Chelsea Girls: Entre Vanitas 

Chelsea Girls é uma obra incontornável dentro da numerosa produção cinematográfica de Andy Warhol. O filme de 1966, corealizado por Paul Morrissey, nome sagrado no milieu do cinema underground nova-iorquino (a partir das suas colaborações com Warhol na The Factory) é um díptico de três horas e catorze minutos, no qual não existe qualquer linha narrativa, para além de um terreno comum, o famigerado Chelsea Hotel.

Este lugar, emblemático no rastreamento de uma constelação quase infinita de artistas, representa uma Nova Iorque heterogénea na sua fauna e flora, pós-moderna, fraturante, matriz da obra plástica de Warhol. A sua expressão cinematográfica, atinge uma sublimação obscura (presumivelmente na senda das suas Death and Disaster series de 1962) pelo retrato da mesma sociedade de ícones populares e de uma contracultura mundividente, sem que nada tenha de simples ou belo. 

Chelsea Girls, Andy Warhol, Paul Morrissey © Direitos reservados

O filme estabelece com o espectador uma relação física, extenuante e mútua, entre o olhar da câmara e o olhar que cada um constrói. A partir do duplo ecrã, a duração da cena respeita o tempo real da filmagem, reproduzindo o que Jean Louis Comolli define no seu livro Voir et Pouvoir como a “combinação sempre incerta do tempo da projeção na sala e no ecrã mental do espectador”. Esta tensão estende-se desde a expressão física dos corpos numa simbiose lânguida com discursos frívolos, até ao gesto experimental caótico da operação de câmara através do qual Warhol, também se insere naquele(s) lugar(es). Filmado num plano único, sem edição ou montagem, no qual o som direto é alternado entre as duas telas, Chelsea Girls é uma documentação cândida de protagonistas que simultaneamente são estrelas, promovidas pelo próprio Warhol, e vítimas, num universo de culto apresentado como janela aberta, através do qual o processo mental da montagem é estendido ao espectador. 

O filme, bem como, grosso modo, o cinema de Warhol, revela uma densidade impressionante na forma como convoca o mesmo imaginário da sua obra plástica, invertendo-o, despindo-o, tornando-o num objeto duro, sujo e trágico que não se pode traduzir, apenas aceitar (muito menos projetar como um sucesso comercial). As conversas sobre experiências sexuais detalhadas, as dramatizações de índole confessional, imoral, intrusivo, visitadas pelos fantasmas da igreja católica romana e pelo mediatismo presidencial americano, a cultura da televisão, a emoção da heroína, compõem a mise-en-scène de uma vanitas decadente, num prolongamento do tempo que contrapõe o vazio com o vital. Em Chelsea Girls, o realismo é uma construção temporal documentada no próprio ato de filmar o real, que começa apenas quando é posta do lado do espectador. 

Sebastião Casanova

Years ago, I was working on a movie…: That’s a combination 

O mais recente filme de Marion Naccache estreou em Portugal no dia 29 de Abril na competição Silvestre do Indielisboa.

Ao volante deste road movie, cujo aroma alegórico se manifesta em notas de Nadja (Breton) e de Ulysses (Joyce), deambulamos na primeira pessoa, perdidos numa estrada de Nova Iorque. O filme é construído sobre uma conversa, sem pressas, um plano sequência e um intermitente périplo noturno, iluminado por letreiros como os de Nighthawks (Hopper) e por luzes vermelhas e verdes de um trânsito que parece ter sido atingido pelo cupido. 

Years ago, I was working on a movie…, Marion Naccache © Marion Naccache

A viagem adquire um sentido duplo, contrário ao da estrada, à medida que Tom Jarmusch, em conversa com a realizadora, reconstrói, através da memória, pequenos contos reais, de génese Beatnik, oriundo do mesmo jardim de Robert Frank, da poesia de Allen Ginsberg ou de Patti Smith. Filmes que correram mal por terem tudo para tal, problemas técnicos e outros que cambaleiam para qualquer lado menos para a resolução, orçamentos sempre ausentes ou escassos, peixes mortos, lugares estranhos e traficantes de esquina com muito serviço, surgem numa constelação rica e intrigante.

Years ago, I was working on a movie…, Marion Naccache © Marion Naccache

Years ago, I was working on a movie… é uma história dupla sobre a relação com a câmara, que vai e vem, e nesse fluxo transporta e combina histórias do panorama do cinema independente dos anos noventa em Nova Iorque, vividas por Tom, e uma autocitação sobre a realização do próprio filme que vemos, feito entre o ano de 2004 e o ano passado. Não chegamos a perceber bem para onde dirigem, mas ficamos a par de um arquivo geográfico de antigos lotes e lojas de conveniência que desapareceram ou existem agora noutro local, juntamente com as personagens que surgem a propósito desses espaços. Almas errantes, tão nítidas no cinema de Jim Jarmusch, irmão de Tom. Tudo isto se escuta à medida que a noite cerra e o carro avança incerto no plano com um bokeh em forma de corações, que poderá ser uma escolha estética ou a representação de pequenos desejos ou talvez de uma visão ébria da estrada. 

Marion Naccache aborda o cinema na ligação direta com o fazer, from hand to sight (no sentido que poderá ser atribuído às esculturas From Hand to Mouth de Bruce Nauman) relacionando-se com a câmara, tanto pelo que está a ser feito como por o que está a ser dito. Não é isso, antes de tudo, o cinema? 

Sebastião Casanova

Euridice, Euridice: Cessa a melodia

Em dezembro de 2021, Maria Filomena Molder apresentava a primeira das suas Três Conferências: Lança o teu pão sobre as Águas (sobre o Qohélet/Ecclesiastes), afirmando a certa altura que dizer “uma vida inteira com alguém” só se pode fazer uma vez — este “toda a vida” não é cronológico, mas sobre a vida de um amor que existe.  Noutra sala do mesmo edifício estreou esta segunda-feira Euridice, Euridice (2022), a curta-metragem de Lora Mure-Ravaud em competição internacional no Indie Lisboa. 

Euridice, Euridice, Lora Mure-Ravaud ©Alva Film – 5à7Films – Preludes

É algures dentro deste amor intenso que o filme nos coloca, como um terceiro elemento, disponível para refletir sobre Ondina (Ondina Quadri) e Alexia (Alexia Sarantopoulos) bem como sobre o elo carnal e apaixonado que entre as duas resplandece. Entre o ruído lânguido dos beijos ternurentos e a beleza natural das formas e do afeto que tecem uma pela outra, situamo-nos duplamente na antiguidade clássica do mediterrâneo e na contemporaneidade de uma relação que podia ser nossa. A lira de Ondina não é a bateria que toca, mas a transparência dos seus olhos verdes, como o escudo em que Caravaggio se retratou como medusa petrificada. O que promete afastar Alexia é a imperatividade do que a faz musa, uma rodagem de um filme na Grécia. 

O filme de Lora Mure-Ravaud devolve-nos o mito de Orfeu e Eurídice, sobre os cristais de planos aproximados que nos angustiam com perguntas sobre o que já sabemos. O desaparecimento é revisitado à luz do gesto e da falta dele, contemplado como se de uma métopa se tratasse: olhamo-la alto, erguida entre belos adornos e apesar de vazia não nos poupa sentidos. Somos transportados dentro deste amor onírico, através de uma narrativa que envolve liricamente as cores e os lugares de forma a que lhe possamos quase sentir o cheiro: os estofos dos bancos de trás do carro, os lençóis frescos e profundos, o café quente da manhã, o cuidado transparente de um choro, o calor vermelho da noite, a aridez quente de um dia, em que se canta a gritar, a plenos pulmões uma dor que se aceitou. O efeito do tempo é tão magnético como tudo o resto, pela alternância entre a riqueza visual combinada com o silêncio e uma misericordiosa voz-off sobre fundo negro, que a certa altura nos vem salvar. 

“Procurar-te nos outros 

e falhar

não te encontrar 

mas ter sempre comigo 

o gigantismo da tua ausência” (Sónia Balacó).

Sebastião Casanova

Rodeo: And this bird you cannot change

Chega-nos como um trovão, que arranca do asfalto a poeira e nos colhe numa energia feroz. Rodeo (2022), a primeira longa-metragem de Lola Quivoron que conquistou Cannes na seleção Un Certain Regard, estreou em Portugal na competição internacional do Indie Lisboa.

O filme constrói-se em torno de Julia (Julie Ledru), rebelde sem causa e sem casa, que procura ganhar notoriedade no mundo do cross bitume dos subúrbios parisienses. A mota é o seu paliativo, na aridez do quotidiano onde a violência é a linguagem e a dor aniquila o medo. Habituada a ser empurrada para dentro e para fora, Julia surge destemidamente à procura de um lugar num meio onde a masculinidade tem uma octanagem tóxica e os motores rugem para o horizonte longínquo. 

Rodeo, Lola Quivoron  © Les Films du Losange

O filme de Lola Quivoron recorda-nos a fisicalidade inerente à matriz do cinema, através de uma predominância acrobática de movimentos e de forças que atravessam os corpos em direção ao nosso olhar, de forma inovadora, num universo sintomático de westerns e easy riders. Rodeo é uma fábula ou um conto de estrada, que, apesar da previsibilidade e trama acanhada, conjuga a crueza de uma realidade dominada pelo masculinismo tóxico com a força transgressora de um corpo livre que não faz reféns. Filmado com lente anamórfica, a partir de dentro, isto é, de uma relação autêntica com os membros desta comunidade, Rodeo é um gesto fresco e franco no modo como documenta o realismo dos corpos ao mesmo tempo que constrói a sua própria mitologia.

Rodeo, Lola Quivoron  © Les Films du Losange

A volatilidade motriz de Julia surge ex-machina arrastando consigo simulacros de figuras maiores do que a vida, portadores da mesma luz comovente e sombria, como Gloria (John Cassavetes) ou Thelma & Louise (Ridley Scott), e guia-nos por uma estrada sem horizonte, de familiaridade aparentemente, onde reaprendemos tudo sobre a liberdade. 

Entrevista com Lola Quivoron no IndieLisboa

Lisboa, 28 de Abril de 2021

Lola Quivoron  © Direitos Reservados

Sebastião Casanova: Fala na beleza da indefinição e no modo como o que foge ao controlo lhe é tão atraente. Quando vejo a forma como Julia conduz, imagino que seja disso que se está a falar. Como é que se gere esse desejo incontrolável durante as filmagens?

Lola Quivoron: Eu quis que este filme tivesse uma abordagem do tipo documental. Assim, o equilíbrio entre o que está escrito e o que não está existe sempre em movimento. Acredito realmente que o movimento é essencial à criação, e especialmente neste filme foi o centro de tudo, porque o movimento é o corpo dos atores, e eu concentrei-me em seguir os movimentos corporais o tempo todo. Neste filme os corpos expressam muito, até mais do que as palavras. É como um olhar sobre os corpos e como eles podem ser mais do que o físico, por isso há muitas camadas do que um corpo é em termos de representação. Para responder à pergunta, todas as sequências foram escritas e realmente preparadas, decidimos isolar-nos com os atores para preparar todas as sequências e definir o guião e improvisamos muito, reescrevi muito com eles. Depois no set, quis que libertassem toda a energia para filmarmos e por vezes era até demais.

SC: Julia carrega em si uma força maior que a vida, por vezes quase erótica, especialmente quando se relaciona com as motos que rouba, e simultaneamente lúgubre que brilha dentro dela como uma estrela. Esse corpo, como a música de abertura “Corpo Sujeito”, não pertence aqui, é demasiado raro para a Terra. Não há nada que possamos fazer, apenas aprender. O que isso deveria nos dizer?

LQ: Trata-se de ser um sujeito e não um objeto. Estamos habituados a ser objeto de olhares, aprisionados em definições estanques como corpos, pessoas, seres humanos, e o filme procura destruir esse tipo de representação. Julia (Julie Ledru) está sempre a lutar contra os olhares, em termos de repressão, sejam olhares sedutores, de um mundo dominado por homens ou talvez de um tipo fantasioso perturbador. Ela luta com a mota e com a paixão por conduzir. A mota é a extensão do seu corpo, uma maneira de se elevar. Ela encontrará uma maneira de ser livre disso e ser apenas movimento em cima da mota, soltando-se do aprisionamento dos olhares, da representação e da definição. O nickname de Julia é unconnue, o desconhecido, e é sobre como ser livre e não definida como uma mulher, por exemplo. Porque é um personagem que está realmente entre mundos, entre o espectro da representação de género, entre o mundo dos mortos e dos vivos, dos sonhos e da realidade. Por isso é livre, e sim, aprendemos sobre a experiência corporal, sobre esse ser humano que atravessa uma comunidade e quer estar no topo, ser uma lenda, ser reconhecida.

SC: Uma das coisas que mais gostei foi a visão que o filme nos dá ao estabelecer uma relação física com o espectador através da manipulação destas máquinas poderosas como se fossem a última coisa na vida, analogamente ao próprio ato de filmar. E claro, as várias referências ao cinema: a relação entre o asfalto e o deserto, as motos e os cowboys, cavalgando pelo horizonte sem medo da morte. Fez-me pensar que Julia subverte o próprio imaginário com sua moto, assim como um realizador possa ter de fazer quando filma.

LQ: Eu trabalho com arquétipos, mas não com figuras concretas retiradas de filmes. Não existe o equivalente (de Julia) ou um tipo que se possa distorcer. Mas talvez tenha pensado no Travis, o personagem principal de Taxi Driver, que é muito sombrio, misterioso, violento e amoral. Não existe personagem feminina equivalente, então pensei bastante nele para construir Julia, porque queria que ela não fosse sedutora, irreverente, violenta, e com muita raiva dentro dela. Também queria que ela fosse misteriosa e que não explicasse muito. Uma personagem sombria. Mas acho que é muito importante construir novas representações, e estou realmente conectada às teorias queer e como criar imagens dissidentes feitas com elementos que conhecemos, como clichês, estereótipos e arquétipos, mas distorcendo-os em representações plurais, novas formas, novas visões, novas emoções. Acho que Julia é o exemplo perfeito disso porque tem muitas camadas dentro das representações normativas, porque ela está entre géneros. Podia desempenhar ambos os códigos masculino e feminino, mas onde ela está realmente é entre os dois. E acho que o mais importante no filme é o que ela tem dentro dela, a sua subjetividade e a sua voz interior espiritual, e o facto do o corpo ser uma espécie de armadilha, do qual ela se quer ser livre, porque somos mais do que apenas corpos.

Sebastião Casanova

[Fotografia em destaque: Rodeo, Lola Quivoron  © Les Films du Losange]

All the Beauty and the Bloodshed: Renascer da espuma 

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All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Nan Goldin

O mais recente filme de Laura Poitras, que arrecadou vários prémios, entre os quais o Leão de Ouro em Veneza, é um retrato cândido da artista estadunidense Nan Goldin. Indissociável da vida, a sua obra traz-nos agora um arranjo misterioso do qual podemos colher, muito a tempo, conhecimentos de nós próprios (aproveitando as palavras de Joseph Conrad no seu romance de 1902, Heart of Darkness: “Droll thing life is — that mysterious arrangement of merciless logic for a futile purpose. The most you can hope from it is some knowledge of yourself — that comes too late — a crop of unextinguishable regrets”). 

Em seis capítulos, a realizadora faz convergir o presente e passado da artista Nan Goldin, desde as suas primeiras fotografias até ao triunfo (sempre insuficiente) contra a família Sackler, juntamente com o grupo P.A.I.N (Prescription Addiction Intervention Now) que fundou em 2017. Num magnífico gesto fílmico de Poitras, que se liga intimamente ao de Nan, através da carne (as suas fotografias) e das palavras que vai narrando, All the Beauty and the Bloodshed (2022) é um objeto que surge de uma reconstrução, renascido das cinzas do cru sustento da experiência real da memória. 

“Please, call me Nan” pediu ao público na masterclass que deu no Teatro Rivoli, em setembro do ano passado, na qual afirmou ter deixado de fotografar por considerar que hoje tinha o significado oposto do que nos mostra o seu trabalho. Não existe, na sua obra, separação da vida. Não começou a fotografar com o intuito de fazer arte mas de captar a beleza da sua única família — os seus amigos — e de a mostrar ao mundo. 

All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Nan Goldin

É o reflexo desta empatia que confere às suas imagens o icónico lirismo cru que alicerça a balada da sua vida. The Ballad of Sexual Dependency (1983-2022), em particular, funciona como um registo inestimável da sua comunidade, que viria a ser assombrada pelo vírus da SIDA, transformando-se forçosamente num memorial dos seus entes queridos. O olhar complexo sobre a intimidade expandiu o retrato de temas humanos universais, como o desejo e a violência, desde sempre presentes na arte. Sobretudo pela alteração de um olhar sexista sobre o nu, desafiando o espectador a entrar no olhar da artista sobre o sujeito fotografado. Em paralelo, o filme mostra como Nan renasceu dentro da força da comunidade que nunca (a) abandonou, usando agora a sua influência como artista para expor e derrubar a pretensa filantropia da família Sackler, cujo império foi erigido à custa de campanhas de marketing agressivo de fármacos altamente geradores de dependência.

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All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Nan Goldin

Num exercício que poderia sintetizar a obra de Nan — o reflexo universal na espuma de um mergulho pessoal — All the Beauty and the Bloodshed (título que surge do relatório hospitalar da sua irmã Barbara) consubstancia a repetição de perder o que se ama, até ser restituída a beleza da memória de forma simples. O filme de Poitras é também um engenhoso mapeamento de locais e artistas de uma certa Nova Iorque, heterogénea e palimpséstica nas suas subculturas, contribuindo, por isso, para um importante glossário artístico bem como para uma reflexão prática sobre autenticidade na fotografia.

Sebastião Casanova

[Foto em destaque: All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Direitos Reservados]

III Guerra Mundial: A simplicidade do mal

É sobre uma citação de Samuel Langhorne Clemens, amplamente conhecido pelo pseudónimo Mark Twain, que III Guerra Mundial, (2022) de Houman Seyyedi, se constrói: “A História nunca se repete, mas por vezes rima”. 

A nota de Twain transporta uma aura sorridente face à razão de simplicidade/veracidade própria do seu universo que se instala mesmo antes de conhecermos Shakib (Mohsen Tanabandeh). Perscrutamos a conversa gestual in media res entre o protagonista e a sua amiga surda-muda Ladan (Mahsa Hejazi) na qual a particular ausência de vociferação redobra a atenção para o diálogo. Shakib faz um gesto transversal ao pescoço que dispensa traduções, concluíndo o prólogo da diegese.

Shakib é um homem que sobrevive depois de perder a família num terramoto e começa a trabalhar na rodagem de um filme que reproduz o Holocausto. Sem aviso prévio, a produção recorre a ele e aos restantes operários para figurantes, no papel de prisioneiros do campo de concentração. Momentos adiante no que se virá a revelar numa espiral cáustica de eventos, o realizador decide que Shakib tem “algo” que é preciso para o papel de Hitler. 

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III Guerra Mundial, Houman Seyyedi © Leopardo Filmes

Se a frase de Twain nos deixa em mente um sorriso simples e puro, a aridez emocional que transborda do protagonista traduz um estado de sobrevivência desapegada e desapaixonada no qual a razão de viver se reduz ao automatismo do hábito. Ao entrar no deserto interior de Shakib, o espetador concebe uma realidade precária e solitária, marcada pelas características anteriormente mencionadas. Contudo, o pessimismo requintado instalado gradualmente, consegue ter um efeito peristáltico precisamente pela mesma simplicidade da nota inicial. 

As “rimas” que pululam numa coreografia inesperada, “totalmente original e chocante” (Atom Egoyan), sublevam o que entre elas se transfere en abyme, de uma forma notável, dentro e fora do ecrã: no ato de resistência que significa per se filmar-se hoje no regime opressor do Irão (na senda de Rivette mostra como este filme é em si um documento sobre a sua própria execução) bem como na abordagem dupla da reprodução do Holocausto dentro do cinema. Com efeito, dentro e fora de tela, as rimas fundem-se à luz da simplicidade inicial, condição que exalta nas imagens a frescura de uma crueldade crua. No filme dentro do filme, a reprodução do Holocausto é apenas um pretexto ao serviço do mal, uma coincidência que tem tanto de nefasta como de cândida.

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III Guerra Mundial, Houman Seyyedi © Leopardo Filmes

O traço humorístico da narrativa desdobra-se precisamente a partir destas coincidências (miméticas) mesmo à frente dos nossos olhos sem que tivéssemos aceitado vê-las. A troca de roupa dos operários de rodagem para um pijama às riscas é célere no modo como (não) os coloca numa posição tão diferente, chamando drasticamente à realidade sobre uma manipulação de expressão física que se repete. Veja-se por exemplo o plano que mostra os “prisioneiros” atrás das grades, enquanto comentam o desempenho do primeiro ator no papel Hitler antes de “sujar a roupa toda”. É nesta sequência que Shakib é escolhido a dedo pelo realizador para o papel de führer numa revelação atroz em que o vazio emocional é escolhido para ser preenchido pela figuração do abjeto — a simplicidade do mal. Em boa vizinhança com o O Grande Ditador (1940) de Chaplin (na videochamada entre Shakib e Ladan) o protagonista torna-se, por fim, na arma de Tchekhov de ambos os filmes.

Sebastião Casanova

[Foto em destaque: III Guerra Mundial, Houman Seyyedi © Leopardo Filmes]

Tár: Entre o que se percebe e o que se concebe

É através de um ecrã que é dado o tom de Tár (2022), num live que rima simultaneamente com o enquadramento de uma situação e com a morosa iminência do que está para acontecer. Simultaneamente, Tár é Lydia (Cate Blanchet) e um espaço observacional, no qual mergulhamos, onde a genialidade, o poder e o fantasmático estabelecem entre si uma inextricável relação de conflito.

Lydia Tár é uma maestrina brilhante, cujo nome entrou para a história, reconhecido amplamente como o de uma das maiores maestrinas vivas e a primeira mulher a dirigir a Filarmónica de Berlim. Numa das primeiras cenas, ficamos a par do seu notável e extenso currículo, através de uma entrevista conduzida por Adam Gopnik (cameo), a propósito do lançamento da sua biografia “Tár on Tár”. Na entrevista, que grosso modo decorre em mezzo piano, ouvem-se os pontos acutilantes para o curso da narrativa: o papel do maestro, do ponto de vista do controlo do tempo (a espontaneidade da musica é uma ilusão) e a leve discussão sobre a relação de Gustav Mahler (compositor no qual Lydia é especialista) com a sua mulher Alma, com enfoque na credibilidade desta como compositora aos olhos do marido (“só há lugar para um idiota”).

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Tár, Todd Field © Focus Features

A estética de Tár é assim estabelecida numa musicalidade simbólica desencadeada através do diálogo. Em Tár os símbolos são charneiras e vão sendo ativados num lento crescendo, contínuo e contíguo com o que não podemos garantir estar a ver nem a ouvir, isto é, com presença de fantasmas: da estetização do bélico, no próprio espaço de Berlim (para além do espaço físico, em referências históricas), na música clássica per se (já com a controversa nota de abertura sobre Mahler e Alma), na figura de poder do maestro (e na relação com os seus subordinados) e, requintadamente, na figura de uma mulher lésbica no papel de “deus” (de quem se gosta), acusada de abusos sexuais (mas não se pode).

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Tár, Todd Field © Focus Features

Todd Field orquestra provocadoramente esta rapsódia de conflitos quase como se se tratasse de uma epoché, em que a mise-en-scéne está em perfeita harmonia com uma frieza estética de símbolos, numa narrativa em que a ambiguidade é uma neblina envolvente. Lydia viaja sempre de jato, mas conduz um Porsche elétrico (uma incongruência que lhe podia servir de síntese). Representa uma descentralização da masculinidade preponderante no meio da música erudita, embora conserve imaculadas as suas propriedades tóxicas. Deus está presente (“ele vê tudo”) em Tár e em Lydia, oscilando entre o reconhecimento divino e o adestramento dos seus (fiéis) seguidores. Nas palavras de Luís Miguel Oliveira “é dos filmes mais me too que já se fizeram, mas a protagonista e abusadora é uma mulher, e uma mulher lésbica”. No próprio diálogo verifica-se esta dicotomia palpitante entre o que se percebe e o que se concebe, quando a certa altura há um equívoco fonético entre a palavra misoginia e misogamia.

Com efeito, os símbolos que compõem Tár, em três andamentos — contemplação, crise e queda — surgem-nos num cruzamento de atuais guerras culturais e de uma série de clichés dos retratos de poder, sedimentando uma imagem mais ou menos familiar de alguém que beneficia dos seus privilégios de maneiras eticamente dúbias. Projeta-se no mundo com um único propósito: a arte. Lydia Tár, fria, determinada, genial, maquiavélica e alvo de um escândalo, é uma personagem reescrita sobre um palimpsesto de figuras sobre as quais se mantém aceso o debate sobre a (não) separação entre a arte e a vida. 

Sebastião Casanova

[Foto em destaque: Tár, Todd Field © Focus Features]