Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, para além da utopia musical

Utopia, cores e sonhos. Esses foram alguns dos elementos-chave que nortearam a produção de filmes musicais norte-americanos até meados da década de 1960 – responsável pela produção de algumas das mais inesquecíveis e singulares obras do gênero. Entretanto, foi na França que a dança e o canto encontraram um final oposto ao júbilo comum até então.

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (Les Parapluies de Cherbourg), lançado em 1964, foi a terceira longa-metragem dirigida pelo francês Jacques Demy, que manteve algumas características do gênero ao mesmo tempo que rompeu com outras – especialmente no que diz respeito à narrativa. Dividido em três partes, que ocorrem entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, o filme gira em torno da história do relacionamento entre Geneviève (Catherine Deneuve) e Guy (Nino Castelnuovo). Contudo, o amor fica comprometido quando ele é convocado para servir no exército na guerra da Argélia.

O aspecto visual e a narrativa andam em contramão ao mesmo tempo que são indissociáveis. Demy cria uma atmosfera semelhante à já recorrente nos musicais hollywoodianos, composta por uma paleta de cores vibrante e extremamente diversificada. Essa escolha pode ser vista como um mero cumprimento aos preceitos do gênero até à altura, mas uma vez que terminamos o filme, nota-se que seu uso vai muito além desta suposição. 

Deixemos os finais felizes, a terra dos sonhos e a utopia de lado. Em contraposição aos filmes musicais feitos até então, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo carrega uma narrativa dramática e realista. O amor entre os protagonistas não vence, mas sim a razão. Carinho e afeto permanecem, porém, a realidade toma seu lugar e leva Geneviève e Guy a caminhos distintos. Assim, o filme traz temas reais que outrora não seriam vistos no mundo fantástico da cantoria norte-americana. 

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, de Jacques Demy ©

Demy não se restringe à superfície da desilusão amorosa e mergulha mais fundo em temas complexos. A relação de Geneviève e sua mãe, Madame Emery (Anne Vernon), norteia toda a narrativa e a vida da protagonista também. Ela quer que a filha se case com Roland Cassard (Marc Michel), um homem rico que tem plena condição financeira de manter uma família – ao contrário de Guy, um trabalhador desprovido de poder aquisitivo. Cria-se um impasse na percepção sobre a figura materna que, embora queira o bem para sua filha, acaba influenciando-a em suas decisões e distanciando-a de seu amor. Outra temática vista no filme é a gravidez fora do casamento – uma problemática significativa e complexa para a altura -, que se torna uma questão para a protagonista.

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo não apresenta números de dança complexos – planos recorrentes nos musicais são deixados de lado, como aqueles feitos com grua para mostrar a exuberância da coreografia e do cenário – e irreais para o mundo real, mas apresenta todos os diálogos cantados. Assim, a música cumpre umas das convenções vistas no gênero, a de avançar a narrativa. 

Embora tramas dramáticas já tenham aparecido em obras realizadas anteriormente – como em West Side Story – Amor Sem Barreiras – Demy contribuiu para uma nova percepção dentro dos musicais ao mesclar uma atmosfera colorida com uma narrativa realista. Essa oposição torna o filme marcante e é fundamental para nos puxar para realidade. Embora seja um ambiente tão vibrante como Oz, em Cherbourg, os sonhos que você ousa sonhar nem sempre se tornam realidade.

Lílian Lopes

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