima da religião, Ale contrata uma espírita para livrar a casa de más vibrações. Depois de queimar sálvia e eructar, pronuncia a casa livre de espíritos e extorque três mil pesos à crédula, que de tudo faz para estender o curto tempo do irmão – exceto pagar à enfermeira que o acompanha, a quem deve há duas semanas. Noutro momento, a família junta-se (tirando o pai cético e carrancudo) em círculo, de “corpo aberto” numa terapia quântica, na tentativa de alinhar os chacras para que Tonas consiga participar na festa. Com um suspiro de alívio, constatamos que a superstição resulta. 

Nuri (Montserrat Marañon) e Esther (Saori Gurza) em Tótem, de Lila Avilés Sol © Limerencia

O filme culmina numa comunhão fraternal, onde família e amigos de longa data discursam num tom que aproxima a despedida da celebração. O que Lila Avilés descreve como “atores como seres alquímicos” é elevado. Há uma autenticidade tão simbólica nos corpos e palavras dos modelos que torna impossível não criar uma profunda empatia. Ainda assim, Tótem vence ao não se deixar levar num sentimentalismo banal.

O filme de Lila Avilés é preenchido por símbolos, pelos tótems que o designam. Os animais povoam os cenários: Sol tem um conhecimento enciclopédico sobre eles, homenageado no emocionante quadro – uma espécie de Arca de Noé, onde os favoritos da filha puderam embarcar – que Tonas pinta e lhe oferece. Um pássaro negro, confundível com um corvo, ronda os telhados da casa, como que à espera da morte. 

Há, todavia, tanto que remete à esperança. O gafanhoto que, no Feng Shui, é o emblema da imortalidade, sobe pelo dedo de Tonas. O presente do pai, um bonsai tratado por ele há oito anos, rima com paciência e boaventura. No final, entrelaçam-se no microcosmos de fraternidade tão marcado nesta família que, apesar de todas as contrariedades, faz de tudo para esticar o tempo.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Sol (Naíma Sentíes) em Tótem, de Lila Avilés © Limerencia]

The Shadowless Tower: A sabedoria da bondade no reflexo das incertezas

Are you a bad guy or are you a good guy?, pergunta a pequena Smiley ao pai, atordoada por um sonho onde este lhe levantava a mão. Não demoramos a constatar que não é mau: entre um amor profundo nutrido pela filha e o aspecto quase infantil que se-lhe toma quando colocado ao lado da irmã mais velha, Gu Wengtong (Xin Baiqing) revela-se simpático e inócuo, mesmo que ausente enquanto pai.

The Shadowless Tower (Bai Ta Zhi Guang), do realizador chinês Zhang Lu, conquista desde o primeiro instante. Firmando-se o tom entre a discussão de sonhos e rituais apressados, vincam-se de imediato as personalidades que tomarão conta do ecrã nas próximas duas horas e meia. No papel de irmã mais velha cáustica, o timing cómico da atriz Li Qinqin brilha, e Wang Hongwei sobressai enquanto seu marido sidekick. Juntos, têm a guarda da sobrinha Smiley, a única personagem ainda incorrupta pelos calos do viver. 

Gu Wengtong, crítico gastronómico, enfrenta uma crise de meia idade. Acompanhamos uma refeição em que o dono de uma tasca típica estabelece a fronteira a partir da qual se pode ser considerado “velho”: gostar-se da comida tradicional que serve no restaurante. Gu, afavelmente abatido, delicia-se com o prato que lhe é servido. Por outro lado, Ouyang Wenhui, fotógrafa excêntrica que acompanha Gu pelos restaurantes sobre os quais escreve, não é apreciadora. Seguindo o lugar-comum que se prevê em obras que retratam esta fase da vida de um homem, o atrito entre os dois é imediato.

The Shadowless Tower, de Zhang Lu © Lu Films

A falta de jogo de cintura de Gu e o atrevimento de Wenhui inscrevem os diálogos num pingue-pongue onde cada tacada de Gu equivale a uma bola fora. Wenhui remata sempre com impulso, fazendo com que o homem tropece entre as palavras, cunhando aquela que virá a ser a sua frase chavão, repetida vezes sem conta daí em diante: “That’s not what I meant”.

Na dualidade entre mulher mordaz e menina que vê tudo com olhos puros de quem observa tudo pela primeira vez, Wenhui balança-se na corda bamba, a um deslize de cair no bordão de manic pixie dream girl. Há, por sorte, um embaraço que se estabelece entre as duas personagens, tornando a relação entre elas menos fantasiosa, circunscrita na esfera de uma vida muito mais caracterizada pela complacência do que por lascívia.

A presença de espelhos abunda, tanto na fotografia como no argumento – Gu é frequentemente confrontado com a sua própria imagem, e passamos a conhecê-lo ao mesmo tempo que ele se descobre a si próprio. Num processo inorgânico, a descoberta interna é explorada na mimese. Não é infrequente ver Gu a imitar, literalmente, os gestos e palavras dos que o rodeiam. Verifica-se a tentativa de parecer adequado ou inato, ou de tirar algum significado dos dramas subtis que se cruzam na sua vida, como a ausência do seu próprio pai, expulso de casa por um mal-entendido há quarenta anos.

Momentos que poderiam facilmente deixar-se imbuir de uma sentimentalidade bacoca são preteridos por aproximações tímidas e desastradas, mediadas por elipses. Os gestos de carinho são contidos, e a oferta para se limpar os óculos torna-se tão afetuosa como um afago. O reencontro com o pai, numa espécie de interrogatório policial, é uma das cenas mais espirituosas do filme; de seguida, o filho convida o pai a dançar ao som do DVD que transmite imagens de uma dança de salão. Balançam num abraço desastrado e não assumido, o nó na garganta do espectador confuso entre o riso e a lágrima. Neste sentido, há sabedoria inerente à cinematografia de Zhang Lu, que entende de intimidade e sabe perfeitamente quando esta deve ser respeitada. Nos momentos mais emocionais, afasta-se a câmara num panorama para a esquerda, atribuindo ao não-visto um significado intacto.

The Shadowless Tower, de Zhang Lu © Lu Films

As referências intraduzíveis não abalam a história, traçando-se um perfil rico da cultura chinesa através de constantes referências a poetas, atrizes e canções. Zhang Lu pinta uma Pequim melancólica onde, no meio de todas as interações, resiste o templo budista White Pagoda, cuja arquitetura singular torna difícil observar a sua sombra. Reza a lenda que esta só pode ser vista no Tibet, a casa espiritual do templo, e esta dualidade ultrapassa o mito, podendo imputar-se a Gu. Preso entre Pequim e a cidade do pai, onde deixa a sua sombra; dividido igualmente entre o passado e o futuro, o justo e o injusto, o amor e a tolice. 

The Shadowless Tower surge como um belo retrato das teias que ligam o ensemble de personagens a Gu em diferentes formas de amor, emoldurando o reflexo e renovando a crença na bondade. No final, o plano rima com a prosa de Lu Xun, um dos poetas que o filme benevolamente nos dá a conhecer: “I let out a yawn, light a cigarette, and blow out a puff of smoke. Facing the lamp, I silently pay tribute to these exquisite emerald heroes.”

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: The Shadowless Tower, de Zhang Lu © Lu Films]

White Plastic Sky: Face ao nada que somos, a natureza prevalecerá

White Plastic Sky (Műanyag égbolt), longa de animação de Tibor Bánóczki e Sarolta Szabó, estreou mundialmente na secção Encounters. A dupla, responsável pelas curtas Les Conquérants (2013) e Leftover (2015), traz à capital alemã a sua estreia no formato longa-duração, uma ficção científica distópica passada no século XXII.

Budapeste, 2123, revelam os intertítulos iniciais. De rajada, as palavras que aparecem escritas sobre um céu acessível apenas através de uma redoma descrevem o panorama. Os animais e as plantas foram extintos, e as regras de sobrevivência para os que têm a sorte de viver sob a redoma que encapsula a cidade são rígidas: volvidos os 50 anos de idade, os cidadãos sacrificam-se à Plantation – destino que partilham com quem procura refúgio de uma vida sem rumo – em prol de um bem maior. 

A trama centra-se em Stefan, um psiquiatra que ajuda crianças e jovens a prepararem-se para a eventual “transformação” dos seus entes queridos, e em Nora, a sua mulher. O ponto de vista de Stefan, através do qual passamos a conhecer a profissão e os contornos da cidade futurista, migra para Nora, prestes a voluntariar-se precocemente à Plantation: é-lhe implantada uma semente que, após muito sol e muita água, transformar-lhe-á numa árvore. Quando finalmente os vemos juntos, o semblante deprimido que se instala sugere uma tragédia em comum, impossível de ultrapassar.

White Plastic Sky, de Tibor Bánóczki, Sarolta Szabó © Salto Films, Artichoke, Proton Cinema

A aura plasticamente pacata da cidade encoberta transforma-se numa explosão de cor e música numa visita desesperada a uma discoteca, local improvável para o início de um plano de ação: ao descobrir o sucedido, Stefan embarca numa jornada criminosa para resgatar Nora. As placas no chão e nas paredes traçam o mapa de uma Hungria rochosa, e as panorâmicas de prédios abandonados transformam o cinzento numa paisagem recheada de nostalgia, percorrida na expectativa de chegar à única pessoa que pode reverter o procedimento a que Nora se sujeitou, o velho cientista responsável pelo projeto civilizacional vigente. 

Numa sobreposição de estilos de animação, das quais se destaca a técnica rotoscope (popularizada em Waking Life e A Scanner Darkly, de Richard Linklater) – que prende desde o princípio pela capacidade exímia de captar micro-expressões que fazem toda a diferença quando a palavra não é capaz de veicular a mensagem – Bánóczki e Szabó incorrem num diálogo complexo que contrapõe o bem maior à vontade pessoal. 

Apesar de envolto num ritmo por vezes disperso que dá demasiado destaque aos fragmentos mais banais da narrativa, White Plastic Sky é incisivo e valioso na sua mensagem ecologicamente carregada. Munida de uma nova sensibilidade, Nora consegue ouvir os desejos da árvore que encontram no destino final, um totem que sublinha o que filmes desde Wall-E a Aguirre, der Zorn Gottes vieram expor: face ao nada que somos, a natureza sempre prevalecerá. 

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: White Plastic Sky, de Tibor Bánóczki, Sarolta Szabó © Salto Films, Artichoke, Proton Cinema]

Someday We’ll Tell Each Other Everything, e o rastro das certezas proibidas

Someday We’ll Tell Each Other Everything, da realizadora franco-alemã Emily Atef, é um dos filmes a competir pelo Urso de Ouro na 73.ª Berlinale. Adaptado do romance homónimo de Daniela Krien, a longa-metragem que narra a relação proibida entre a adolescente Maria e Henner, um homem 20 anos mais velho, tem como backdrop uma Alemanha do Leste rural a respirar os primeiros ventos da reunificação alemã.

Maria, uma jovem acabada de entrar na maioridade, é acolhida pela família do namorado, Johannes. Os seus pais são divorciados, e a relação entre os três parece não ser a melhor; por isso, prefere a vida mais pacata dos Brendel, ajudando na quinta e na mercearia por eles gerida. Sem grande interesse pela escola, passa a maior parte do tempo agarrada aos livros, sendo Os Irmãos Karamazov o seu principal refúgio durante os dias que passam. A languidez dos dias de verão é refletida nos tons quentes que envolvem o filme e, inicialmente, pouco parece esbater a boaventura dos dias longos.

A paz cai por terra quando os olhares intensos entre Maria e Henner se fazem sentir, antes mesmo de uma aproximação palpável. O pressentimento de que algo intenso e perigoso está prestes a irromper desenvolve-se num processo paulatino de planos dolorosamente vagarosos, através de uma câmara que se constata em demasia – jorra-se o clichê quando a protagonista caminha por um campo extenso, o centeio esbatendo rispidamente contra o aparelho, sem mais a transmitir do que mera paisagem. O mergulho conseguido inicialmente pela simplicidade dos planos e dos diálogos cândidos em família é interrompido com slow-motions dramáticos e lens flares prescindíveis, que diminuem o filme à história de um amor proibido.

É sem pronunciar qualquer palavra que ambos se envolvem, depois de Henner aparecer, qual cavaleiro no cavalo branco, para ajudar Maria após um acidente. A cena é lenta e Atef tarda em desenvolvê-la: a anatomia dos corpos é microscopicamente explorada numa coreografia de ritmos extremos: o vaguear (quase) romântico dá lugar a uma ferocidade desmedida numa fração de segundos. À primeira, esta mudança reflete o fervor do desejo proibido; por outro lado, o pivot torna-se excessivo, nada mais que artefacto quando constantemente repetido sem nada adicionar, a não ser o que já sabemos: através de uma carta deixada à jovem, o eremita incompreendido firma o tipo de relação presa/predador que acaba por se estabelecer entre os dois (“Now I’ve caught you and dragged you into my cave“). 

No que diz ser um filme que quebra tabus sobre a sexualidade feminina, Atef adapta uma história pouco inovadora. O fascínio que se-lhe pode atribuir reside mais na sua rima com outras obras do que no filme em si: quando Maria fica doente sob a sua alçada, Henner torna-se protetor, remontando ao início da incomparável história de amor entre Tomáš e Tereza, protagonistas de A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera; ou, mesmo, a aproximação inevitável à relação anónima e problemática entre Paul e Jeanne em O Último Tango em Paris. Reinam as alusões ao universo da família Karamazov – o título do filme e as palavras finais, que surgem na voz de Maria, são retirados do discurso final de Alyosha, o mais novo dos irmãos, sobre como tudo será revelado no momento do Juízo Final.

É também merecedora de destaque a vertente historiográfica de Someday We’ll Tell Each Other Everything que, em paralelo com o dilaceramento interno de Maria entre duas famílias e dois homens, coincide com a reunificação de um país outrora fragmentado. Uma viagem ao lado ocidental ao som de Depeche Mode fixa a nova câmara fotográfica de Johannes e a possibilidade de estudar as Artes em Leipzig como elementos simbólicos do progresso; o regresso de um irmão perdido para o Ocidente às raízes revela que, por esses lados, até a agricultura passou por um rebranding, e o tradicional tornou-se “biodinâmico”. Numa incursão caricatural, luxos como o chantilly em lata, revistas cor-de-rosa ou viagens à Grécia e à Espanha vêm mostrar a mudança de paradigma e a possibilidade de um mundo inteiro por descobrir.
Todavia, o amour fou e as certezas juvenis de Maria a impossibilitam de desbravar esse mundo, ainda embrulhado numa espécie de misticismo esperançoso. Preso no vagar de uma tragédia obsoleta, Someday We’ll Tell Each Other Everything esgota-se num coming-of-age carregado de erotismo num flirt constante com o suspense que, ainda assim, falha em prender a respiração.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Someday We’ll Tell Each Other Everything, de Emily Atef © Berlinale]

Filme de João Canijo, Viver Mal, entre os destaques da secção Encounters na 73.ª Berlinale

O Festival Internacional de Cinema de Berlim, a acontecer entre 16 e 26 de fevereiro, já tem a sua programação disponível. Ano após ano, as nove secções do Festival espalham-se por mais de 20 espaços icónicos da capital Alemã, e o primeiro ano sem restrições pós-pandemia promete o regresso da Berlinale a todo o gás, incluindo a estreia de um díptico de João Canijo.

A programação inclui mais de 400 filmes ao longo de dez dias de Festival. Entre eles, 16 filmes fazem parte da secção competitiva Encounters, estabelecida em 2020 como contraponto da Competição Oficial. Dedicada a “novas visões cinematográficas, esta dá destaque a autores inovadores, cujos filmes se diferenciam na estética e estrutura.  Ficção e documentário partilham espaço nesta secção que pretende “ser um espelho dos diferentes modos de produção (…) e refletir a energia vibrante do século XXI”.

Entre primeiros filmes de novos realizadores – Adentro mío estoy bailando, de Leandro Koch, Paloma Schachmann; Kletka ishet ptitsu, de Malika Musaeva; Mummola, de Tia Kouvo; Orlando, ma biographie politique, de Paulo B. Preciado; Xue yun, de Wu Lang – e obras de autores já consagrados como o coreano Hong Sangsoo, bem como o americano Dustin Guy Defa ou a germano-curda Ayşe Polat, a secção abrange, ainda,  filmes advindos da Europa, das Américas e Ásia.

Mummola, de Tia Kouvo © Sami Kuokkanen / Aamu Filmcompany

Destaca-se, ainda nesta secção, o cinema português com uma dose dupla de João Canijo, a primeira desde que Alain Resnais levou o díptico Smoking/No Smoking ao Festival em 1994. Desta feita, o realizador português concorre ao Urso de Ouro com Mal Viver e traz à Encounters o seu contracampo, Viver Mal. O filme foca-se em três grupos de hóspedes do mesmo hotel de Mal Viver, arrastando as mulheres que o gerem para uma teia de conflitos protagonizados por grandes nomes do cinema português como Nuno Lopes e Filipa Areosa; Leonor Silveira, Rafael Morais e Lia Carvalho; Beatriz Batarda, Leonor Vasconcelos e Carolina Amaral.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Viver Mal, de João Canijo © Midas Filmes]

Lobo e Cão, do mar e do “entre”

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão, estreou a 8 de dezembro, em solo português. À boleia da tempestade, a realizadora portuense foi apresentar à sala esgotada do Cinema Ideal o filme que recebeu o prémio principal da secção Giornate degli Autori, paralela ao Festival de Veneza. “Hipnotizante” e “importante” foram as palavras que o júri, presidido por Céline Sciamma, convocaram para o descrever.

Do latim insula veio a italiana isola – lugar de exílio, ermo, cortiço… ou ilha.  Ana e Luís são dois adolescentes que vivem num pedaço de terra cercado, por todos os lados, pelo Oceano Atlântico. As suas dinâmicas sociais e familiares são exploradas com vagar em São Miguel que se revela, em Lobo e Cão, uma ilha de tradições marcadas, de cultos inexoráveis e de um isolamento que faz questionar se o acto de querer será, também, pecado. 

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

Lobo e Cão manifesta-se na desconstrução do binarismo e na (con)fusão de dicotomias num coming-of-age que, de facto, hipnotiza. Cláudia Varejão descreveu-o como um “filme-coral”, que nos parece acertado: na base do coral, Ana, a nossa personagem principal que carrega no seu âmago uma introspecção determinada que só a adolescência permite; nos “tentáculos”, cada um dos pedaços de vida que vamos, aos poucos, explorando. 

Assim, chegam-nos em mosaicos a lassidão de ser-se filha do meio, entre dois irmãos rapazes, e a relação ora maternal, ora vulnerável – algo tão simples como pedir ajuda para se abrir um cadeado pode ser um statement de remissão. A amizade com Luís abre portas para conhecermos um mundo subterrâneo de afeto e camaradagem entre a comunidade queer que Lobo e Cão resgata do apagamento a que é fadada, mostrando que, mesmo nestas isolas, a existência de um lugar seguro é alcançável. A chegada de Cléo, amiga emigrada no Canadá, que traz nas mechas de cabelo rosa o vendaval de uma juventude despudorada, desperta em Ana um querer tão forte que a desprende do embaraço.

Cláudia Varejão cede, num argumento que é mais forte em motif que trama, uma história preciosa de afirmação juvenil – em Ana, a dualidade contraditória entre querer e fazer, que lhe é desmontada pelo padre hippie que lidera as comunhões (“querer é fazer acontecer”); em Luís, a libertação em poder ser quem é e vestir o que quiser junto dos amigos e da mãe, e, ao mesmo tempo, a repressão da tradição em que continua a participar, mesmo sem caber nos seus moldes. Num dos momentos de maior tensão, Luís encontra-se na caminhada tradicional dos Romeiros, de que faz parte com o seu pai, cuja cara soturna e marcada é sinónimo de um trabalho árduo e viril, antónimo da sua.

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

A cinematografia é exímia, os planos aproximados e enquadramentos invulgares contribuem para a sensação de claustrofobia que a ilha pode causar. O Oceano pontua a ação, sendo personagem presente em todos os momentos importantes – começa repressivo e acaba libertador; é ele que dá e ele que tira, é entreposto, ponto de crime e de fuga, manifestação omnisciente que observa. O trabalho de sonoplastia insigne também se destaca: reproduz o que escutamos no mergulho e emite, em vários pontos da trama, um pranto misterioso e medonho que só poderia vir do fundo do mar.

A técnica está lá também nas atuações dos não-atores que permeiam a película: há um minimalismo inerente nas atuações que se revelam autênticas. O trabalho da procura destes atores, que Varejão descreve como “extenuante”, certamente compensou, sobretudo com a escolha de Ana Cabral, cujo silêncio tímido conquista desde a primeira cena, segurando algumas das pontas que o ritmo vagaroso do filme acaba por deixar esvoaçar.

Este esvoaçar, no entanto, não é pejorativo. Lobo e Cão encontra a sua potência no não-dito: entre o selvagem e o domesticado, entre o feminino e masculino, entre a tradição e a modernidade… é no vazio entre cada um dos binómios que se encontra o espaço necessário para crescer e afirmar a identidade, para a experimentação. Se a adolescência é um limbo desajeitado onde o bem, o mal, o desejo e o indizível são peças do mosaico, é no “entre” que principiam todas as possibilidades. 

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados]

A Questão Colonial, Cinema Marginal e 13 estreias mundiais no DocLisboa 2022

Entre os dias 6 e 16 de Outubro, o cinema documental invade as salas de cinema da capital pelas mãos do DocLisboa. Com a programação dividida entre a Culturgest, o Cinema São Jorge, a Cinemateca Portuguesa e o Cinema Ideal, o Festival, que celebra este ano a sua 20.ª edição, comemora o Cinema Brasileiro numa retrospectiva do cineasta Carlos Reichenbach; reflete, a partir da obra de realizadores africanos e europeus, A Questão Colonial; e conta, ainda, com várias estreias mundiais.

A Questão Colonial em foco na Cinemateca Portuguesa

Flora Gomes, Abderrahmane Sissako, Ousmane Sembène, Asdrúbal Rebelo, António Ole… São apenas alguns dos realizadores que recebem o destaque nesta Retrospectiva que tem como ponto de partida o fim de uma guerra – a da Argélia – e o subsequente início de outra, a Guerra Colonial travada pelo Estado Novo português. A recontextualização das imagens das coleções coloniais que, até ao aparecimento dos “cinemas africanos” eram compostos sobretudo por filmes encomendados para fins de propaganda nacional e internacional e que, maioritariamente, faziam o percurso Colónia-Metrópole, era essencial. 

Partindo, então, da necessidade de se reajustar o olhar para esta materialidade de arquivo, e da inevitabilidade de, com o aparecimento de cineastas africanos que resignificaram a imagem audiovisual, com um olhar confrontacional às “narrativas benignas” (a Guerra da Argélia era apelidada de um simple évènement) impostas pelos países europeus, neste caso, Portugal e França, Amarante Abramovici faz está curadoria integrada na Temporada Portugal-França 2022. A Retrospectiva convoca testemunhos directos: da Guiné-Bissau, Flora Gomes, José Bolama, Josefina Crato, Sana N’Hada; do conjunto de realizadores radicados em França, Mamadou Sarr, Paulin Soumanou Vieyra e Ousmane Sembène, dos angolanos Asdrúbal Rebelo e António Ole, do mauritano Abderrahmane Sissako… Nesta Retrospectiva cabem os olhares destes e vários outros realizadores que moldaram o cinema africano, oferecendo um novo ponto-de vista sobre A Questão Colonial.

“Eu costumo dizer que o cinema feito por nós, guineenses, começou quando nós começámos a filmar. Quando nós chegámos de Cuba, nós: a Josefina Crato, o José Bolama, o Flora e eu. Nós chegamos a Conacri a 7 de Janeiro de 1972. Havia guerra. Nós tínhamos saído da guerra, ido a Cuba e voltámos para a guerra.” (Entrevista de Catarina Laranjeiro a Sana N’Hada, Berlim, Junho de 2015)

O Cinema Marginal de Carlos Reichenbach

Também na Cinemateca Portuguesa, outra Retrospectiva. Desta feita, um apanhado da obra de Carlos Reichenbach, cineasta natural de Porto Alegre que fez das ruas de São Paulo a casa do seu Cinema – um Cinema Marginal que partilhou com realizadores como Ozualdo Candeias, Andrea Tonacci, Rogério Sganzerla ou Júlio Bressane. 

Rompendo com a tradição do Cinema Novo, o Cinema Marginal (ou Cinema de Invenção ou, ainda Udigrúdi), fortemente associado ao movimento revolucionário e ao tropicalismo, procurava um diálogo intertextual com o classicismo narrativo de Hollywood. Numa época altamente marcada pela ditadura brasileira, onde a censura reinava, o Cinema Marginal de Carlos Reichenbach mostrava inventividade e um arrojo sem-igual, onde o melodrama, o pornográfico e o experimental cantavam o sonho e o desejo. Entre mais de uma dezena de longas-metragens, onde se incluem filmes como Liliana M: Relatório Confidencial, As Libertinas ou Amor, a Palavra Prostituta, e várias curtas, a obra de Carlos Reichenbach é aqui explorada sem amarras ou constrições.

As Libertinas, de Carlos Reichenbach © DocLisboa

13 estreias mundiais nas Competições 

Cobertas as retrospectivas, foquemo-nos nas Competições Nacional e Internacional que, este ano, contam com, ao todo, 13 estreias mundiais. Na Competição Internacional, A Landscaped Area Too Quiet for Me, de Alejandro Vázquez San Miguel (Espanha), Moto, de Gastón Sahajdacny (Argentina), A Date in Minsk, de Nikita Lavretski (Belarus),  I Saw, de Vadim Kostrov (Rússia) e Such a Long March, de Dominique Loreau (Bélgica) traçam as estreias mundiais numa viagem que parte da Argentina e aterra na Rússia, juntando-se a elas It’s Party Time, de Léo Liotard (Bélgica), Se’-back, de Shichiri Kei (Japão, a única entrada da Ásia), Elfriede Jelinek – Language Unleashed, de Claudia Müller (Alemanha) e 100 Ways to Cross the Border, de Amber Bemak (EUA). 

Já na Competição Nacional, uma mescla de temas que vão desde a crise da habitação e a descaracterização que tem assolado a cidade de Lisboa, à vida secreta de uma artista pouco conhecida, e profundos exercícios de memória. Compõem as estreias mundiais a co-produção luso-uruguaia de  Maria Simões e Tiago Melo Bento, Luana, May the Earth Become the Sky, de  Ana Vîjdea (Portugal, Hungria, Bélgica), A Ilha, de Mónica de Miranda, o regresso de Leonardo Mouramateus com Vexations, Silêncios, de César Pedro (Portugal, Angola), A Casa da Rosa, de ​​Rosa Coutinho Cabral, A Morte de uma Cidade, de João Rosas, Ultimate Bliss, de Miguel de Jesus (co-produção com a Austrália). Juntam-se a estes filmes Olho Animal, de Maxime Martinot (co-produção franco-lusófona), A Visita e um Jardim Secreto, de Irene M. Borrego (Espanha, Portugal), Memória, de Welket Bungué (Brasil, Guiné-Bissau, Portugal) e Terra que Marca, de Raul Domingos.

Da Terra à Lua aos Verdes Anos: uma viagem pelas secções do DocLisboa

Dentro das secções já conhecidas do DocLisboa, figura-se também uma programação que traz à baila nomes sonantes do Documentário mundial. Na secção Da Terra à Lua, a Trilogia de Vincent Carreli sobre as comunidades ameríndias; o regresso de Werner Herzog com a longa-metragem The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft, co-produção entre os Estados Unidos, a França, o Reino Unido e a Suíça que celebra o legado dos vulcanólogos e cineastas Katia e Maurice Krafft, e o mais recente filme de Fredrick Wiseman que traz para o ecrã Un Couple, filme-monólogo que narra, a partir das cartas trocadas ao longo de 36 anos de casamento, a relação entre Lev e Sofia Tólstoi. 

Un Couple, de Fredrick Wiseman © DocLisboa

Em Heart Beats, os traços de  João Ayres por Diogo Varela da Silva, e a Pina Bausch pela lente atenta de Florian Heinzen-Ziob, que filma os ensaios de A Sagração da Primavera. O que Podem as Palavras, de Luísa Marinho e Luísa Sequeira traça a história de As Novas Cartas Portuguesas e Still Working 9 to 5, de Camille Hardman e Gary Lane analisa as desigualdades no trabalho através do ativismo de Jane Fonda, Lily Tomlin e Dolly Parton.

Ana Carolina Soares e Éric Baudellaire são os convidados da secção Riscos, que expõe “a vertigem de um cinema que arrisca, questiona as suas fronteiras e relaciona a sua história com o seu futuro”. Quatro curtas-metragens de Želimir Žilnik (cujo cinema já teve uma retrospectiva  no festival em 2015) compõem também esta programação, juntamente com o documentário de Laurent Achard, sobre Saturn Bowling, de Patricia Mazuy (montadora de Agnès Varda), também presente na secção. Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois marca o regresso da dupla João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao festival numa ode a Os Verdes Anos de Paulo Rocha, numa exploração de uma cidade que, no fundo, já não existe.

Onde Fica Esta Rua? ou sem Antes nem Depois © Terratreme

Como não podia faltar, fechamos as secções com Verdes Anos, que acompanha obras de realizadores emergentes de toda a Europa. São oito filmes portugueses em mostra, incluindo os competidores ao Prémio Fernando Lopes, CANAL44, de Tiago Bastos Nunes, Bentuguês, de Daniel Borga, Originalmente Verão, de Bianca Dias, Febre Postal, de Vasco Vasconcelos, Flores Para o Meu Pai, de Luís Afonso Matos, e Home, Revised, de Inês Pedrosa e Melo. Entradas de França, Polónia, Eslováquia, Bélgica, Espanha, Suíça, Alemanha, Húngria e Itália também fazem parte da programação. A sessão de abertura desta secção (dia 9 de outubro no Cinema São Jorge) conta com os filmes Fiesta Forever, de Jorge Jácome (2016), Manhã de Santo António, de João Pedro Rodrigues (2012) e A Soft Hiss of This World, de Federico Cammarata e Filippo Foscarini (Itália, 2022).

Cinema de Urgência a olhar pelo Futuro

Desde, 2015, a secção Cinema de Urgência integra o DocLisboa com o objectivo de “​documentar e testemunhar situações e acontecimentos relativamente aos quais é urgente criar uma comunidade de debate, de reflexão, de modo a que nos possamos posicionar”. Este ano, o Cinema de Urgência foca-se na vida de jovens que ou se encontram em zonas ocupadas ou em campos de refugiados.

Uma Nova Narrativa Para a Ucrânia é uma mostra de 46 filmes feitos por jovens que nos mostram como se vive numa zona em conflito (os jovens são oriundos de Carquive, Mariupol, Severodonetsk, Sloviansk e outras cidades da Ucrânia ocupadas pela Rússia desde 2014) inventando formas de comunicar os seus medos, as suas saudades, os seus sonhos, buscando construir novas narrativas sobre o Futuro. À sessão, que terá lugar no dia 10 de outubro no Cinema São Jorge, seguir-se-á uma conversa via Zoom com Chris Schuepp (da One Minutes Jr., que realiza oficinas com os jovens) e de realizadores dos filmes exibidos.

No dia seguinte, também no Cinema São Jorge, há a mostra Campo Aberto,onde  crianças e jovens que vivem em campos de refugiados de Katsikas, Lesbos e Thermopylae, na Grécia, recriam as histórias de vida delas e das famílias através de filmes de animação: a travessia de quatro países até se chegar ao destino final, a Grécia, o bombardeamento de uma escola, as noites de verão na Terra Natal. Aqui também se seguirá uma conversa  com a presença de Fausta Pereira (Open Camp) e Ghalia Taki (coordenadora da Bolsa de Intérpretes do Serviço Jesuíta aos Refugiados), participação via Zoom de Carlos Pastor (Open Camp) e Tahereh Rezaee e moderação de Cristina Mai Len.

Tanto numa como noutra sessão, sobressai a realidade implicada – uma realidade distante mas que cada vez mais se torna próxima através das redes sociais e dos meios alternativos. O Cinema Urgente acaba, assim, por preencher uma lacuna existente nos media tradicionais, oferecendo um olhar real a estas situações tão pulsantes, tal como elas são. 

Kenia Pollheim

[Foto em destaque: Morte Nega, de Flora Gomes © DocLisboa]

Alma Viva é quebranto cinematográfico e a metafísica familiar

Há quem traga um santinho no bolso e quem saiba de cor a oração. Na primeira longa-metragem de Cristèle Alves Meira, Alma Viva, mergulhamos numa espécie de submundo pouco explorado na cinematografia portuguesa: o quebranto e a bruxaria. A aldeia da Junqueira, na região do Vimioso, é o pano de fundo de uma intriga simples na teoria. É verão, cheira a Agosto, e os emigrantes retornam à terra-natal. Um deles é a jovem Salomé, que passa os meses mais quentes em casa de uma avó que nos serões canta a São Jorge junto de velas e maços de cigarros – monta-se, assim, a estaminé do ritual, que lança o mote para o desenrolar desta trama.

Alma Viva vem reacender a chama do terror folclórico português enraizado no credo popular que clama os santos e desconfia dos vizinhos. Conto moderno de caça às bruxas, o filme vem trazer ao ecrã luso os agoiros e superstições desta família emigrada, cujo fado é revirado por um peixe envenenado por nada mais que malquerer. 

Cristèle Alves Meira nega o realismo mágico de Alma Viva, mas a facilidade com que a realizadora esfumaça realidade e fantasia é notória. Os elementos que poderiam ser macabros – o altar a São Jorge, cujo ritual se inicia com a pequena Salomé a acender um cigarro; engolir uma cabeça de galinha para espantar o quebranto – acabam por se configurar numa naturalidade exímia, fazendo do espectador uma espécie de voyeur que espreita pelos cantos da casa da avó de Salomé. E, por outro lado, os momentos realmente arrepiantes são-no apenas por este realismo característico. Sobressai, em Alma Viva, a intuição: o modo como as interações de Salomé são filmadas estão carregadas de pressentimento. Paira no ar um desconforto indescritível quando esta vai até à casa da velha Gracinda, velha de aparência inofensiva mas cuja aura aponta para a desgraça iminente. 

Até esta visita, o ritmo de Alma Viva vai traçando-se devagar. Acompanhamos Salomé nos seus passeios pela vila e a ausência de amigos da sua idade – a sua companheira de brincadeiras é a Avó, cuja ternura sente-se desde o primeiro momento. Conhecemos a aldeia, as suas belezas e desacatos e as personagens autênticas que a compõem; é Salomé que nos pinta Trás-os-Montes e as idiossincrasias de quem os habita. O carinho que a pequena nutre pela Avó e pela família disfuncional é cultivado também por nós, através de diálogos autênticos e discussões intensas que se tornam quase cómicas.

A morte da Avó de Salomé, encomendada por Gracinda, custa muito. O seu pré-mortem é visceral, passa uma noite moribunda, sempre ao lado de Salomé. É, no entanto, necessária, pois acaba por marcar o passo do resto da trama. É na morte da Avó que Alma Viva encontra o seu trunfo. O folclore permanece, mas entra uma nova componente que já vislumbrávamos à distância: a dinâmica familiar descompensada entre os cinco filhos que experienciam o luto.

Alma Viva, de Cristèle Alves Meira © Direitos Reservados

Essa mãe que parte permanece, no entanto, sempre presente, através da força dos objectos. O seu altar mantém-se intocável, recebendo de novo a presença de Salomé que repete o “ritual”, desta vez sozinha, vestindo a camisa que a Avó trazia vestida e que enverga durante vários dias, mantendo aceso o seu espírito. Por entre as discórdias familiares, lutas a punho cerrado entre irmãs e os bitaites inesperadamente feministas de Dantas, o irmão cego, permanece Salomé. No seio da família é a apaziguadora, pedindo que não se zanguem, mas esta não é a sua única missão: pretende vingar-se de Gracinda, pelo mal que inflingiu à Avó.

Na aldeia, ouvem-se os rumores de uma jovem possuída por um espírito maligno. A dúvida nunca fica esclarecida, mas gostamos de pensar que é a própria Salomé, e não um receptáculo, que assombra os cantos da aldeia durante a noite, matando galinhas e invadindo a casa de Gracinda – é muito mais aterrador pensar na força inimaginável desta vingança tão premente no pequeno corpo da própria Salomé, que a faz esquecer-se das noites que passa a deambular à procura de uma suposta justiça. O mais extraordinário é a própria naturalidade com que a família lida com este empecilho. Sabem precisamente de que é feita a cura, qual cabeça de galinha engolida por inteiro, e compreendem que a única forma de se livrarem desta malfeita é dando finalmente paz à Avó, bruxa-mor de Alma Viva.

A paz chega, bíblica. Em romaria, os filhos (menos Joaquim, a voz acusmática que nunca se chega a revelar) levam a várias mãos o caixão da mãe até ao cemitério. É dia de incêndio, as chamas e os bombeiros invadem as ruas e as pessoas são obrigadas a deixar as suas casas. Resiste, porém, a necessidade de um descanso comum, e por isso seguem quilómetros a fio com o peso de um caixão e de uma vida. A camisa que Salomé vestia, enquanto sombra de si, desce também. E, no momento preciso, é-nos sanada qualquer dúvida. Cai a chuva. Eis o momento da redenção: “Benza-te Deus, bons olhos te vejam, e os maus quebrados sejam”.

Alma Viva ecoa o folclore português de O Crime da Aldeia Velha, de Manuel Guimarães, ou A Maldição de Marialva, de António de Macedo. Reconfigura, no entanto, os seus trópicos, tecendo os temas com uma modernidade que o faz, mais que credível, real, envolvendo dramas familiares que se repetem de geração em geração, e que qualquer pessoa que transpire Portugal possa reconhecer. Heranças, terras, emigração ou dores familiares são alguns dos temas que convivem lado a lado com a fantasia e a magia que Alma Viva exalta, tornando-as intrínsecas à metafísica do quotidiano. Recupero Minta & the Brook Trout, que de forma tão sábia cantou em ‘Family‘ aquilo que Alma Viva acaba por assinar:

“The vilest thing about family

Is that they own your heart for life

They can make it hurt and make it bleed

And they don’t even have to try”

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Alma Viva, de Cristèle Alves Meira © Direitos Reservados]