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O Cerne Podre da Fase Tardia de Wes Anderson

Roald Dahl é um poéte maudit que conseguiu atingir um nível de popularidade massiva. Talvez não tenha apreendido o “controlo do universo” como Godard pensou de Hitchcock, mas a sua obra, no mínimo, corrompeu Inglaterra. Inglaterra e as crianças do resto do mundo que leram os seus livros sem censura parental (que sem os ler mal sabiam o que continham). Positivamente, deturpou a cabeça de milhões de crianças. Muitos destes jovens e ávidos leitores talvez tenham, mais tarde, descoberto o trabalho de Dahl para adultos: contos de uma perversão inacreditável, na verdade não muito diferentes dos seus livros para crianças. Estes contos pegam nos temas e tumultos latentes que guiam as obras infantis e trazem-nos para primeiro plano, tirando também as vestes fantasiosas que acalmavam estes centrais sismos subterrâneos. Se a analogia com Hitchcock continuar a ser permitida, os livros infantis de Dahl são a maioria da sua filmografia, enquanto os seus contos para adultos são Frenzy; ou até, os livros infantis são Hitchcock, enquanto os contos para adultos são os remakes de De Palma (VertigoBody Double, PsychoDressed to Kill…).

Quando, no ano passado, foi anunciado que Wes Anderson iria adaptar quatro destes contos em formato de curta-metragem, a resposta óbvia era a de desconfiar. De todas as matérias-primas adaptáveis, o que atraiu Wes Anderson a estes contos? E melhor ainda, de todos os realizadores contemporâneos, como é que Wes Anderson é o mais apropriado para os adaptar? Não digo sequer a um nível formal (embora pessoalmente não seja fã da linguagem estanque que Anderson tem vindo a apurar), mas consigo imaginar poucos realizadores que menos têm gosto por esta estirpe muito característica de perverso. 

Estou a ser injusto. Obviamente, há uma atração primordial a algo mais distorcido que se veio a desenvolver na fase mais tardia da sua filmografia, mas a sua abordagem temática é tão estanque como a sua abordagem formal. O estilo fica cada vez mais assoberbante. De filme a filme, Anderson entende que regras regem o seu universo e torna-as cada vez mais ditatoriais. Embora isto seja uma apuração e evolução da sua linguagem, não a vejo como uma apuração ou evolução num caminho positivo. É inegável que demonstra um universo cada vez mais coeso, mas ao mesmo tempo cada vez mais desinteressante. 

Os filmes de Anderson, tendo agora uma linguagem tão aprimorada e exata, quase que poderiam ser feitos à máquina: entregar o argumento a um computador que já saiba as regras inquebráveis e, ao aplicá-las a este texto, faria por ele a découpage, planificação, enquadramentos… Cada vez mais, se sente uma identidade única nos seus filmes, mas, ao mesmo tempo, cada vez menos, se sente qualquer outra coisa. Em vez de uma criação ativa de sentido, momento a momento, plano a plano, o pensamento baseia-se em como é que este sentido consegue ser demonstrado segundo as regras do estilo já definido. Já dizia Jean-Marie Straub: “O estilo não existe. Um filme que tem um estilo é uma merda. O trabalho que deve fazer um realizador é contra si próprio, contra a complacência, para alcançar algo que não tem um estilo, mas que consegue roubar algo ao mundo, sem saquear”. 

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Asteroid City, de Wes Anderson © Direitos reservados

Obedecendo ao modo formal do seu último filme, é necessário entrar numa tangente acerca de Asteroid City. Mesmo no único caso onde o filme em si está a questionar a possibilidade do seu sistema bizantino conseguir capturar humanidade ou sequer produzir algo positivo, não há momentos de quebra. A exploração é dada, unicamente, no registo a ser questionado, que, no fim, acaba por ganhar. Tenho dificuldade em ver este filme como uma interrogação de uma identidade formal e artística quando ela é, no fim, reivindicada, e quando nenhum momento do filme mostra ou aponta, de qualquer modo significativo, para a sua possível ruptura. O questionamento é apenas uma enunciação que se auto-iliba. (“Aqueles que apresentam um universo formal coerente no cinema de hoje em dia são cineastas decepcionantes”, Luc Moullet em “Le Masque et la Part de Dieu”).

Quando uma conversa sobre Wes Anderson começa, o primeiro aspeto normalmente realçado é o seu estilo. Além das questões que rondam o conceito de estilo já mencionadas, outra muito presente é o de quão “impressionante” é. A forma como o nível de complexidade técnica do filme lhe deveria atribuir automaticamente alguma virtude artística. No que toca a isto, penso que se está a dar um curto circuito entre complexidade e profundidade. Asteroid City não é um filme simples, é um filme muito complexo, o problema é a sua complexidade ser absolutamente superficial. O equivalente seria se, no deserto que é o seu cenário, houvesse um campo de minas, e em vez de escavar, Anderson desenhasse um padrão muito belo e complexo na superfície da areia (que facilmente o vento apaga). Não seria preferível um túnel simples e de pequeno diâmetro, mas que continuasse na mesma direção até atingir uma grande profundidade?

Para tornar mais clara esta crítica, seria produtivo pensar a relação que Asteroid City estabelece com o meio do desenho animado, principalmente com algo como Looney Tunes. Michel Mourlet celebremente distingue o cinema da animação dizendo que o primeiro é “a cognição do mundo pela câmara”. Sem querer ser purista no que toca à definição do cinema, podemos no mínimo concordar que é isso que separa o dito cinema “live action” do cinema de animação. Anderson neste filme tenta recriar uma linguagem (principalmente no que toca à estrutura do gag, na composição dos planos e no movimento das personagens pelo espaço1) que é assumidamente remetente à era de ouro dos desenhos animados americanos. É importante ter noção da distinção mourletiana porque a questão ontológica vai ter um efeito material (não só na produção, mas no produto final): Na animação há uma criação completamente livre que toma lugar no vazio (o tema nietzscheano que o Fantasia de Walt Disney aborda de forma tão bela), enquanto no cinema, para produzir o mesmo efeito, tem de haver uma imposição quase tirânica da vontade do realizador sobre os elementos à sua frente. Devido a isto, ao tentar aproximar-se desta abordagem impossível da animação, o live action teria de, ou arranjar novos termos dentro do seu meio para capturar o que quer, ou tentar uma imitação que dentro dela mesma tem de incluir o dedo que aponta para a sua própria ruptura (o momento em que a realidade sufoca sob o peso da mão do realizador). Anderson escolhe a segunda opção, mas retira o crucial dedo que denuncia2.

Na verdade não retira, mas faz algo pior: inclui um falso questionamento. O que o filme inscreve na sua narrativa (e no seu formalismo) não é a dúvida que tem de si mesmo, mas a declaração em forma de pergunta de que não precisa de se duvidar. Anderson podia ter realmente feito uma aterradora obra-prima onde questiona o porquê do seu sistema e a possibilidade de ele sequer funcionar, mas tal questionamento levaria a uma destruição do seu formalismo como o conhecemos (materialmente e a nível de ethos). 

Em vez disso, coloca no filme uma personagem fotógrafa – que, tal como ele, captura a realidade através de uma objetiva – e que no clímax metatextual do filme, ao ser questionado acerca de se o que faz está bem, se sequer faz sentido, e o porquê de o fazer, entende que não deve questionar nada e apenas continuar. Sem isto, o filme seria um vazio exercício de estilo, mas com esta faceta torna-se, não só num vazio exercício de estilo desonesto, mas também numa das demonstrações mais berrantes e chocantes de falta de curiosidade que já presenciei no cinema. Já alguma vez ouviram algo tão nojento como isto? Utilizar um manto brilhante de optimismo vazio sobre a beleza inerente das histórias e narrativas para afirmar e encorajar, tanto ao público como a si mesmo, a não pensar (dando ao filme uma mensagem anti-intelectual, onde pensar e curiosidade são defeitos e onde instinto puro e vazio são bens absolutos – se fores bom como o Wes Anderson, claro).  Será que existe outro realizador que tenha conseguido fazer tantos filmes e ter conseguido também evitar parar uma única vez para se questionar acerca do cinema, da imagem, de todas as suas implicações (elementares e complexas) e acima de tudo, do seu cinema.

O seu formalismo é então afirmado como um Ouroboros de “porque sim” / ”porque é giro”, existindo de forma autoerótica num jogo estético de espelhos. Sendo o apuramento do seu estilo cada vez mais estrito e formulaico, é difícil, até nesse campo, encontrar um oco prazer estético. Os caprichos não se deixam ficar pelo campo visual, também são narrativos, basta ver as alusões completamente vazias, deturpadas e contraproducentes a Tennessee Williams e a Marilyn Monroe.

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Asteroid City, de Wes Anderson © Direitos reservados

Retornando ao tema principal, onde isto mais me causa repulsa nem é em Asteroid City, mas numa das previamente mencionadas curtas-metragens inspiradas em Dahl: The Rat Catcher.

Grande parte dos seus problemas são aspectos já presentes na fase mais recente da sua obra e, por essa mesma razão, já expostos e explicados em relação a Asteroid City. A escolha de começar este texto ao dedicar o primeiro parágrafo a este filme não é coincidência: The Rat Catcher através de uma invenção formal acaba por denunciar e destruir o “projeto formal esquemático” que tentei criticar. 

Algo particular nesta série de filmes é a presença integral do texto dos contos na sua banda sonora respetiva.  A partir disto, Anderson tenta explorar a dissonância entre som e imagem. Mas em vez de ser pensada de forma cirúrgica, esta abordagem é estranhamente livre se se tiver o modus operandi comum dele em mente. Parece tentar exprimir todas as formas possíveis de dissonância entre som e imagem sem grande nexo ou sequer progressão. No entanto, todo o formalismo formulaico a que o espectador já está habituado mantém-se presente. Isto torna-se especialmente chocante no uso específico de uma das explorações dissonantes: a do objeto não presente. Ao longo do filme, dão-se vários momentos em que a personagem titular apresenta algo material, que no enquadramento não está presente ou é invisível (para o espectador, as personagens vêem-no). Neste momento, a ofensiva deficiência torna-se completamente flagrante: tendo em conta o extremo, estrito e absoluto formalismo de Anderson que permeia tudo o resto, quando o Caçador de Ratos nos mostra um rato sem ele estar no ecrã, o espectador não tem escolha sem ser imaginar EXATAMENTE o rato que Anderson quer que ele imagine. O formato, a cor, o tamanho… Num mundo tão estrito, invenção é impossível, tudo o resto nele nos informa, ou melhor, nos obriga, a pensar na imagem específica que ele quer que nós pensemos. 

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The Rat Catcher, de Wes Anderson © Direitos reservados

Esta curta-metragem revela que, tal como não há liberdade no seu mundo, também não há liberdade na nossa mente enquanto o vemos. Wes Anderson, propositadamente ou não, cometeu a maior perversão que um cineasta pode fazer: violar a santidade da mente do espectador, cortando asas ao seu pensamento e imaginação. Agora as nossas mentes são tão monocórdicas como a sua obra.

Vasco Muralha

  1. Neste formalismo estéril, tudo no enquadramento para de ter qualquer mistério e torna-se parte de um perverso tarot jungiano. Cada movimento de personagem, cada detalhe do enquadramento, está lá, simbolicamente, como significante – 1 x 1 – para provocar no espectador um único e específico sentimento e sensação.  ↩︎
  2. Uma última possibilidade seria, ainda, assumir o lado inerentemente perverso do seu ato tirânico de assassinar a realidade, de forma a depois tentar captar os bafos quentes de vida e realidade que seriam obrigados a escapar pelas frestas das suas garras. ↩︎

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