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O desenlace em direção ao futuro tem necessariamente de ser pintado em tons escuros de solidão? 

Wild Strawberries (1957), da realização de Ingmar Bergman, carrega consigo o peso de uma narrativa de afirmação do passado sobre o presente. Contando com uma produção de Allan Ekelund, assevera-se como um veículo para pensar a inexorabilidade do envelhecimento e efemeridade da juventude. 

Ao longo dos devaneantes noventa minutos do filme é percorrida uma distância entre a morte e a vida. É feita uma dupla viagem. A primeira enquanto o protagonista Isak Borg – magnificamente interpretado por Victor Sjöström – se desloca de Estocolmo a Lund para receber um diploma universitário honorário. A segunda, uma jornada de autodescoberta, onde revive, nas suas memórias, a sua infância e a dor de um romance corrompido. Através de imagens oníricas, fantasias e flashbacks, sonhos e pesadelos, Wild Strawberries dramatiza a ilustre caminhada deste professor de 78 anos. É, por isso, aclamado como um dos filmes mais influentes de Bergman, precisamente por fazer uso de técnicas de narrativa não linear para estabelecer um vínculo emocional com o espectador. A utilização magistral de metáforas ou imagens simbólicas que vão sendo inseridas na linguagem cinematográfica aprimora acentuadamente a experiência visual, denunciando um nível de alta qualidade no que toca à direção e ao argumento do filme.

Destaca-se na sua singularidade e profundidade, por se revestir de uma camada simbólica que procura tratar assuntos ao nível da delicadeza da condição humana. Começando pelo título, em sueco Smultronstället, um lugar com morangos selvagens, apela a um sítio oculto e sentimental, conhecido por alguém em particular. No decorrer da história, Dr. Isak refugia-se neste seu esconderijo secreto, onde é inundado por memórias da vida jovem. Por seu turno, o seu Smultronställetd é o seu paraíso, a sua escapatória do mundo, que emana o perfume de morangos recém colhidos na natureza, envolvendo-o em recordações do seu primeiro amor, Sara, que os apanhava. Os morangos silvestres assumem, portanto, a função de símbolo permanente da continuidade, renovação e alegria da vida.

Quando Isak toma consciência dos poucos anos que lhe restam, o tempo começa a assumir um novo significado para si. Uma marca da temporalidade são os relógios que aparecem ao longo do filme. Quer nos seus sonhos, quer na realidade, nenhum dos relógios tem ponteiros. Esta ausência indicia um tempo corrompido, uma inconstância do objeto na imagem temporal, uma evidência de um espaço sem horas, desprovido de temporalidade. A fluidez aparece como intrínseca à noção de tempo, fluidez esta que está presente em todos os conceitos abstratos que são abordados na história do filme, como a vida, a morte, a eternidade, a juventude, a nostalgia e a reconciliação. Este signo ilustra antagonicamente a presença e ausência da temporalidade na vida de Isak. Assim, ilumina o próprio reconhecimento do protagonista de que está a chegar ao fim da vida, mas também pode representar a diluição de fronteiras entre a realidade e os sonhos, o passado e o presente, acentuando de maneira sublime este contraste.

Wild Strawberries, de Ingmar Bergman – ©

Com planos demorados que emanam uma qualidade estética admirável, os fragmentos cinematográficos exibidos ao espectador evidenciam uma mestria na arte de fazer cinema.  Mas não só a narrativa e a cinematografia contribuem para uma asseveração desta produção como ímpar e produtora de impacto no mundo do cinema. De igual modo, o perspicaz agenciamento da iluminação também se constitui como um elemento distintivo que eleva este filme à condição de obra de arte. Assiste-se à transfiguração de processos técnicos de iluminação, que se elevam ao estatuto de processos emocionais, construindo significado de forma a apontar o confronto com o passado e a aceitação da dor. Aqui, ilumina-se as personagens para denotar as divergências e convergências existentes entre o mundo virtual e o real. O passado de Isak é caracterizado por iluminações brilhantes e cores claras, enquanto o presente é eivado de dramáticos contrastes entre preto e branco, tomando o ecrã uma negritude que faz transparecer a solidão sentida pela personagem principal. Nas cenas onde Isak tem de confrontar o passado, são dissolvidas as linhas entre estes mundos através de configurações de iluminação para aumentar o peso do movimento. 

O contexto de criação do filme, produto do final da década de 1950, está intimamente ligado à vida pessoal do diretor, cujo trabalho artístico já era admirado no seu país de origem. Wild Strawberries foi criado durante um período conturbado de reflexão para Bergman, em que enfrentava uma crise que colocou em dúvida a sua própria existência – acabando por se espelhar na sua criação. Esta obra-prima ricamente humana, inserida num cinema profundamente reflexivo, oferece uma ponderação sobre os temas recorrentes no seu trabalho, como a busca de significado, a angústia existencial e a exploração da condição humana ou mortalidade. Carregando consigo um legado para uma valorização estética e artística no contexto das produções cinematográficas, ajudou, desta forma, a solidificar o estatuto de Bergman, aclamando-o como um dos diretores mais influentes e respeitados da história do cinema.

Catarina Gerardo

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