O QueerLisboa é para muitos uma oportunidade de sentir o encontro pulsante da diferença. Não só um ponto de chegada, como acima de tudo um ponto de partida, este festival de cinema, verdadeiramente inclusivo, volta a Lisboa para a sua 27ª edição. Um evento que, através da exibição de obras cinematográficas inseridas na esfera LGBTQI+, da promoção de atividades paralelas, como discussões abertas e exposições, tem conseguido celebrar a diversidade, contribuindo desta maneira para a consciencialização em assuntos não tão convencionais geralmente marginalizados noutros contextos.
No sentido de provocar uma reação impactante relativamente à contradição da norma, I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet (2023), realizado por Joseph Wilson e escrito por Evan Francis Jones, esteve presente na competição de curtas-metragens, na edição do Queer de 2023. Indo de encontro ao tema do festival, este filme contém em si bem presente a realidade imanente da imiscuição em ambientes que submetem pessoas a terapias de conversão.
O estilo simulado e experimental desta produção, bem como o dramatismo sonoro associado ao trabalho de som de Rick Smith, conseguem tratar as terapias de conversão como uma realidade distópica, algo da ordem do surreal, muito distante de todos nós. A verdade é que estas práticas altamente problemáticas ainda têm presença no mundo atual. Produções como esta pretendem elucidar especialmente a gravidade da sujeição de pessoas queer a processos de mutilação emocional, tendo como pretexto a patologização das diferentes orientações sexuais e identidades de género. Num mundo altamente avançado como o que vivemos, parece insensato e completamente descabida a existência destas práticas, sendo que a sua desacreditação é extremamente preponderante nos dias de hoje – e o modo como são retratadas nesta curta, é talvez, o único aceitável, no sentido de trabalhar para a exclusão permanente destes processos de desumanização.
O rigor formal dos planos, apesar da experimentalidade em que estão embebidos, quer seja pela desvitalização viva que dá aos cenários, quer seja pelo contraste de cores nos décors, levanta de modo perspicaz as preocupações necessárias associadas a este problema e que, inegavelmente, precisam de ser alvo de debate. Direitos humanos como a liberdade de autodeterminação e a orientação sexual e identidade de género são violados nestes procedimentos, sendo que o filme, pelo clima de suspense que cria – pela expectativa e espera, pela caracterização das personagens e pelo dinamismo dos movimentos da câmara, com planos estáticos ou com zoom in/zoom out – tem a perfeita capacidade de fazer transparecer a amargura aflitiva sentida aquando da imiscuição neste género de ambientes marcadamente penosos, que submetem sujeitos a processos de brainwashing por meio de métodos pseudocientíficos ou religiosos – oferecendo-lhes um lugar de fala.
Não obstante, o filme não quer apenas ser um retrato desta atmosfera pesada de mutilação emocional. Pelo contrário, deve ser visto como um apelo a que se procurem formas de performatividade de género não baseadas em [qualquer forma de] violência. É sabível que os media são elementos fundamentais da repetição dos atos estilizados, existindo uma complicitude por parte do sistema social na produção e reprodução de género. Mesmo assim, para haver uma proliferação de gestos subversivos é necessário operar por dentro da própria matriz de modo a atualizá-la. E é através de filmes que mostrem o sentir-se parte da periferia que se pode almejar em direção à aceitação da autoexpressão livre das orientações sexuais e identidades de género, promovendo a recetividade, a complacência e tolerância para com os indivíduos queer – que, ao longo das suas vidas, atravessam períodos conturbados de autodescoberta e autoaceitação. Podemos ver o sol, mas não senti-lo. Por isso, se em detrimento da mutilação e violência emocionais for promovido um apoio exterior por parte dos pares, será sempre facilitado o processo de estar em paz consigo mesmo e com a sua identidade – e aí conseguiríamos, por fim, sentir o calor reconfortante do sol sobre o qual apenas tínhamos lançado o olhar. Tratar a periferia com a convencionalidade que se trata a norma é dar um passo no sentido de atingir a sensibilização para a luta pela aceitação e igualdade. E o Queer, com a criação de uma plataforma de inclusão, fá-lo de maneira extraordinária, configurando-se como um evento cultural seminal em Lisboa.
* O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.
Uma das boas surpresas de 2023, O Sol do Futuro (Il sol dell’avvenire) é o novo trabalho do realizador italiano Nanni Moretti. Presente na competição de Cannes, tem-se aqui um filme dentro do filme. Em suma, Giovanni (Moretti) é um realizador que está a gravar o seu novo longa-metragem, contextualizado durante a Revolução Húngara de 1956, enquanto precisa lidar com o casamento à beira de um colapso.
A sinopse mostra-se simples, mas Moretti transforma-a em um filme cativante e usa esta história como meio para explorar e transmitir suas percepções sobre o cenário do cinema atual. Ao mesmo tempo, apresenta também as questões políticas já vistas em sua obra anteriormente. O Sol do Futuro é o retrato de um saudosista da tradição cinematográfica. Giovani precisa lidar com as transformações nos modos de produção do cinema, mas isto torna-se uma dificuldade para quem é fortemente conectado com as convenções. A modernidade se instala cada vez mais rápido e isso o aterroriza. Esta representação é feita de forma extremamente cômica, fazendo com que nos esqueçamos das implicações que isto, de facto, pode trazer.
O contraste entre passado e presente pode ser visto na relação entre Giovanni e sua esposa, Paola (Margherita Buy). Ele, um realizador ligado à tradição e à temática histórica, precisa lidar com o trabalho de sua mulher, que está produzindo um filme de ação – à la Michael Bay. O saudosismo de Giovanni é marcado logo no início, ao querer manter a tradição de assistir um filme com sua família enquanto toma gelado, mas a esposa e a filha não podem participar. O tempo passou e é difícil para o personagem aceitar isso. Rimos do personagem e da situação, mas no fundo, todos nós carregamos tradições que são difíceis de serem mudadas.
Tensões surgem dentro de casa e fora dela, sendo uma das melhores cenas do filme a sequência em que Giovanni paralisa o trabalho de Paola para discutir sobre a ética do enquadramento da morte de um personagem – uma discussão que remonta ao polêmico travelling de Kapò (1960). Outro momento de destaque é a reunião de Giovanni com a Netflix, na qual ouvimos repetidas vezes que a plataforma está presente em 190 países e as “regras” estabelecidas por eles para ser um bom filme.
O que torna O Sol do Futuro mais singular é sua construção, que mescla cenas do filme que Giovanni está a realizar com o filme que estamos a ver. Os cortes secos de transição e o conteúdo entre as duas obras criam uma atmosfera cômica, que dialogam entre si e colocam em paralelo o que é mundo fictício e mundo real – no caso, “real”, visto que ainda estamos a ver uma ficção. Um dos destaques é o design de produção, especialmente nas cenas dos anos 50, responsável por nos fazer mergulhar não somente na obra criada por Giovanni, mas também no próprio filme de Moretti.
A obra de Moretti gera múltiplas sensações e nos leva a indagações sobre o futuro, o amor e o cinema. Estes últimos, tão essenciais para Giovanni, estão transformando-se e esvaindo-se de sua vida. Lidar com a passagem do tempo se mostra uma tarefa que pode ser difícil de encarar, e Moretti traz à superfície de nossos pensamentos a inevitabilidade dos acontecimentos da vida. Entretanto, a marcha final lembra-nos que há uma vida apesar de tudo e, principalmente, um futuro.
O Sol do Futuro é um retrato da saudade do tempo que já se foi na vida de um realizador. É o amor pela sétima arte traduzida nela própria e Moretti consegue escavar nas nossas lembranças o que nos levou a amá-la. Ri de si mesma e nos faz rir também. Saímos do cinema com o coração aquecido, com a mente repleta de questionamentos sobre o futuro e nos perguntamos qual é o sol de cada um de nós. É, de longe, uma das melhores surpresas do cinema – feito para o cinema – neste ano.
A 17ª edição do MOTELX, Festival Internacional de Cinema de Terror, animou Lisboa na passada semana, com inúmeras sessões de cinema, masterclasses e convidados. Brandon Cronenberg, filho do cineasta canadiano David Cronenberg, foi um desses convidados, ele que é uma das mais recentes promessas de cinema de género: um cinema que combina o horror psicológico e o sci-fi. Cronenberg esteve no Cinema São Jorge para acompanhar a estreia portuguesa do seu novo filme: Infinity Pool. Todavia, este ano, o festival decidiu fazer uma retrospetiva de toda a sua obra, passando ainda em sala as suas duas longas-metragens anteriores – Possessor (2020) e Antiviral (2012) – e ainda uma das suas curtas-metragens – Please Speak Continuously and Describe Your Experiences as They Come To You (2019).
Neste texto, o foco será a análise das suas duas longas mais recentes: a estreante Infinity Pool e Possessor. Em Infinity Pool, um casal, James (Alexander Skarsgård) e Em (Cleopatra Coleman), passam umas férias numa espécie de resort excêntrico num país ficcional chamado La Tolqa (que se assemelha ao cenário de White Lotus ou de Triangle of Sadness) na esperança de James ganhar inspiração para um novo livro, após o seu primeiro não muito bem sucedido romance. O casal conhece um outro casal, Gabi (Mia Goth) e Alban (Jalil Lespert), que os leva num passeio fora do resort que acaba com o atropelamento de um local. James, culpado do crime, é julgado e percebe que, segundo regras do país, no caso de morte, é o filho mais velho da vítima que deve vingar esta. Contudo, nesta realidade distorcida, há uma saída para os mais privilegiados: a criação de um doppelgänger que assumirá as culpas e morrerá no lugar do culpado. O único senão é este ter de assistir à sua própria execução.
Três anos antes, em Possessor, Brandon Cronenberg explora uma premissa um pouco mais simples, mas apoiada num mesmo sistema corrupto que valoriza aqueles com mais poder. Voss, interpretada de forma brilhante por Andrea Riseborough, é uma assassina contratada que consegue “possuir” o corpo de uma pessoa próxima da sua vítima, facilitando assim o crime. Quando ao entrar na mente de Colin (Christopher Abbott), o seu novo bode expiatório, algo não corre tão bem e a própria vítima começa a ter controlo sobre a mente da sua parasita (Voss). A partir deste momento, o filme começa a caminhar para uma esquizofrenia mental, muito bem retratada visualmente por Cronenberg, que só pára na destruição e caos total.
Ambos os filmes fazem o espectador questionar-se sobre a decência humana e sobre o quão longe alguém iria sabendo que não haveria consequências para as suas ações. É quase como se estivéssemos perante uma régua moral e essa régua parece estar partida, e talvez seja essa a mensagem que o realizador canadiano nos quer passar: a de uma sociedade estilhaçada e que não parece conseguir encontrar o caminho para o bem, associando o mal a algo prazeroso e afrodisíaco. A violência nos dois filmes é praticada da forma mais violenta possível, aproveito a redundância. No caso de Voss (em Possessor), esta evita o uso da pistola substituindo-a por uma arma mais sangrenta, e no caso de Infinity Pool, a violência é quase sempre associada a sexo (vemos quase tantas cenas sangrentas como orgias) e a festa, num tom quase medieval. A crítica social é forte. Nos dois filmes, mas ainda mais evidente em Infinity Pool, o realizador parece mesmo sugerir que é apenas o medo das consequências que impede as pessoas de praticarem o mal, e que se numa sociedade paralela, estas consequências fossem extintas por via, por exemplo, da tecnologia (notemos ainda a crítica ao aumento do uso desta, que nos remete inúmeras vezes para a série televisiva Black Mirror e para, no caso de Possessor, o episódio específico Crocodile, com Andrea Riseborough também como protagonista), o caos estaria instalado e a sobrevivência seria apenas um jogo de poder.
Apesar da crítica ser algo muito evidente, e de o body horror e as cenas sangrentas estarem lá, Brandon Cronenberg explora um lado muito mais identitário e psicológico nos seus filmes: o das repercussões psicológicas que os crimes praticados têm nos seus autores. Se, no caso do seu pai, o foco era o terror físico, no caso de Brandon o foco vira-se para a mente, a alma, e as suas assombrações e demónios. Em ambos os filmes, há uma espécie de duplicação identitária. Em Possessor, por uma via quase de parasita (de habitar o corpo do outro), e em Infinity Pool, através mesmo de uma duplicação, duplicando-se neste caso o corpo. Estas transposições ou duplicações de identidade parecem causar uma certa fragmentação na identidade original, que no caso de Voss, parece estar cada vez mais longe, e no caso de James, que acaba por se confundir com a identidade copiada (a dada altura, alguém lhe pergunta “mas não tens receio que tenham matado o James original?). As sequências experimentais do filme nas quais conseguimos acompanhar aquilo que está a acontecer na mente das personagens principais acabam por superar, ao nível do terror, do medo e da ansiedade, as cenas de violência gratuita e sangue. É muito interessante a forma como o realizador nos consegue conectar com o pânico sentido na mente destas personagens.
A retrospetiva a Brandon Cronenberg foi um dos momentos altos de um festival que segue mais um ano sem desiludir o seu espectador. E Brandon Cronenberg assume-se como uma estrela em ascensão do cinema de terror que, apesar da pesada herança do seu pai, se tem conseguido destacar com um cinema muito próprio e cada vez mais intrigante.
Paris, anos 1930. Este é o cenário escolhido por François Ozon para situar seu novo filme, O Crime é Meu (Mon Crime, 2023), uma adaptação da peça de Georges Berr e Louis Verneuil. A narrativa segue a história de Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz), uma aspirante a atriz erroneamente acusada de assassinato, e Pauline Mauléon (Rebecca Marder), sua amiga recém formada em direito. Envoltas em um crime ao qual não possuem nenhuma relação, as amigas aproveitam a acusação para mudarem de vida depois de serem absolvidas.
Embora possua uma história que poderia facilmente ser um drama, O Crime é Meu é, na verdade, uma comédia tipicamente francesa de ritmo rápido. Arranca boas gargalhadas do público a partir de diálogos perspicazes que, em certos momentos, nos fazem lembrar dos icônicos filmes norte-americanos de screwball comedy realizados nos anos 1930. A esse aspecto destaca-se a divertida dinâmica atuação dos veteranos Dany Boon e Isabelle Huppert.
Este ritmo frenético também é acentuado pela forma como o filme é construído. Ozon intercala cenas do mundo diegético com as possibilidades encontradas pelas personagens em relação ao assassinato. Estes momentos são marcados pela imagem preta e branca e por atuações exageradas, remetendo-nos aos filmes mudos. Essa é uma das diversas menções ao cinema feitas durante o filme, que é homenageado em outras cenas e aspectos por Ozon.
Apesar de possuir uma narrativa de peso, o filme O Crime é Meu salta aos olhos especialmente no que diz respeito aos aspectos visuais. É criada uma mise-en-scène fiel aos anos 1930 que, por certas vezes, nos deixa com vontade de entrar no ecrã e participar da história. O grande destaque são os figurinos, assinados por Pascaline Chavanne, que vão desde vestimentas simples até as mais glamourosas.
Madeleine e Pauline encontram-se com um montante de dívidas e buscam independência, encontrada a partir do crime e da amizade que beira uma relação entre irmãs. A potência das personagens une-se, no final, à de Odette Chaumette (Isabelle Huppert), mostrando que juntas tornam-se mais fortes.
O Crime é Meu é uma comédia que entrega boas risadas e deixa o público com vontade de se transportar ao passado criado por ele. Por ser baseado na peça homônima, carrega alguns traços da divisão teatral em dois atos, criando a sensação de que estamos diante de dois filmes.No entanto, este facto não é uma problemática e não compromete a experiência. É um filme que busca colocar reflexões, mas não se torna cansativo. Feito para ver em uma tarde de verão ou quando a vontade de viver no cenário nos anos 30 bater à porta.
Muito antes de nos ser possível ver na sua completude a filmografia de Frederick Wiseman, esta, a qualquer momento, que é o mesmo que dizer a qualquer filme, observa-nos, promovendo um acordo tácito que gradualmente se instala. Está em causa uma sublimação do lugar do espectador, no qual é abolido qualquer perímetro e convocado um sentido ativo de observação, que vai e vem, numa dialética de ambiguidade e abertura em relação à multiplicidade de sentidos possíveis. Em Wiseman, promove-se sistematicamente a leitura do espectador como gesto primordial na construção de sentido, que na sua subjetividade inevitável se estabelece desde a leitura mais pobre à mais rica. Assim, pensar o filme é de facto, criá-lo.
De uma forma geral, os filmes de Frederick Wiseman são campos de observação de lugares ou sistemas onde prosperam lógicas institucionais com relações de poder desiguais. Belfast, Maine (1999) enquadra-se na última fase do seu cinema, no qual esta ideia de instituição total é projetada numa lógica de corpo comunitário de valores partilhados. No caso, a comunidade é a cidade de Belfast no Maine, por onde somos levados aproximadamente durante quatro horas, numa excursão que por (várias) vezes lembra um safari, (re)visitando odores que persistem no cinema de Wiseman: o cheiro a morte dos lugares da indústria alimentar, em particular no que diz respeito ao encadeamento de ações implicadas no comércio de peixe, desde a pesca à sua preparação em postas, ou em conserva; lugares onde há mestres/oradores e aprendizes/ouvintes, desde reuniões de grupo a aulas de teatro amador, aulas de ballet ou a uma sala de aula; a experiência do fim de vida ou proximidade da morte, seja pelo estado avançado de doença, pela resposta estandardizada de um centro hospitalar, pelo relato de situações de violência doméstica ou de comportamentos tóxicos normalizados e, por fim, estabelecendo uma ligação ao primeiro ponto, pela caça e pesca do ponto de vista comercial/económico.
Nesta rota que se vai traçando desde o início do filme, o gesto é da ordem da escultura e não do desenho. Manifesta-se por exclusão, desvelando a forma a partir do bloco de imagens com as quais qualquer um de nós, em maior ou menor grau, tem uma relação próxima. As relações que subjetivamente se estabelecem não surgem como adições, mas como saídas possíveis que se colocam até mudar de cena. De forma alternada, o filme constrói-se com sequências intercaladas entre o ritual e a pedagogia, prontas a ser combinadas de acordo com o entendimento do espectador. As sequências performativas, protagonizadas pela linha de montagem, surgem como documentos visuais de instrução prática sobre as atividades desempenhadas e talvez por isso estas sejam tão hipnotizantes: engomar roupa, pescar, confeccionar donuts, embalar truta, caramelizar amêndoas, curtir pele de raposa (…) num ritual que parece tornar qualquer das atividades ao alcance do nosso fazer, com uma ciência reduzida, automatizada, que homogeneíza qualquer atividade. As sequências orais, subdivididas entre as discursivas e as interrogatórias, nas quais se desvelam novas camadas de informação, respetivamente através de um personagem que se dirige a um auditório ou de outro, cuja sua função é fazer perguntas para traçar um perfil. Entre a entrevista e a terapia, estes gestos vão sendo abordados num levantamento da cidade de Belfast a partir dos seus vários órgãos. Todo este quadro de lugares e ações se estende entre duas cenas de pintores solitários que assinalam o princípio e o fim do filme, produzindo eco com os dois tipos de paisagem — industrial e natural (ou com o choque das duas) — que surgem nos planos de corte: os quadros do rio, dos carros na estrada, das casas, do pôr do sol, do cemitério… onde apenas parece não acontecer nada.
Dentro dos frequentes debates sobre a figura da mulher na sociedade, um filme desperta a atenção – talvez pelo fato de ter sua direção assinada por Sidney Lumet, mas ser raramente lembrado. O Grupo (The Group), lançado em 1966, é uma adaptação do romance escrito por Mary McCarthy e publicado em 1963. Ambientado na América dos anos 1930, somos apresentados ao mundo de oito jovens recém graduadas e às suas perspectivas sobre a vida.
Num primeiro momento, O Grupo salta aos olhos ao trazer determinadas temáticas que dificilmente seriam vistas de forma crua no cenário pós-Grande Depressão – embora tenha sido realizado trinta anos depois, é singular ver tais assuntos serem abordados no seio daquele contexto. O filme se passa ao longo de quase dez anos, iniciando em 1933 e terminando na época da Segunda Guerra Mundial, em 1940. As jovens encontram-se em um mesmo ponto de partida e seguem suas jornadas individuais ao longo desse período, algumas focam suas vidas no trabalho enquanto outras na vida pessoal – casamento e filhos.
A cena inicial é composta por uma montagem de diversos momentos vividos pelas personagens na Universidade de Vassar – uma instituição localizada a alguns quilômetros da cidade de Nova Iorque e que, até o ano de 1969, só aceitava meninas. A sequência culmina na formatura, quando é proferido um discurso por Helena (Kathleen Widdoes), na qual ela afirma: And we believe, as we take our separate roles, that it is only in achieving the highest personal fulfillment, the goal of our education, that each will make the greatest contribution to our emergent America.
É praticamente impossível não lembrarmos de algumas ideias trazidas em A Mística Feminina ao ouvirmos essa fala e vermos o filme. Lançado em 1963, o livro de Betty Friedan reflete sobre o comportamento e o papel das mulheres nos anos 1950 e 1960, que culminou no conhecido “O Problema Sem Nome”. Na obra, ela coloca em pauta a problemática da figura feminina como alguém limitada a ser esposa, mãe e dona de casa. Em teoria, essas deveriam ser as únicas obrigações de uma mulher e ela deveria se sentir completa e realizada por isso. Assim, embora elas tivessem alcançado o tão desejado “sucesso”, a sensação de vazio crescia cada vez mais.
Friedan retrocede no tempo até os anos 1930 – época em que ocorre a narrativa de The Group – e nota que a função da mulher nesta altura era bastante diferente daquela vista anos depois. Eram heroínas independentes, “profissionais felizes, orgulhosas, aventureiras e atraentes – que amavam os homens e eram amadas por eles. E o espírito, a coragem, a independência, a determinação – a firmeza de caráter que demonstraram no trabalho como enfermeiras, professoras, artistas, atrizes, redatoras, vendedoras – era parte do seu charme.” (p. 41). Além disso, nos anos 1930 elas “estavam caminhando na direção de um objetivo ou visão própria, enfrentando algum problema do trabalho ou do mundo, quando encontravam seu homem” (p. 41).
O que vemos aqui é um retrato da cena inicial e do discurso de Helena, as garotas almejam fazer a diferença a partir da educação que receberam em Vassar. Assim, nota-se a estranheza das demais ao verem Kay (Joanna Pettet) casando-se logo após a saída da universidade – uma vez que o esperado seria seguir a carreira profissional.
Também podemos perceber ao longo do filme outros momentos que trazem à tona as questões postas por Friedan. O arco narrativo de Polly (Shirley Knight) ilustra a ideia de que o homem entraria em suas vidas quando o foco estivesse voltado para o trabalho, ou seja, não haveria uma busca desesperada por alguém para se sentirem completas.
Entretanto, nota-se também o começo da mudança para aquilo que viria a resultar no “Problema Sem Nome”. Priss (Elizabeth Hartman) sofre com o facto de se ver obrigada pelo seu marido a amamentar o filho, quando na verdade ela não consegue fazê-lo – ele inclusive a culpa porque os enfermeiros alimentaram a criança com fórmula. A devoção de Kay ao marido que a trai, a vida dedicada à família de Priss e as questões amorosas de Dottie (Joan Hackett) – ela tem seu coração dividido ao se ver em meio a uma proposta de casamento quando na verdade ama outro homem – contrastam com a vida de Libby (Jessica Walters).
A personagem de Libby e sua jornada são complexas. Ela desvia-se do caminho do casamento e filhos, não porque não queira, mas porque não consegue se relacionar sexualmente com homens. Em paralelo, sua esperteza a ajuda a crescer cada vez mais na carreira profissional e faz com que seja uma das mais bem sucedidas entre as amigas. Em termos visuais, percebemos sua profundidade nas cenas em que está no seu quarto, onde a decoração é composta por tons de roxo e muitas bonecas espalhadas por prateleiras e pelas camas.
Além disso, o que encontramos na obra de McCarthy/Lumet é uma série de temas como relações lésbicas, aborto, controle de natalidade… É difícil imaginarmos estas pautas, por exemplo, em um filme da RKO, dentro de uma mise-en-scèneart decó ou sendo debatidas por Katherine Hepburn – especialmente após a instauração do Código Hays. The Group carrega a possibilidade de vermos tais questões sendo discutidas num cenário visual diferente do que estamos habituados.
A força de The Group reside na história. A realização de Lumet é arrastada e cansativa em determinados momentos, assemelha-se, por vezes, a um filme feito para a televisão. Entretanto, algumas planificações chamam à atenção, como na cena em que as amigas estão sentadas numa mesa redonda e a câmera gira ao redor delas, uma escolha livre de problemas técnicos e de pós-produção.
The Group merece ser visto pelas reflexões históricas e se torna ainda mais rico junto da leitura de A Mística Feminina. Não é a obra mais interessante em termos visuais, mas conta uma história que merece ser conhecida se quisermos pensar mais sobre onde a figura da mulher esteve, para onde ela vai e quais são as possibilidades futuras. Em uma época de polarização, estamos inclinados a voltarmos para as ideias dos anos 1950 ou para Vassar da década de 1930?
Área da física destinada ao estudo do comportamento físico de fluidos em movimento ou em repouso.
As entradas de dicionário sugerem diferentes possibilidades de significação: [x] significa/corresponde a isto ou àquilo. Neste caso, a definição de ´Mecânica dos Fluidos´ parece ter os seus contornos perfeitamente definidos. Diz respeito a uma área científica e é intrincado figurar a sua associação com o cinema. No entanto, a curta-metragem documental La mécanique des fluids, realizada por Gala Hernández López, em 2022, constitui um momento de disrupção com estas convenções lexicais: Serão os fluidos necessariamente líquidos e gases? Será o cinema um exercício artístico longínquo da ciência e da disciplina? Dando gradualmente resposta a estas questões, esteé um jogo de significações e uma recontextualização da arte cinematográfica.
Complexa e hipnótica, esta curta-metragem tem como ponto de partida a carta de suicídio de Anathematic Anarchist publicada no Reddit a 20.02.2018. Intitulada “America is responsible for my death”, esta carta desperta em Gala Hernández a necessidade de navegar pela pegada digital deste jovem. Deste trabalho de investigação resulta La mécanique des fluids. Note-se, contudo, que esta narrativa não é mais do que um pretexto para desafiar o totalitarismo digital. Anathematic Anarchist não é relevante enquanto pseudónimo de uma identidade corpórea. É, antes, uma entidade fantasmagórica, um interlocutor impossível que representa a não comunicação e o isolamento online. Diferente daquela que o jovem havia experienciado, aqui, a impossibilidade de comunicar inaugura uma série de possibilidades. É precisamente porque ninguém vem reclamar o seu lugar que as lacunas informativas podem ser exploradas e preenchidas pela imaginação. Como um mártir daquilo que se procura problematizar, este fantasma do cinema principia uma conturbada análise da cultura incel.
Esta palavra, resultante da fusão entre as palavras ‘involuntary’ e ‘celibates’, refere-se a uma subcultura virtual de celibatários involuntários (homens – maioritariamente heterossexuais – que se consideram incapazes de desenvolver relações amorosas e/ou sexuais). Profundamente essencialistas e misóginos, os incels reúnem-se em fóruns de discussão, onde ruminam sobre o seu fracasso e o seu ódio às mulheres. Durante os 38 minutos de La mécanique des fluids, embarcamos numa viagem digital pelos lugares online onde esta comunidade se reúne para comungar a sua solidão.
Apesar de tudo, esta viagem é indissociável de uma abordagem empática. Os membros desta cultura não representam uma encarnação do mal absoluto ou uma mera alteridade radical. São o espelho da nossa sociedade, o resultado da educação patriarcal e da misoginia histórica e coletiva. Coloca-se em causa uma certa identificação: também nós, espectadores, experienciamos a dor do isolamento num mundo tão conectado.
A representação do sentimento de solidão associado à experiência digitalé acompanhada de um tom profundamente poético. Entre a sequencialidade mecânica desta curta-metragem, Gala Hernández encontra espaço para o diálogo com a poesia – como uma ode à humanidade, ou àquilo que dela resta. Ora, se a mecânica dos fluidos permite prever com precisão o seu comportamento e simplificar a realidade para que esta se torne manipulável e compreensível, também os perfis e as aplicações de namoro seguem esta lógica. Afinal, o amor, a emoção e tudo aquilo que é fluido exatamente por ser humano, é reduzido a um número – evento disruptivo na natureza, impossibilidade que culmina no fracasso.
É através de recursos estéticos que o discurso fílmico se liberta da lógica sequencial do relato e constitui a expressão poética do sentimento. Vejamos: temos, por exemplo, a ilustração de um avatar perdido numa paisagem agressivamente vazia e artificial. A par desta surge a representação do mar, o único elemento efetivamente filmado além das capturas de ecrã. Repetidamente símbolo daquilo que aprisiona e isola, a imagem do mar – enquanto elemento natural – materializa, neste caso, uma forma de escape à solidão, uma descontinuidade com a lógica mecânica artificial. O mar representa o sonho: visão utópica rapidamente dissolvida em pixéis.
Composta quase unicamente por imagens de arquivo de redes sociais, esta curta-metragem destaca-se pela estética e pelos motivos da cultura online. É um exemplo das estratégias plásticas e sensoriais do cinema ao serviço da reprodução dos efeitos que experienciamos enquanto utilizadores da internet. Através de uma sequência visual crescentemente complexa e hipnótica, alternamos entre várias aplicações e conteúdos e somos interpelados pelo pop up constante de notificações.
La mécanique des fluids segue um formato digital que a aproxima do ‘desktop documentary’, um estilo de cinema pós-internet que se sustenta na captura de ecrã. Mas a que se deve a ausência de imagem captada pela câmara? Por um lado, esta parece uma escolha estética que acompanha a capacidade de o cinema apreender e documentar o fenómeno de privação do mundo real. Por outro lado, deve-se à inserção desta produção numa tese de pesquisa-criação sobre a captura de tela no cinema.
Compreendemos que o cinema não tem necessariamente de ser distante da disciplina e da pesquisa académica. O trabalho criativo de Gala Hernández é, na verdade, uma forma de desafiar a pesquisa clássica e de materializar o conhecimento numa espécie de pensamento audio-visualizado. Esta curta-metragemrevela que a pesquisa e a produção artística podem caminhar lado a lado; que a arte – cinematográfica, ou não – pode acompanhar a realidade. E é porque o processo de documentação e de realização se fundem num só que daqui resulta uma verdadeira experiência de deriva virtual. Marcada pela errância discursiva, esta emerge como um exercício de experimentação em tempo real.
Este é um filme que nasce da ação de produzir imagem sobre a imagem e, por isso, levanta questões relativamente às práticas cinematográficas contemporâneas:
– ‘Estará o cinema morto?’
– Não. Pois se a sétima arte é o cinema, talvez a oitava seja a capacidade de reinventar a anterior.
Este gesto aparentemente redundante e supérfluo parece ser um gesto necessário de reinvenção. A captura de ecrã, que aqui substitui a imagem captada pela câmara, não representa a morte do cinema, mas sim o diálogo com o digital e a possibilidade de narrativização da experiência mediática. La mécanique des fluids não se insere, portanto, na categoria de pós-cinema. É um exemplo da arte na sua potência de renovação. É ritmo frenético, montagem cuidada e ausência de rodagem tradicional. É cinema que, num jogo de significações, se reveste de uma fluidez sui generis (como se a mecânica dos fluidos passasse a dizer respeito a si mesmo).
Subsiste a tendência para, sem tardar, procurar legitimar os objectos artísticos com que nos defrontamos. Legitimação política, social, ética, moral, etc. É – não só, mas também -, a uma tal urgência de integração (e regulamentação) da arte, que a obra de Deborah Stratman diz respeito, criticando-a, justamente, pela resistência que apresenta a uma categorização linear. Deborah Stratman, artista destacada na 31ª edição do Curtas Vila do Conde – International Film Festival, com a projecção de curtas-metragens de sua autoria, a atribuição de uma carte blanche, e a exposição Unexpected Guests, patente na galeria Solar: presença motivadora de um ensaio reflexivo acerca de uma obra inscrita num tempo histórico particularmente ruidoso, cuja impermeabilidade (a uma voz singular, a uma crítica justa, a uma dissensão por mais ponderada), como aparência, como imagem, corpo a modelar, a penetrar, a adulterar, mas igualmente a escutar, a recolher silenciosamente na sua novidade mais ou menos monstruosa, mais ou menos maravilhosa; impermeabilidade, dizíamos, que constitui a matéria-prima do mais refinado posicionamento crítico. Neste sentido, poder-se-á falar de uma poética, ou até, de uma linguagem, da incomunicabilidade. Uma linguagem que trabalha com a imagem que se recusa, que é escuridão, silêncio, sem, todavia, obrigar senão ao mais rico encontro, nesse plano em que imaginação antecipatória e construção se tocam, entre mutismo e diálogo.
Stratman trabalha o problema da legitimação artística, muito embora não na medida em que procura alinhar com um qualquer alfabeto vigente e de alta eficiência mediática, isto é, não ambicionando para si essa legitimidade – a oscilação do espaço de exposição dos seus trabalhos é, de resto, sintomática de uma presença marginal e, daí, potencialmente panorâmica e crítica. À artista norte-americana parece afigurar-se-lhe de maior interesse o exercício de explorar os efeitos que a sua obra visual – cinematográfica e/ou plástica – comporta e pode comportar no espectador, independentemente da sua proveniência social, política ou cultural. Fazer a tábua rasa como o projecto imenso e fresco (Maria Filomena Molder adverte, em Palavras Aladas (2022), para o gesto da tábua rasa como próprio da juventude) do acto (desde logo, político) de olhar um mundo (o nosso), cujo crescimento e expansão correspondem igualmente a um imenso trabalho de destruição e declínio. O que vem complexificar a relação umbilical e perfeitamente mútua entre crescer e destruir, entre prometer e findar, é o gesto concomitante, a que corresponde esse jogo duplo, da assinatura do homem nesse mesmo mundo, e que vem inscrever o poder como o âmbito tão rizomático quanto dissimulado (e, com efeito, dramático) em que o homem se move e por que se constitui. Chegamos a um impasse, tanto de ordem epocal quanto de natureza filosófica; indecidibilidade que se forma precisamente no território flutuante que os seus limites (e, sobretudo, uma certa ideia de limite) encerram por sobre um tempo indeterminado, potencialmente excedente do período histórico em que se anunciam e de que se valorizam simbolicamente. Recuperemos algumas palavras de Bernard Stiegler em States of Shock, a propósito do pensamento invariável e repetidamente (em loop, como Hacked Circuit, exposto na Solar) esgotado e, dessa feita, inconcluso, acerca da economia sistémica pensada por Stratman: “In particular, one cannot fail to notice here that what is said about the system seems to leave no room for the question of the limits of the system, for the fact that any dynamic system has limits, and that a time will inevitably come when these limits are reached, philosophy consisting perhaps always and firstly in thinking such passages to the limit.” (Stiegler, 2015: 93). O plano em que os limites se jogam, antecipando a sua própria refutação, isto é, consistindo no fantasma da sua forma póstuma, é o plano da técnica, à qual Stratman, pela realização de filmes-observatório, cede pela articulação com um lirismo especulativo, gerado no olhar compassivo (assim o imaginamos) do espectador. Assim, o que de puro pode existir é essa articulação técnica, prestes a perder para outra proposta mais refinada numa história técnica universal, lançada, e igualada, no mesmo terreno virtual que a designada história natural: “the pursuit of the evolution of the living by other means than life – which is what the history of technics consists in (…)” (Stiegler, 1998: 135).
Pensemos num filme como Second Sighted (2014), cujo título sugere imediatamente o gesto de voltar a olhar, rever, testemunhar, ou melhor, testemunhar uma testemunha (que se julga, presentemente) passada, sabendo de antemão que um tal exercício comporta o lance no território falsário da ficção – joguete que a artista ajuda a desconstruir, servindo-se, como pedra-de-toque, do registo documental como presença desestabilizadora da fronteira entre fantasia e real, sob mediação do papel do arquivo (como espécie de excedente, destinação entrópica, da História). As primeiras imagens do filme situam-no num registo cindido entre a imagem surreal(ista) – é difícil resistir a sobrepor à imagem inicial, dos olhos incendiados, essa outra de Un Chien Andalou (1929), também a abrir o filme, da sutura do olho – e a mera captação técnica de imagens de uma cidade, no caso, de uma senhora idosa no cais de uma estação de comboios. Partículas brancas em gradativa concentração (lembrando-nos dessa afirmação de Carl Sagan, de que o homem é nada mais que poeira de estrelas), um par de olhos em chamas, prédios incendiados, na iminência do desabamento, tratam-se dos planos iniciais do filme, seguidos de um zoom na figura da tal transeunte, sequência que aponta para a hipótese da identificação de uma agência, pela ligação causal entre o fogo e o rosto humano. Há, todavia, uma força que persiste e que inibe a um encadeamento narrativo que dessa figura humana constituísse o agente de um crime (por fogo posto, nomeadamente), pela atribuição de uma autoria (a culpa seria uma consequência possível, de todo o modo incerta). E, de facto, dessa primeira hiper-sugestão por via de uma vigilância que também nos cabe a nós, espectadores, não há seguimento nem evolução narrativa alguma. A deriva persiste, como essa força enigmática que tudo traga, tudo aparentemente igualando, manifestando-se não só paralelamente ao desenho de directrizes traçadas por cima de imagens de paisagens variadas, como por esses mesmos desenhos instigada.
Parece haver tão-só circuitos a repetir e matéria a captar, infinitamente. E essa repetição, e a eventualidade da captura e do registo sensíveis, dão-se através de uma data de recursos técnicos. Lembre-se Vever, filme composto de imagens de uma viagem que Barbara Hammer faz à Guatemala em 1975, com textos – a servir de marcação temporal – de Maya Deren, sobre o trabalho artístico, o nascimento da arte, o fracasso, a composição criativa. Estruturalmente o filme é também uma second sight, e é-o nos termos em que repete um determinado circuito, reciclando material imagético e literário, não obstante revitalizado numa montagem singular, pelas mãos de Stratman. A repetição do fracasso, um modo aperfeiçoado de errar, valendo sobretudo a formação de uma imagem inconsciente do corpo, da matéria, memória sensível independente do esquema corporal que a cada um cabe transportar, e que nos une numa língua universal, instigante, muito embora jamais passível de ser articulada. É sob o signo da incomunicação, da opacidade, do que resiste a ser significado sob a suposição de que assim se encontra desconstruído, caso encerrado, que os filmes de Stratman se realizam.
Há um retrato que fica sempre por acabar: no caso de Vever (2019), o do modo de viver das comunidades na Guatemala, bem como da intenção (termo assaz referido durante o filme, seja em palavra escrita e inscrita na película, seja pela voz off) que verdadeiramente motivou aquela viagem e, posteriormente, aquele filme, que é, não nos esqueçamos, a marca do abandono de um outro filme (de Hammer). É precisamente com essa impossibilidade de acabar – que o termo (empiricamente necessário) de um objecto fílmico exerce – que o dispositivo técnico dialoga, no sentido de tornar mutáveis as posições de criador e criação, ao ponto de se tornar indistinguível quem filmou e quem foi filmado ou, seguindo as palavras do filme, de quem, de que parte e qual a intenção subjacente: do real prévio à filmagem, do real que a película revelou, do real resultante da montagem de Stratman? O sem termos do acto de olhar, e dos estímulos a que a realidade nos expõe, inviabiliza a definição clara de fronteiras, e apresenta como o porto mais seguro a asserção da ambiguidade: “It was only after I had conceded my defeat as an artist, My inability to master the material in the image of my own intention, That I became aware of the ambiguous consequences of that failure”. Tudo o mais serão traços na areia, deslizamentos de terra, um barco à deriva no mar, vogando sobre as ondas, rimando, de resto, com a imagem particularmente impressionante, imóvel, de um navio num mar congelado, em Optimism (2018), filme que toma, como problema central, o território de Dawson City, no extremo norte do Canada: território gelado, inóspito, no qual toda a forma de vida surge como uma incontornável manifestação, conquanto sóbria, do desejo. Também aí parece operar-se a tentativa de fazer uma razia de sentido, em grande parte sugerida pelo título que denota, quase comicamente, a disponibilidade – e a inteligência – para a confiança, a boa-fé, ainda que acabe por destacar a desolação das primeiras imagens do filme. A paisagem de neve é imensa, qualquer corpo que a atravesse é um pormenor de cuja passagem não se acreditam vestígios. Neste sentido, o ecrã dá-nos os traços de um desenho breve, à partida extinto, de que nada restará senão a sua passagem. Funde-se ouro, bailarinas dançam num bar, que assombrosamente se assemelha a um estaleiro, a um local onde se pára, estando em viagem, mas onde não se fica, onde nada nos diz que fiquemos. Os locais que habitamos são aqueles que nos despertam o desejo de neles reconhecer um motivo para permanecer, tratando-se primeiramente de um desejo de leitura: o lugar diz-me, pede, que o leia e que nele encontre um motivo desejável. Apesar desses elementos de vida breve – um homem a trabalhar o ouro, mulheres a dançar num palco – tudo nos reafirma a estranheza de estar ali. Um recorte circular de espelho surge, ofuscante, no meio da paisagem. Espelho que não deixa ver nada. Imagem abstracta que interliga metonicamente sol e ouro, configurando o primeiro como a matéria fabricada pelos residentes-resistentes da montanha, e o segundo como matéria-prima, o corpo trabalhado e o rosto identitário de quem ali viva, visto por aqueles que se limitam a chegar (para partir): nós próprios, espectadores. Mas, sublinhe-se, em Dawson City os espelhos não compreendem reflexos e/ou estes não devolvem nada.
A estranheza que impera das mais diversas formas é explorada, sendo antes de mais contacto com o real, sob recurso a aparelhos técnicos cuja presença não é nunca obliterada – a câmara está sempre presente -, e pela sucessão de imagens que correspondem muito significativamente à inscrição de desenhos no espaço: no espaço da película fílmica e do mundo, ambas constituindo fundos de estranhamento, plataformas de re-significação. Diz Jean Luc-Nancy, em O Prazer no Desenho, a propósito do desenho como traço e projecto, como forma fechada e plano ao aberto: “O desenho é então a Ideia: ele é a forma verdadeira da coisa. Ou, mais exactamente, ele é o gesto que provém do desejo de mostrar esta forma e de a traçar de modo a mostrá-la. Não se trata, contudo, de traçar para mostrar como uma forma já recebida: traçar é aqui encontrar, e para encontrar há que procurar – ou deixar que ela se procure e se encontre – uma forma por vir, que deve ou que pode vir no desenho.” (Nancy, 2022: 17). O desenho, que em Musical Insects (2013) tem um papel estrutural – filme composto a partir de um livro de ilustrações com a exposição paródica de diversas espécies de gafanhoto -, representa um mecanismo de realização cinética e a proposta de um plano de investigação em curso. E aqui desenho é todo e qualquer movimento de intercepção com o meio: seja um amontoado de terra a ser revolvido por uma escavadora, um barco cortando as águas do mar, a sobreposição de setas e sublinhados por cima do plano de uma paisagem, a impressão da ausência de corpos na relva, em The Magician’s House (2007). Neste filme, fotografias, retratos desvanecidos, o posto de correio com a inscrição “ithaca jounal”, as vozes imperceptíveis de duas crianças, uma casa vazia, em que os sinais de vida compreendem uma função mitológica ampliável (lembrada a Odisseia pela referência a Ítaca, um retrato que não parece do tempo da casa, encerrando um arcaismo, temporalidade ilocalizável, conquanto potencialmente redentora).
O mito, na sua dimensão universal, também ela plástica, dispõe tanto a memória como território a desbravar, jamais absolutamente conhecido, como enquanto desolação e abandono de uma forma que, antes de se prestar a constituir o signo identitário de um alguém, é por excelência marca de presenças passadas, irrecuperáveis, tão-só imagináveis. Mas a imaginação é aqui, neste tempo que nos cabe e que parece ter chegado já tarde, matéria para as máquinas talharem. Saberemos, ou não, um dia, com que mãos, e com que guindaste, urdimos o nosso próprio retrato no mundo. E que máquinas habitaram os pontos cegos que nos formam e nos motivam a continuar e aos quis, por facilidade, nos habituámos a designar: universo infinito.
Bibliografia:
Nancy, Jean-Luc (2022). O Prazer do Desenho. Lisboa: Documenta.
Stiegler, Bernard (1998). Technics and Time 1. Stanford: Stanford University Press.
Stiegler, Bernard (2015). States of Shock, Stupidity and Knowledge in the 21th Century. Malden: Polity Press.
Há recantos em Portugal que parecem ter sido esquecidos pelo tempo. Aldeias e vilas que persistem, erguidas como monumentos de uma certa maneira de viver, já praticamente extinta, como Manuela Serra teria previsto no fatídico plano final do seu O Movimento das Coisas. Cerca de 40 anos depois, estes mesmos lugares tornaram-se millieux onde diferentes energias geracionais convivem. Aqui, a resistência ancestral dos mais velhos contrasta com a inquietude dos mais jovens, motivados pelo impulso de explorar o que há “lá fora” e o espaço que ainda têm para sonhar.
Légua, de Filipa Reis e João Miller Guerra, que teve estreia na mais recente Quinzena dos Realizadores, em Cannes, tem no seu núcleo este mesmo conflito, enraizado na aldeia homónima em Marco de Canaveses e as personagens que lá habitam. Em particular, Ana e a idosa Emília, carinhosamente apelidada de “Milinha”, caseiras de uma antiga moradia senhorial com o nome de Casa da Botica. Juntas, rotineiramente mudam os lençóis das camas (cada conjunto devidamente organizado e etiquetado), tratam das plantas do jardim, limpam o pó e pulem a prata dos talheres. Tudo para melhor receber os donos-fantasma que porventura nunca voltarão a pisar o chão que as duas mulheres tanto cuidam e que apenas chegará a ser palco de um Manuel Mozos em vestes irónicas de padre. Este, irmão da Senhora, tanto deixa as compras por pagar, como se esforça para retirar o “triste crocodilo” do seu novo polo, não hão de os compadres jesuítas julgar.
Não obstante, Milinha parece encarar o trabalho como a sua missão de vida. É, no sentido mais literal, a sua casa, embora durma num quarto mais modesto na cave, cujo acesso obstruído por degraus traduz-se numa batalha para o seu corpo frágil. Apesar de não considerar a moradia sua, é claramente lá que sente pertencer, regendo-se, no entanto, sempre perante a hierarquia da sua empregabilidade. Não desafia esta condição e lastima Ana, quando esta demonstra sinais de contestação perante o sistema segundo os quais regem os dias de trabalho. Será punida, se deixar o quadro torto? Sim, mas apenas por Milinha.
Na dinâmica entre ambas, e ainda Mónica, filha de Ana, que estuda engenharia no Porto, presenciamos uma linha contínua da relação geracional com o meio. A mais nova e a mais velha, representando opostos, e Ana, suspensa no limbo entre ir e ficar, o novo e o velho. Inicialmente, descobre-se que planeia emigrar com o marido para França, na esperança de melhores salários, que os ajudarão a acabar a construção de uma casa própria. Contudo, decide ficar, quando descobre que a colega está doente. Sabe que Milinha, dada a escolha, preferia ver a sua vida concluída na única casa que conhece, junto das várias caras familiares, emolduradas em fila nas prateleiras. Desta forma, o cuidado da casa converte-se no cuidado de Milinha e um testemunho dos ritmos da morte, encenada aqui por uma não-atriz, cujo sóbrio poder se manifesta na vulnerabilidade da sua entrega.
Perante este exercício, o tempo permanece aquilo que pontua o filme. Acompanhando as várias repetições que compõem os nossos dias, e os transformam em meses e anos, Filipa Reis e João Miller Guerra fazem questão de sublinhar continuamente a passagem das estações e o crescimento das plantas como forma de espelhar o ciclo vital. No centro destas flutuações intermináveis, a Casa da Botica perdura enquanto monstro estanque, microcosmo que aloja transições, aparentemente sob a condição que estas não o afetem.
Em contrapartida, Ana parece curvar-se perante a mudança, adaptando-se às suas mais variadas facetas, como mais um passo no fluxo natural do mundo. É uma personagem que Légua rapidamente nos apresenta em consonância com a sensibilidade das coisas. Uma mulher aberta à sensualidade e às emoções que podem surgir, até no simples ato de pôr creme enquanto se canta “Amor de Água Fresca”. Entregando-se ao prazer dos pequenos momentos, reconhecemos nela a poética do ato de regar as plantas, de estender lençóis lavados, apanhar sol num dia ameno e mergulhar nas águas frias do norte de Portugal. Atendemos aos pormenores e às nuances de cada sentido – o toque, o olhar, o cheiro, o sabor -, despertados pela atenção da câmara e pela humilde magia da presença de Carla Maciel.
Mas para além destes atos facilmente romantizados, desaceleramos com ela, numa entrega mais dura. Fala-se aqui de mudar a fralda de Milinha, de ajudá-la a tomar banho e tão carinhosamente servi-la caralhinhos de São Gonçalo, acompanhados de chá servido na mais fina loiça, que a colega de outro modo provavelmente nunca teria tocado. Vislumbramos o que parece vir a ser o último instante prazeroso, uma espécie de canto do cisne da sua devota servidão, agradecida em contrapartida pela visita de uma agente imobiliária.
Dando um passo para trás, vemos como a relação de Milinha com a casa e os seus objetos em muito espelha o seu estado de saúde, que deteriora à medida que a mesma se insere gradualmente, e apenas por necessidade, nesses espaços e gestos proibidos aos serviçais. Quando a conhecemos, desempenha as suas tarefas com brio, retirando-se ao fim do dia para o seu quarto no andar de baixo. Contudo, à medida que se torna progressivamente mais debilitada, vemo-la, contrariada, mudar-se para um quarto de hóspedes e, mais tarde, para a própria sala de estar, onde a sua cama articulada ocupa proeminentemente o centro da divisão e ela dificilmente limpa os copos de cristal.
Paralelamente, virgulando a rotina sóbria das duas mulheres, surgem impulsos de um certo desejo experimentalista que evoca o tal confronto geracional no cerne da narrativa. São instantes estes que se revelam em quebras, sejam estas visuais ou musicais, por vezes sublimes e por outras disruptivas. Neste último caso, uma prática de certo modo inclinada à mais jovem Mónica, no que parece ser uma tentativa de porventura destacar a personagem, posicionada num patamar em desequilíbrio com as demais. Não deixa de ser, contudo, interessante testemunhar o choque entre a contenção inerente ao 4:3 em que Légua nos chega, os granulosos 16mm, e essa quebra temporal e visual, que a certo ponto até ataca os sentidos que o próprio filme despertou.
Serão estas as pulsações do coração complexo que é Portugal – um país que, tal como Ana, se encontra no limbo entre os gestos ancestrais e a ambição contemporânea que o percorre? Independentemente da resposta e da incerteza do futuro, enquanto espectadores observamos a tesoura de Átropos corroer o fio de Milinha, e o que ela representa, linha a linha.
Ikiru, de Akira Kurosawa, poderia ser apenas um cliché melodramático – mas não o é. Num tom quase neorrealista, este filme transporta-nos para a cidade de Tokyo em 1952, período em que o Japão conheceu um boom socioeconómico. Afinal, se o ponto de partida para a história não é propriamente ímpar, as escolhas estéticas, o comentário satírico e a performance emotiva fazem deste um marco na história do cinema.
Habitualmente traduzido para “To Live”, Ikiru constitui, acima de tudo, uma febril meditação sobre o significado da vida. É através de Kanji Watanabe (protagonizado por Takashi Shimura), um irrepreensível funcionário municipal, que somos convidados a refletir sobre o valor da existência. Apresentando-se ao serviço sem uma única falta nos últimos 30 anos, o ‘nosso protagonista’ – como a voz off o apresenta – é uma encarnação do sistema burocrático japonês; um retrato da ocidentalização do Oriente.
Enterrado em folhas de papel que carimba monotonamente, Kanji toma consciência da sua condição de morto-vivo após ser diagnosticado com cancro no estômago. Depois do seu diagnóstico, deambula pela vida à qual já não pertencia, num estado de flutuação sugerido pelo jogo de transparências e de sobreposições entre planos. Apesar de tudo, a morte não assume contornos tétricos. É, antes, uma inevitabilidade e um veículo para uma epifania de significado.
Na primeira parte do filme, acompanhamos a ação do protagonista na primeira pessoa. Diga-se ação, mas adicione-se-lhe tempo. Porque Ikiru resulta de uma forma pausada de fazer cinema, de um ritmo monocórdico que se funde harmoniosamente com o trabalho fotográfico a preto e branco. Assistimos à sua tentativa inicial de autodestruição: beber era simultaneamente horrível e prazeroso, uma forma de se castigar pelas escolhas passadas. Consumido pelo arrependimento, Kanji Watanabe embarca num exercício de rememoração, onde o nome do seu filho – Mitsuo – ecoa fantasmagoricamente. É ao som de “Happy Birthday” que emerge a sua vontade de encontrar sentido e de desafiar a máquina burocrática que o aprisionou. Como se de um (re)nascimento se tratasse, este é um exemplo da indissociabilidade do cinema e do som.
Por sua vez, na segunda parte do filme, o diálogo e a memória sobrepõem-se à ação propriamente dita. À semelhança de 12 Angry Men, também aqui a história do protagonista é apresentada e desconstruída através de terceiros. Interessados em compreender a sua súbita mudança de comportamento e a causa da sua morte, os vários burocratas debatem em torno do seu altar. Ora, se em 12 Angry Men, os jurados se reúnem para decidir a sentença do réu, neste filme o tempo do julgamento é diferente. Tecem-se juízos sobre um morto e, consequentemente, nasce uma atmosfera de compunção profunda irreparável. Ikiru culmina numa memorável cena final – sentado num baloiço, Kanji Watanabe entoa serena e pausadamente “Gondola no Uta” de Daisuke Abe (“Life is brief / fall in love, maidens”). A neve forma uma cobertura nas suas costas curvadas. A sua expressão revela o contentamento de quem cumpriu o seu propósito e já não teme a proximidade da morte.
É esta performance poética que consolida o detalhe psicológico da personagem. Através desta, o filme reveste-se de uma aura de inocência e humanidade. No entanto, e ainda que dotado de um dramatismo cinematográfico incomparável, não prescinde da abordagem satírica à sociedade moderna. Numa montagem sequencial de planos rápidos, vemos os problemas serem encaminhados de departamento em departamento, sem nunca serem resolvidos. Compreendemos que a genialidade do filme reside (pelo menos em parte) na atualidade da crítica tecida e refletimos sobre a nossa passagem pela vida: sempre amenizados, sedados e automatizados.
E porque viver é diferente de estar vivo, talvez precisemos deste filme, onde os contrastes de luz e o trabalho de câmara enfatizam a efemeridade da vida. Considerado por alguns como a obra-prima do mestre japonês, Ikiru poderia ser apenas um cliché melodramático – mas não o é.