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Folhas de Sala

Helena Solberg: É proibido proibir!

A Entrevista

Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a

seu rosto um ar de mulher.

“Amor”, Laços de Família

Clarice Lispector 

A Entrevista (1966), de Helena Solberg, afigura-se como o espelho no qual a realizadora questiona o seu ar de mulher. Em voice over, sete dezenas de outras mulheres, de rostos invisíveis, com a excepção de Helena e Glória Solberg, expressam as mesmas angústias, dúvidas e “incoerências”. Glória é a imagem da ficção, Helena e todas as outras mulheres, cujas vozes são o seu único meio de mostração, são a evidência documental. Situado entre o documentário e a ficção, num espaço intermédio onde a ambiguidade domina a linguagem cinematográfica, entre o Cinema Novo, já inaugurado, e o Cinema Marginal, ainda por vir, A Entrevista é considerado o primeiro filme do cinema brasileiro moderno de autoria feminina. 

Os planos aproximados iniciais aos mais variadíssimos objectos de cosmética seguidos por um movimento de câmara ascensional que revela uma Virgem Maria simbolizam a formação burguesa e católica das mulheres que ouvimos, pertencentes à classe média do Rio de Janeiro, da qual Helena Solberg fazia parte.  Divididas entre as instituições patriarcais e opressoras que, no geral, caracterizam as sociedades de então, e o questionamento dessas mesmas instituições, numa altura em despertavam um pouco por todo o mundo a luta feminista e o movimento pela libertação das mulheres, o seu discurso é atravessado por reflexões acerca do casamento, da educação, da sexualidade e do estatuto social e familiar da mulher. Ao contrário do uso tradicional do voice over no documentário, em A Entrevista a montagem sonora aproxima discursos, muitas vezes antinómicos, que manifestam diferentes posições sobre estas questões, como duas faces inescapáveis da mesma condição, da mesma classe social. Tanto nos perdemos na vontade de emancipação em afirmações como “Eu gostaria de ser ativa, de fazer coisas. Mas não vejo bem um caminho. Talvez uma confusão de ideias”, como em ideias balsâmicas provenientes da construção social imposta à mulher em preceitos como “a mulher só é realizada quando se casa” ou “[a mulher deve ser] socialmente perfeita (…) Ela precisa ser culta, ler muito. Encher a vida com aulas, conferências, mas não se dedicar a um trabalho”. 

A Entrevista, de Helena Solberg © Direitos Reservados

Enquanto o jogo de oposições discursivas se constrói e destrói, estabelece-se a diferença de significados entre a imagem e o som através do olhar que acompanha uma mulher (Glória Solberg) num ritual de preparação para o casamento. O dia começa pela praia, sem que ainda nos seja possível adivinhar o seu destino, com uma atenção erótica pelos corpos que a câmara filma, expostos em tensão pela montagem numa troca de olhares que, de fictícia, apenas é visível ao espectador. De regresso a casa, a troca do biquíni pelo vestido de noiva retoma a imagem da mulher como um ideal de pureza e de virgindade que Deus entrega ao homem. A introdução da ficção através da narrativa visual é interrompida pela única entrevista, em sentido literal, que vemos em todo o filme, entre Helena e Glória Solberg, em que esta, entretanto despida do véu, inscreve nas suas palavras e na sua postura a aceitação da ambiguidade de ser mulher, a resignação perante a injunção da ficção sobre o real.

Meio-Dia

Meio-dia, de Helena Solberg © Direitos Reservados

É proibido proibir

Caetano Veloso

O gesto final de A Entrevista, constituído por fotografias da “Marcha com Deus pela Liberdade”, movimento conservador apoiante da ditadura militar brasileira de 1964, rompe com o objecto do filme, transportando-o para o intervalo (ou será que era tempo regulamentar?) temporal e contexto social da ditadura. Aí surge Meio-Dia, a segunda curta-metragem da realizadora e o seu primeiro trabalho dito plenamente ficcional. Influenciado pelos filmes Zero de Conduta (1933), de Jean Vigo, e 400 Golpes (1959), de François Truffaut, o filme elege as crianças como agentes de revolta perante a escola como instituição veículo da ordem repressiva estabelecida naquele período. 

No muro da escola vê-se uma pixação (movimento de style writing transgressor, de genealogia autónoma em relação ao Graffiti, originário do Brasil e com maior peso em São Paulo) onde se lê “A ditadura é foda.”, um plano onde convergem os planos precedentes e procedentes, configurando-se como motivo principal dos mesmos. Primeiro, uma quase tentativa de suicídio por asfixia, sugerindo a impossibilidade de fugir e de ficar; depois, a troca da escola por um passeio que termina com um gesto radical, simultaneamente de saturação e libertação, os livros escolares atirados ao rio. Dentro da escola, o gesto é outro, o gesto é assumidamente político. Ao plano dos livros abertos a boiar no rio segue-se o plano dos livros abertos pousados nas carteiras da escola. De braço elevado e punho fechado, os primeiros planos dos rostos vigilantes e ameaçadores das crianças anunciam o início, durante a aula, de uma revolução e o fim da infância. Caberá aos alunos do recreio o desfecho dela, que se concretiza na morte violenta do professor, a qual representa, na micro dimensão da escola, o fim da mesma, numa alusão política ao Maio de 1968, e no espaço social macro, ou seja, no todo da sociedade, a procura pelo fim da ditadura. Livres pela sua acção radical e revolucionária, as crianças brincam alegremente no exterior ao som de “Ambiente de Festival”, música de Caetano Veloso censurada durante a ditadura, da qual ecoavam os primeiros instrumentos no início do filme, como prenúncio da revolução que viria. Da música, Do Maio de 1968 provém o emblemático verso da música e o seu lema – “É proibido proibir”. 

Tal como em A Entrevista, exemplo do lugar que as mulheres habitam entre o dentro e o fora da história social, Meio-Dia situa-se entre o espaço da expressão institucionalizada, que é a escola dentro de muros, e o espaço da expressão livre, que são as ruas para lá dos muros, o espaço indeterminado onde habitam as crianças. Comum aos dois filmes encontramos como mediação entre o pessoal e o político o diálogo e acção colectivos, dos quais depende por inteiro a luta democrática pela liberdade e a emancipação que asseguram a agência de um povo. O alcance de sentido dos dois filmes, que extravasa as suas dimensões ficcionais para um domínio social e político mais alargado, coloca o trabalho inicial de Helena Solberg na proa do cinema moderno brasileiro e em pé de igualdade com o cinema hegemónico europeu.

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: A Entrevista, de Helena Solberg © Direitos Reservados]

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