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[La mécanique des fluids

  1. Área da física destinada ao estudo do comportamento físico de fluidos em movimento ou em repouso. 

As entradas de dicionário sugerem diferentes possibilidades de significação: [x] significa/corresponde a isto ou àquilo. Neste caso, a definição de ´Mecânica dos Fluidos´ parece ter os seus contornos perfeitamente definidos. Diz respeito a uma área científica e é intrincado figurar a sua associação com o cinema. No entanto, a curta-metragem documental La mécanique des fluids, realizada por Gala Hernández López, em 2022, constitui um momento de disrupção com estas convenções lexicais: Serão os fluidos necessariamente líquidos e gases? Será o cinema um exercício artístico longínquo da ciência e da disciplina? Dando gradualmente resposta a estas questões, este é um jogo de significações e uma recontextualização da arte cinematográfica.  

Complexa e hipnótica, esta curta-metragem tem como ponto de partida a carta de suicídio de Anathematic Anarchist publicada no Reddit a 20.02.2018. Intitulada “America is responsible for my death”, esta carta desperta em Gala Hernández a necessidade de navegar pela pegada digital deste jovem. Deste trabalho de investigação resulta La mécanique des fluids. Note-se, contudo, que esta narrativa não é mais do que um pretexto para desafiar o totalitarismo digital. Anathematic Anarchist não é relevante enquanto pseudónimo de uma identidade corpórea. É, antes, uma entidade fantasmagórica, um interlocutor impossível que representa a não comunicação e o isolamento online. Diferente daquela que o jovem havia experienciado, aqui, a impossibilidade de comunicar inaugura uma série de possibilidades. É precisamente porque ninguém vem reclamar o seu lugar que as lacunas informativas podem ser exploradas e preenchidas pela imaginação. Como um mártir daquilo que se procura problematizar, este fantasma do cinema principia uma conturbada análise da cultura incel.  

Esta palavra, resultante da fusão entre as palavras ‘involuntary’ e ‘celibates’, refere-se a uma subcultura virtual de celibatários involuntários (homens – maioritariamente heterossexuais – que se consideram incapazes de desenvolver relações amorosas e/ou sexuais). Profundamente essencialistas e misóginos, os incels reúnem-se em fóruns de discussão, onde ruminam sobre o seu fracasso e o seu ódio às mulheres. Durante os 38 minutos de La mécanique des fluids, embarcamos numa viagem digital pelos lugares online onde esta comunidade se reúne para comungar a sua solidão. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

Apesar de tudo, esta viagem é indissociável de uma abordagem empática. Os membros desta cultura não representam uma encarnação do mal absoluto ou uma mera alteridade radical. São o espelho da nossa sociedade, o resultado da educação patriarcal e da misoginia histórica e coletiva. Coloca-se em causa uma certa identificação: também nós, espectadores, experienciamos a dor do isolamento num mundo tão conectado. 

A representação do sentimento de solidão associado à experiência digital é acompanhada de um tom profundamente poético. Entre a sequencialidade mecânica desta curta-metragem, Gala Hernández encontra espaço para o diálogo com a poesia – como uma ode à humanidade, ou àquilo que dela resta. Ora, se a mecânica dos fluidos permite prever com precisão o seu comportamento e simplificar a realidade para que esta se torne manipulável e compreensível, também os perfis e as aplicações de namoro seguem esta lógica. Afinal, o amor, a emoção e tudo aquilo que é fluido exatamente por ser humano, é reduzido a um número – evento disruptivo na natureza, impossibilidade que culmina no fracasso.  

É através de recursos estéticos que o discurso fílmico se liberta da lógica sequencial do relato e constitui a expressão poética do sentimento. Vejamos: temos, por exemplo, a ilustração de um avatar perdido numa paisagem agressivamente vazia e artificial. A par desta surge a representação do mar, o único elemento efetivamente filmado além das capturas de ecrã. Repetidamente símbolo daquilo que aprisiona e isola, a imagem do mar – enquanto elemento natural – materializa, neste caso, uma forma de escape à solidão, uma descontinuidade com a lógica mecânica artificial. O mar representa o sonho: visão utópica rapidamente dissolvida em pixéis. 

Composta quase unicamente por imagens de arquivo de redes sociais, esta curta-metragem destaca-se pela estética e pelos motivos da cultura online. É um exemplo das estratégias plásticas e sensoriais do cinema ao serviço da reprodução dos efeitos que experienciamos enquanto utilizadores da internet. Através de uma sequência visual crescentemente complexa e hipnótica, alternamos entre várias aplicações e conteúdos e somos interpelados pelo pop up constante de notificações. 

La mécanique des fluids, de Gala Hernández López ©

La mécanique des fluids segue um formato digital que a aproxima do ‘desktop documentary’, um estilo de cinema pós-internet que se sustenta na captura de ecrã. Mas a que se deve a ausência de imagem captada pela câmara? Por um lado, esta parece uma escolha estética que acompanha a capacidade de o cinema apreender e documentar o fenómeno de privação do mundo real. Por outro lado, deve-se à inserção desta produção numa tese de pesquisa-criação sobre a captura de tela no cinema. 

Compreendemos que o cinema não tem necessariamente de ser distante da disciplina e da pesquisa académica. O trabalho criativo de Gala Hernández é, na verdade, uma forma de desafiar a pesquisa clássica e de materializar o conhecimento numa espécie de pensamento audio-visualizado. Esta curta-metragem revela que a pesquisa e a produção artística podem caminhar lado a lado; que a arte – cinematográfica, ou não – pode acompanhar a realidade. E é porque o processo de documentação e de realização se fundem num só que daqui resulta uma verdadeira experiência de deriva virtual. Marcada pela errância discursiva, esta emerge como um exercício de experimentação em tempo real. 

Este é um filme que nasce da ação de produzir imagem sobre a imagem e, por isso, levanta questões relativamente às práticas cinematográficas contemporâneas: 

– ‘Estará o cinema morto?’ 

– Não. Pois se a sétima arte é o cinema, talvez a oitava seja a capacidade de reinventar a anterior. 

Este gesto aparentemente redundante e supérfluo parece ser um gesto necessário de reinvenção. A captura de ecrã, que aqui substitui a imagem captada pela câmara, não representa a morte do cinema, mas sim o diálogo com o digital e a possibilidade de narrativização da experiência mediática. La mécanique des fluids não se insere, portanto, na categoria de pós-cinema. É um exemplo da arte na sua potência de renovação. É ritmo frenético, montagem cuidada e ausência de rodagem tradicional. É cinema que, num jogo de significações, se reveste de uma fluidez sui generis (como se a mecânica dos fluidos passasse a dizer respeito a si mesmo). 

Maria Mendes

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