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Napoleon: Moi non plus

Café e Cigarros é uma secção pensada para momentos em que é conveniente acelerar o metabolismo de leitura. 

Uma espaço para crónicas cinéfilas na forma de confissão aberta, curta e informal, sobre cinema no sentido lato, propensa ao cruzamento de temas e sem barreiras temáticas. 

O nome foi emprestado por Jim Jarmush, já que tão bem descreve as nossas conversas entre seminários da FCSH.

Napoleon: Moi non plus é o texto que acende o primeiro cigarro.

Presumivelmente, terão de se ter em conta alguns aspetos romantizados em torno de Napoleão, como é o caso da idade precoce com que iniciou toda a sua carreira, e, consequentemente, a idade com que teve às suas mãos um império. Mas não seria isso “o que se usava na época”? Serão esses os verdadeiros motivos que o tornaram uma figura disruptiva, rodeada de amor e ódio? Terão sido esses os motivos que levaram Ridley Scott a fazer, como este terá dito algures nas campanhas de marketing ao filme, “um retrato rock and roll da figura de Napoleão, mais do que um retrato assente no rigor histórico”1. Não há muito de rock and roll em ser-se jovem e ter-se um ego enorme inflado com influência e poder, agindo de forma irascível e rude e evidenciando fragilidades de carácter. Ou, se calhar, até há…

Quem anda aqui preocupado com o rigor histórico, não está de certo à procura de ver cinema. Dito isto, quem vem ver Napoleon (2023) à procura de ver cinema, encontra-o apenas nos escombros da mestria com que Scott recria a destruição. Para além disso, e das fragilidades do mítico imperador, encontram-se também entre os escombros as fragilidades do filme. Se pensarmos em Exodus, realizado por Scott em 2014, é evidente a irrelevância do rigor histórico (curiosamente, o palco é novamente o Egito). Talvez Napoleon seja arvorado na componente mítica do homem, no misticismo da sua correspondência com Josefine (Vanessa Kirby), provavelmente adubada, depois de vendida, para se tornar mais rentável. Bem como os relatórios bélicos das batalhas vencidas aos comandos de Napoleão (Joaquin Phoenix), escritos pelo próprio, nos quais este não terá certamente aproveitado para afagar o ego.

De qualquer forma, dou por mim a fazer conjecturas e suposições e muito pouco a falar de cinema. Se se vai ver Napoleon à procura de rigor histórico, ou de um filme de época comme il faut, é um problema do espectador. Que Scott, apesar de todos os esforços, não tenha conseguido fazer de Napoleão um alien, mas apenas um homem que tentava colmatar as suas inseguranças com o derrame de sangue (mais um?…) é um problema do filme. De Scott não será, que investiu tudo na reconstrução bélica (construir a destruição), uma força que não se segura no contínuo do filme, chegando mesmo a ser redundante. Joaquin Phoenix é belissimamente pródigo a desempenhar, em simultâneo, o visível e o invisível, a carapaça quitinosa e o tumultuoso desenrolar introspectivo que vive na iminência de se revelar (lembremo-nos dos seus papéis em The Master (2013) de Paul Thomas Anderson, You Were Never Really Here (2017) de Lynne Ramsay, e Joker (2019) de Todd Phillips, entre outros) mas, ainda assim, continuo a não falar muito de cinema. Certo utilizador da plataforma Letterboxd, fez um comentário ao filme de Scott, afirmando que “mal podia esperar pelo filme de Sofia Coppola sobre Josefine”. Acontece que Scott começa em Napoleon precisamente onde Coppola acabou, em 2006, com Marie Antoinette: um belíssimo exemplar a seguir de como fazer um retrato rock and roll

Não vou mentir e dizer que não percebo o descontentamento de alguns perante um histérico Robspierre a tentar pôr termo à vida enquanto berra como um peaky blinder, ou perante um retrato de uma das figuras capitais francesas, no qual a única palavra que se escuta na língua de Victor Hugo seja “madame” (para além de “Vive la France”). Nem no recanto da alcova se ouviu um “je t’aime, moi non plus”. Enfim, Napoleon vinha imbuído de todo o imperialismo, mas no momento do disparo, o tiro parece ter sido ao lado. De um modo geral, não é de bom tom entrar nestas questões de rigor histórico, que são lamacentas para quem quer falar sobre cinema. A propósito do rigor histórico, quando assisti ao filme, reparei que rigorosamente atrás de mim se sentou um antigo professor de história do liceu. Nunca o esqueci, precisamente por se ter posto, nessa altura, a alardear sobre a falta de rigor histórico em Inglourious Basterds2, então acabado de estrear, alegando que o filme estava “mal feito”. Já durante a sessão, fez o favor de estar permanentemente a disparar comentários, rigorosamente durante o filme todo. Imagino o que terá inquietado a sua pobre alma. 

Napoleon é um filme para fruir em sala, uma vez que os estilhaços e os disparos de canhão se sobrepõem ao ruído das pipocas. Podia contar uma história de amor, mas fá-lo de forma banal, alicerçando-se num conjunto de estatísticas que apresenta antes do cair do pano, apresentando nada mais do que condescendência pelo espectador. Scott está mesmo fino é para rebentar tudo. 

Sebastião Casanova

  1.  Em tradução livre. ↩︎
  2.  De Quentin Tarantino, 2009. ↩︎

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