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73ª Berlinale (2023) Berlinale Críticas

Someday We’ll Tell Each Other Everything, e o rastro das certezas proibidas

Someday We’ll Tell Each Other Everything, da realizadora franco-alemã Emily Atef, é um dos filmes a competir pelo Urso de Ouro na 73.ª Berlinale. Adaptado do romance homónimo de Daniela Krien, a longa-metragem que narra a relação proibida entre a adolescente Maria e Henner, um homem 20 anos mais velho, tem como backdrop uma Alemanha do Leste rural a respirar os primeiros ventos da reunificação alemã.

Maria, uma jovem acabada de entrar na maioridade, é acolhida pela família do namorado, Johannes. Os seus pais são divorciados, e a relação entre os três parece não ser a melhor; por isso, prefere a vida mais pacata dos Brendel, ajudando na quinta e na mercearia por eles gerida. Sem grande interesse pela escola, passa a maior parte do tempo agarrada aos livros, sendo Os Irmãos Karamazov o seu principal refúgio durante os dias que passam. A languidez dos dias de verão é refletida nos tons quentes que envolvem o filme e, inicialmente, pouco parece esbater a boaventura dos dias longos.

A paz cai por terra quando os olhares intensos entre Maria e Henner se fazem sentir, antes mesmo de uma aproximação palpável. O pressentimento de que algo intenso e perigoso está prestes a irromper desenvolve-se num processo paulatino de planos dolorosamente vagarosos, através de uma câmara que se constata em demasia – jorra-se o clichê quando a protagonista caminha por um campo extenso, o centeio esbatendo rispidamente contra o aparelho, sem mais a transmitir do que mera paisagem. O mergulho conseguido inicialmente pela simplicidade dos planos e dos diálogos cândidos em família é interrompido com slow-motions dramáticos e lens flares prescindíveis, que diminuem o filme à história de um amor proibido.

É sem pronunciar qualquer palavra que ambos se envolvem, depois de Henner aparecer, qual cavaleiro no cavalo branco, para ajudar Maria após um acidente. A cena é lenta e Atef tarda em desenvolvê-la: a anatomia dos corpos é microscopicamente explorada numa coreografia de ritmos extremos: o vaguear (quase) romântico dá lugar a uma ferocidade desmedida numa fração de segundos. À primeira, esta mudança reflete o fervor do desejo proibido; por outro lado, o pivot torna-se excessivo, nada mais que artefacto quando constantemente repetido sem nada adicionar, a não ser o que já sabemos: através de uma carta deixada à jovem, o eremita incompreendido firma o tipo de relação presa/predador que acaba por se estabelecer entre os dois (“Now I’ve caught you and dragged you into my cave“). 

No que diz ser um filme que quebra tabus sobre a sexualidade feminina, Atef adapta uma história pouco inovadora. O fascínio que se-lhe pode atribuir reside mais na sua rima com outras obras do que no filme em si: quando Maria fica doente sob a sua alçada, Henner torna-se protetor, remontando ao início da incomparável história de amor entre Tomáš e Tereza, protagonistas de A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera; ou, mesmo, a aproximação inevitável à relação anónima e problemática entre Paul e Jeanne em O Último Tango em Paris. Reinam as alusões ao universo da família Karamazov – o título do filme e as palavras finais, que surgem na voz de Maria, são retirados do discurso final de Alyosha, o mais novo dos irmãos, sobre como tudo será revelado no momento do Juízo Final.

É também merecedora de destaque a vertente historiográfica de Someday We’ll Tell Each Other Everything que, em paralelo com o dilaceramento interno de Maria entre duas famílias e dois homens, coincide com a reunificação de um país outrora fragmentado. Uma viagem ao lado ocidental ao som de Depeche Mode fixa a nova câmara fotográfica de Johannes e a possibilidade de estudar as Artes em Leipzig como elementos simbólicos do progresso; o regresso de um irmão perdido para o Ocidente às raízes revela que, por esses lados, até a agricultura passou por um rebranding, e o tradicional tornou-se “biodinâmico”. Numa incursão caricatural, luxos como o chantilly em lata, revistas cor-de-rosa ou viagens à Grécia e à Espanha vêm mostrar a mudança de paradigma e a possibilidade de um mundo inteiro por descobrir.
Todavia, o amour fou e as certezas juvenis de Maria a impossibilitam de desbravar esse mundo, ainda embrulhado numa espécie de misticismo esperançoso. Preso no vagar de uma tragédia obsoleta, Someday We’ll Tell Each Other Everything esgota-se num coming-of-age carregado de erotismo num flirt constante com o suspense que, ainda assim, falha em prender a respiração.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Someday We’ll Tell Each Other Everything, de Emily Atef © Berlinale]

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