Ardente·x·s: o desejo como um fogo que não é de apagar

 A primeira longa-metragem do realizador Patrick Muroni, Ardente·x·s, selecionada para o Visions du Réel, em Nyon, é agora apresentada na 26ª edição do Queer Lisboa, entre os 8 filmes na competição de documentários. O cineasta suíço filma na cidade onde estudou, Lausanne, e acompanha uma parte do trajeto das OIL Productions, produtora de filmes pornográficos queer. Definindo-se como um coletivo feminista ético e dissidente, o grupo é constituído maioritariamente por mulheres e pessoas não-binárias. As suas intenções são claras: repensar a pornografia enquanto género cinematográfico capaz de abarcar a multiplicidade de corpos e desejos humanos através da criação de espaços seguros onde se pode desmistificar e explorar a sexualidade. Muroni possui a habilidade de realmente se (e nos) envolver no complexo projeto que é o tema do seu filme, não desvalorizando a rede de vários processos e pessoas envolvidas nas produções, assim como os debates recorrentes que sustentam e encaminham a sua prática. O pessoal e o político, como sempre, são coincidentes – ao aprendermos sobre quem se dedica à construção deste coletivo, as suas experiências íntimas, aprendizagens e visões acerca de sexo, conectámo-las aos fundamentos dos seus filmes e, muito além disso, a questões políticas, ao movimento transfeminista e à crença na possibilidade de construção de comunidades mais empáticas e inclusivas. As OIL Productions parecem de facto estar a trabalhar nessa construção, a criação do mundo no qual querem viver. Os seus filmes pornográficos partem da defesa de uma “educação sexual baseada em consentimento e prazer”, como referem no seu site. Uma das suas muitas críticas à problemática indústria tradicional da pornografia é precisamente a falta de conforto entre os atores e entre estes e os produtores, o que bloqueia o prazer de quem atua, e, por consequência, de quem vê também. 

Ver Ardente·x·s e conhecer este coletivo é ver uma necessária materialização daquilo que Laura Mulvey defende: a “destruição do prazer como uma arma radical.” [1] A importante teoria e crítica cinematográfica feminista analisa como o olhar do espetador de cinema é fonte de prazer, e censura a comum codificação do erótico no cinema através de uma dinâmica que reduz o corpo feminino a dispositivo através do qual se explora incontestavelmente o desejo do corpo masculino. Para Mulvey, a destruição dessa forma de pensar o prazer no cinema, a sua rejeição e a criação de sistemas alternativos, é reivindicação necessária, e é possibilidade de sentir mais livremente o desejo na vida real também. Torna-se fundamental “transcender formas desgastadas ou opressivas, e ousar romper com as expectativas normais de prazer para conceber uma nova linguagem de desejo.” [2] Mulvey não falava de filmes pornográficos, mas dos filmes de Hollywood, onde o corpo e o sexo estão envoltos de pudor e proibições, mas ainda assim estão presentes, como inevitável parte humana. A questão parece ser como lidar com essa inevitabilidade de se sentir e desejar prazer? Pensa-se o prazer como errado ou como válido? Como algo a controlar? Ou poderá o prazer ser possibilidade de exploração livre, sem constrangimentos, e acessível a todos os corpos? 

Ardente·x·s, de Patrick Muroni © Direitos Reservados 

Os filmes do coletivo que Muroni nos dá a conhecer exigem uma ressignificação radical do desejo, pensado não em referência à velha estrutura heteronormativa, mas em vez disso, em consonância com os limites, necessidades e vontades individuais de cada participante. Aqui os corpos não se encaixam num molde rígido, e já repetido até à exaustão. O prazer é gozado em proporção com a autodeterminação e há permissão para o explorar nos termos de cada um, para o verbalizar, para o questionar, para o adaptar sempre que necessário. Ardente·x·s ensina-nos que, nesses termos, o prazer talvez seja ilimitado. 

Vera Barquero

[1] Mulvey, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema” in Visual and Other Pleasures, pag.15. Nova Iorque: Palgrave, 1989.

[2] Mulvey, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema” in Visual and Other Pleasures, pag.16. Nova Iorque: Palgrave, 1989.

[Foto em destaque: Ardente·x·s, de Patrick Muroni © Direitos Reservados ]

Vieirarpad ou uma simbiose mais que imensa

Um dos mais recentes filmes de João Mário Grilo, a par de Campo de Sangue, é Vieirarpad – documentário sobre Maria Helena Vieira da Silva e Arpard Szenes, nomes fundamentais na história da arte portuguesa. O casal, para além de partilhar a intimidade, partilhava a profissão – eram amantes tanto um do outro como da pintura, e é impossível que tal não transpareça em qualquer filme que sobre eles se faça. A virtude de Vieirarpad está em entrelaçar habilmente as diferentes dimensões das suas vidas, oferecendo-nos um retrato individual de cada um dos artistas, as suas diferentes personalidades e visões, e não se resumindo a tratá-los como um só. É certo que a sua união era notoriamente forte, genuína e, sobretudo, saudável, baseada no respeito e admiração mútuos. Diz-se no filme que essa é dinâmica rara entre artistas, que a tendência é para comportamentos excessivos e destrutivos, para paixões arrebatadoras que geram histórias documentais em nada reconfortantes como Vierarpad. Não será essa uma dinâmica rara de observar em qualquer grupo social? A estabilidade do vínculo de Vieira da Silva e Arpard surpreenderia qualquer pessoa. Cada um parecia ter encontrado no outro o descanso de um companheiro fiel, uma presença cúmplice que deseja crescimento em conjunto, mais do que exige retorno de carinho. O seu amor era ternurento assim: um dedicando a vida ao outro e os dois à pintura, influenciando-se mutuamente, incentivando-se sempre a criar, cada um na sua própria pesquisa.

A body of water with trees around it and mountains in the back

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VIEIRARPAD, de João Mário Grilo © Direitos Reservados

Vieirarpad viaja pelas cidades por onde o casal passou, levando-nos às ruas por eles conhecidas de Paris, Rio de Janeiro, Lisboa e outras, enquanto nos lê a correspondência que trocaram. A matéria fundamental do filme está precisamente nas palavras que escreviam nos breves períodos em que estavam afastados. Partindo de Escrita Íntima, edição da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, onde se apresentam compiladas as cartas enviadas entre 1932 e 1961, o documentário cruza a sua cumplicidade com os acontecimentos da época que os afetaram pessoalmente – nomeadamente a 2ª Guerra Mundial que os forçou ao exílio no Brasil – e ainda com as suas obras plásticas. João Mário Grilo presenteia-nos com as pinturas dos artistas projetadas do tamanho do ecrã. Aumentadas ao pormenor, a sua riqueza iconográfica é evidenciada. Os dois eram não apenas talentosos, mas realmente empenhados e consistentes na sua dedicação à pintura, tendo deixado um corpo de trabalho admirável. 

VIEIRARPAD, de João Mário Grilo © Direitos Reservados

O documentário recorre também a sequências de imagens de Ma femme chamada Bicho, filme que o casal gravou em 1978 e no qual se dão a conhecer, um através do outro, como habitual. Rever interações suas quotidianas, guardadas para sempre nessas gravações, confirma-nos que Vieirarpad é um filme de fantasmas. Já a primeira cena nos mostrara a sua campa conjunta, remetendo antes de tudo para as suas mortes, e só depois para as suas vidas, que apenas o cinema consegue de alguma forma recuperar. Os depoimentos que o documentário reúne ajudam na construção do imaginário da existência desses seres. Maria Helena e Arpad aparecem-nos como fantasmas amorosos, felizes na simplicidade, em nada pequena, de se terem um ao outro e à sua arte. Vieirarpad é sem dúvida um retrato carinhoso destes artistas inseparáveis que se apelidavam de “bichinho” e que desenvolveram expressões próprias para demonstrar o afeto gigante que sentiam um pelo outro. Numa das cartas Vieira da Silva escreve: “Sempre que dou uma dentada em coisas boas penso em ti.” Será difícil terminar este filme sem uma sensação de encantamento perante as bonitas vidas que nos apresenta.

Vera Barquero

[Foto em destaque: VIEIRARPAD, de João Mário Grilo © Direitos Reservados]

Le Rayon Vert: a amizade entre a superstição e a ansiedade

Le Rayon Vert (1986) começa apresentando-nos Delphine numa situação que a deixa transtornada e que serve de mote para o percurso que o filme seguirá: a amiga com quem ia de férias cancela os planos. Tal mudança inesperada deixa Delphine em lágrimas pois não suporta viajar e estar sozinha, porém também não lhe agrada o convívio que férias em grupo exigem, e tampouco lhe resta tempo para arranjar outra companhia que possa ir consigo no lugar da amiga. Esta problemática pode parecer trivial, e a sua reação, de quase desespero, é algo exagerada e dramática. A empatia com esta personagem pode não ser imediata. Delphine pode dar-nos a primeira impressão de ser um pouco infantil na maneira como encara as peripécias da sua vida, contudo se não desistirmos de a acompanhar durante a hora e meia que o filme dura, talvez entendamos melhor os seus motivos, e talvez até reconheçamos algo de nós nessa sua procura incessante por algo que ela própria não sabe muito bem o que é nem que forma tomará. A temática do filme é essa – os dilemas interiores desta personagem enquanto procura companhia e local para as férias de verão e o desencanto geral com o que vai encontrando, ou melhor, a sua falta de sentimento de pertença onde quer que esteja. Este leva-a a saltitar por vários sítios e a contactar com diversas pessoas, sempre em busca desse algo que a preencha e cuja falta sente com pesar.

Le Rayon Vert, de Éric Rohmer © Direitos Reservados

Sendo este um filme de Éric Rohmer, não escapa à característica habitual de encadear momentos e conversas do quotidiano, situações triviais que podem por vezes roçar o aborrecimento, mas que agilmente tecem a narrativa de forma envolvente, fazendo-nos prestar atenção à psicologia das personagens, àquilo em que acreditam, a visão do mundo que têm e, sobretudo, a forma como se relacionam, como falam entre si e criam vínculos, o que procuram um nos outros e o que os deixa inseguros. É difícil não nos relacionarmos com quem vemos no ecrã, mesmo que não nos identifiquemos com as suas lógicas, conseguimos perceber a sua humanidade. As personagens de Rohmer são honestas e realmente parecem verbalizar os seus pensamentos mais íntimos. Le Rayon Vert possui ainda a particularidade de ser um filme improvisado em que para cada cena se filmou apenas um take, e no qual Marie Rivière, atriz principal, teve liberdade para desenvolver os diálogos a partir das linhas gerais indicadas pelo realizador, tal como relatou em entrevista à plataforma de streaming Mubi. O facto de não ter existido um guião a ser seguido permitiu a absorção de aspetos da realidade pela ficção do filme: os diferentes locais que Delphine atravessa têm alguma conexão com a equipa, eram sítios por eles regularmente visitados; as famílias das personagens eram de facto as famílias das atrizes; e um certo sentimento de solidão liga Marie Rivière a Delphine, de acordo com o que revelou na entrevista mencionada. 

De facto, Delphine parece sentir-se sozinha, mesmo que rodeada de pessoas que lhe querem bem e cuidam dela. A sua solidão é sobretudo interior e é alimentada por uma angústia que parece já fazer parte de si, um sentimento de desconsolo em relação a si mesma, uma crença de que não é funcional, como afirma em lágrimas já quase no final do filme. Há algo que parece bloqueá-la a partir de dentro e que a impede de se relacionar mais intimamente com os outros como tanto deseja. Numa outra conversa, e pressionada por uma amiga que questiona a sua inércia, confirma precisamente que tem muito para expressar, mas que simplesmente não o faz. Delphine parece encarnar o sentimento de ansiedade, esse conflito entre uma vida interior que aspira a conexão com urgência e a dificuldade em materializar, com palavras e ações, tal necessidade no mundo exterior. Desde o início do filme que, repetidamente, a ouvimos falar da sua vontade de conhecer alguém para de seguida assistirmos à sua recusa quando alguma circunstância parece permiti-lo. Apesar de Delphine se mostrar insegura, ao mesmo tempo confia profundamente na sua intuição e espera de forma desassossegada por alguém que a faça sentir o que procura, acreditando que quando encontrar tal pessoa, simplesmente saberá. 

Le Rayon Vert, de Éric Rohmer © Direitos Reservados

A sua sensibilidade para atribuir significados e interpretar o seu redor certamente a ajuda nessa tarefa – Le Rayon Vert fala-nos também de superstições e repetição de situações e objetos que não se explicam facilmente de forma racional. Delphine encontra diversas vezes cartas no chão, isoladas dos baralhos, e não sabe o que tal padrão significa, mas suspeita que signifique algo, atribuindo-lhe uma importância que começa a fazer parte da sua experiência pessoal de deambular pelas ruas. São pequenas coincidências que só ela nota, são conexões íntimas entre si e o mundo. Noutra situação, escuta um grupo de amigos que conversam sobre o livro de Júlio Verne do mesmo nome que o filme. É dessa forma que aprende sobre o fenómeno físico que é possível observar em dias luminosos e em locais com a linha de horizonte bem definida: o último raio de sol antes de este se pôr é verde. Assistir a tal fenómeno é raro, pois este é muito breve e necessita de condições atmosféricas precisas. A explicação científica para que tal aconteça é comentada no filme, porém sobrepõe-se, para Delphine, o seu significado místico. De acordo com o romance de Júlio Verne, o raio verde confere a quem o presencia a capacidade de entender com clareza quer os seus sentimentos quer os dos outros. Delphine é cativada por esta descoberta e procura a possibilidade de ver o raio verde, entendendo-o como uma confirmação do seu estado emocional íntimo, e até sentindo a necessidade de o ver para se entender melhor a si mesma.  

Em Le Rayon Vert parece estar sempre a ocorrer um jogo entre o interior e o exterior. Delphine procura constantemente fazer a conexão entre a sua pessoa e o que tem à sua volta, pensando em si como parte integrante do ambiente ao invés de como sujeito isolado e desapegado – como quando afirma que as alfaces são suas amigas. Para Delphine, viver deve sempre ser o ato de estar inteira e presente, não tendo receio de recusar todas as pessoas e situações que não a façam sentir assim. Mesmo que tal atitude prolongue a sua busca por segurança e amor, Delphine só quer o que é genuíno e sincero.  

Vera Barquero

[Foto em destaque: Le Rayon Vert, de Éric Rohmer © Direitos Reservados]  

Sandra Lahire’s screen/body 

The free access streaming platform Another Screen – created and curated by the feminist film journal Another Gaze – presents a program consisting of a selection of Sandra Lahire’s films. 

In the 1980s and 1990s, the British artist had an influential role in the London experimental and feminist cinematic production. She only made ten films, all of which are short or medium length, and seven of them are being presented online, with new critical writings to be released by the platform as well. The viewing of these films allows us to get to know this woman who is almost not spoken of and her body of work, which cannot be detached from her, and which is an extension of her. To see Lahire’s films is to be invited to step into her intimacy and to empathize with her body and so many others that she shows us. That seems to be the power of her filmmaking – to weave everything together and to notice the intersectionality that connects multiple aspects of the feminist movement, that she supports, and of human life itself. The individual and the collective don’t dissociate from each other, just like what is artistic doesn’t dissociate from what is personal, and neither does the human from the non-human – all her movies mirror this overarching logic that binds supposed opposites. The image processing is always hectic, and not only does everything fit in the same film but also everything dances together – as the program presentation describes, a blend of documentary, performance, animation and experimentalism unfolds in each project with a very distinctive harmony. Lahire herself embodies manifold aspects: she was a lesbian, feminist and queer activist in Thatcher’s time, suffered from anorexia, and supported the anti-war and anti-nuclear energy movements. All these themes reflect in her films, enabling us to raise questions that are still relevant today, which is a sign that Lahire also surpasses generations – and that the same systemic problems are still being dragged…

Terminals, de Sandra Lahire

Terminals (1986), Plutonium Blonde (1987), Uranium Hex (1987) and Serpent River (1989) are the 4 films that the director made about the adverse effects of nuclear energy production. Uranium mining proceeds despite the known negative repercussions on human health and the environment. It is the voices of women, workers in this industry, that disclose their reality and concerns. The films intertwine those voices and bodies with the machines and colossal sounds they deal with daily, exploring the harmful effects of capitalist industrial progress on their bodies and communities. The results are fusions of superimpositions of images and sounds, changes and reversals of speed, always accompanied by narrations that guide us through those troubling journeys across the mutations technology triggers: we see repeated images of X-rays as proof of radiation-caused diseases, and someone telling us that the local river’s waters are contaminated and not fit for consumption anymore. “You can’t drink the water to save your life” is the conclusion of that woman. Both the bodies and natural resources carry open wounds from the world’s rampant exploration.   

Serpent River, de Sandra Lahire

In this artist’s work, the specific wounds that patriarchal culture cuts up in the feminine body are also a point of reflection and critique. In Arrows (1984), for example, Lahire brings up certain cultural dynamics that contribute to the emergence of anorexia cases, namely women’s historical subjugation as passive objects of desire and the attempts to mold feminine bodies according to hallucinatory beauty standards. Lahire describes invasive surgical procedures of liposuction, animates magazine clippings of female models to the sound of an aerobics class prompts, and retrieves Eve’s biblical image as a reminder of the dominant symbology of woman as sinner. As a gesture that connects these collective narratives with profoundly intimate feelings, the filmmaker establishes a parallel between images of her anorexic body and caged birds, implying the suffocation that she feels and confesses to the spectators: “If only I was not alone in this big empty skin. If only you could come in and comfort me.” This was Lahire’s first movie and with it she revealed the ability to not be afraid of her vulnerability and to expose herself in all her sufferings, perhaps as an attempt to bond with other anguished bodies who can relate to her through her films.  

The British director’s filmography is also highlighted by the close dialogue with the poet Sylvia Plath. It is Plath’s voice that reads some of her poems in Lady Lazarus (1991), alternated with excerpts from an interview she gave just before her death. The use of language is articulated with Lahire’s usual constant flow of images, this time on the theme of suicide, reminding us we can’t escape our mortality. There’s a constant poetic aspect in the visual parallels that Lahire creates. In all her works, the tangle of languages is on the verge of becoming disordered, however, there is a surprising lucidity that shelters so many aspects of the human experience. The intricate image and sound montage seems to be guided by the torments that a woman who doesn’t conform and finds affinities everywhere feels in her skin. Her image sequences become a body – they talk to us, sing to us, cry and laugh, take us to fly with the birds while also leaning us against the wall, not letting us look away while what they have to say hasn’t been said yet. Sandra Lahire created films that are constant metamorphosis, everything transforms into everything, and everything refers to the body that, tireless, doesn’t shut up.    

Vera Barquero

Texto disponível em português aqui.

[Foto em destaque:  Lady Lazarus, de Sandra Lahire]

Um Nome para o Que Sou: as mulheres que fomos e as mulheres que queremos ser

Integrado na secção de Sessões Especiais da edição de 2022 do IndieLisboa, o documentário Um Nome para o Que Sou lê-nos um livro em forma de cinema: As Mulheres do Meu País, obra que Maria Lamas, mulher incontornável do feminismo português, escreveu, retratando intimamente as condições de vida das mulheres que procurava e encontrava à medida que percorria diversas regiões portuguesas, entre 1947 e 1949. Com realização de Marta Pessoa e argumento de Susana Moreira Marques, o filme folheia esse documento fundamental, cita algumas das descrições da vida rural da época, dá-nos tempo para olhar os retratos fotográficos que acompanham o texto (grande parte dos quais são da autoria da própria Lamas), permite-nos assimilar a dureza do quotidiano dessas mulheres, presas a uma rotina de trabalho árduo e a mentalidades que faziam delas submissas, que lhes negavam espaço e voz – “somos escravas do nosso corpo”, ouviu Maria Lamas dizer uma e outra e outra vez. 

Eram histórias impressionantes, as que cada uma dessas mulheres tinha para partilhar; histórias que continuam a impressionar pela naturalidade com que são contadas – situações atrozes tornadas comuns, inevitáveis. Impressionam ainda mais por não serem só histórias, produtos da invenção, mas vidas que se viveram exatamente assim, nessa brutalidade que o trabalho marcava nos corpos das mulheres, que os desgastava até à exaustão quando a exaustão não lhes era permitida e, portanto, elas continuavam a trabalhar e ainda a servir, a cuidar, a moldar-se a um sistema onde eram indispensáveis, mas nunca valorizadas. Vidas talvez difíceis de imaginar, realidades que parecem tão distantes porque em tão pouco se assemelham à nossa, contudo, esta era a vida das nossas bisavós e avós, mulheres que conhecemos, e que as criadoras de Um Nome para o Que Sou foram em busca de conhecer também. Algumas das mulheres com quem Maria Lamas falou ainda são vivas e contam na primeira pessoa a rotina que lhes foi impingida mais do que oferecida como opção. 

Um Nome para o Que Sou, de Marta Pessoa © Direitos Reservados

Este documentário é uma revisitação de pessoas, sítios e contextos que era necessário revisitar. A certa altura vemos alguém folhear as páginas de uma revista à qual Maria Lamas tinha concedido uma entrevista e cujo título era uma citação sua: “Todos somos o produto das épocas que passaram.” É importante, então, fazer ligações entre o presente e o passado, notar o que se repete de forma sistemática e geracional, honrar tradições que nos ensinem algo, mas romper com as que apenas trazem opressão e abuso. Um Nome para o Que Sou é exemplar na forma como conecta diferentes tempos e espaços, apresentando-nos a figura de Maria Lamas e o seu ativismo incansável e honesto, sempre em associação com reflexões acerca do que ainda resta fazer. Ao falar de feminismo, mesmo que não diga esta palavra, o filme parece ter noção de que já muito mudou e ter noção também de que ainda é necessário que muito mais mude.     

 A realizadora e a argumentista estudaram o amplo espólio da escritora – agendas, blocos de notas, cartas; a também jornalista e tradutora guardava tudo, como que honrando esse privilégio de saber escrever e ler, aprendizagem a que tantas mulheres do seu tempo não tiveram acesso. Às suas irmãs, é assim que se refere a elas, não foi permitido, muitas vezes de forma propositada, deixar memórias ou trocar correspondência. As Mulheres do Meu País é um documento único de registo de vidas que se teriam esquecido, e Um Nome para o Que Sou complementa-o, de certa forma, ao procurar especificamente por cada mulher, descobrir o seu nome e associá-lo à sua cara. É ação simbólica, é certo. Não remenda as suas vidas sofridas, mas não há maneira de o fazer – podemos, contudo, acompanhar o filme nesse ato de reconhecimento, de não permitir esquecer, e prolongar para a própria vida a atitude de não deixar ninguém para trás e de ressignificar as vezes que forem necessárias o que é ser mulher, contra narrativas redutoras que associam mulheridade a obrigação de estar à disposição.     

Um Nome para o Que Sou, de Marta Pessoa © Direitos Reservados

Com as suas reflexões incisivas, Marta Pessoa e Susana Moreira Marques parecem saber à partida que nem Maria Lamas, nem nenhuma daquelas mulheres, cabem num filme. Um Nome para o Que Sou cumpre o propósito de mostrar que todas elas são maiores que qualquer projeção – são corpos de carne e osso, vidas concretas, que importa dignificar.  

Vera Barquero

[Foto em destaque: Um Nome para o Que Sou, de Marta Pessoa © Direitos Reservados]

O ecrã/corpo de Sandra Lahire

A plataforma de streaming de acesso livre Another Screen  – criada e curada pelo jornal de cinema feminista Another Gaze – apresenta, a partir de 18 de abril e durante um mês, um programa composto por uma seleção de filmes de Sandra Lahire. 

A artista britânica foi uma figura de relevo na produção cinematográfica experimental e feminista londrina nas décadas de 80 e 90 do século passado. A sua obra é composta por apenas 10 filmes, todos de curta e média duração, 8 dos quais serão transmitidos online e acompanhados de novos textos críticos, também a ser divulgados pela plataforma. O visionamento deste conjunto de filmes dá-nos a conhecer essa mulher de quem quase não se fala, e a sua obra que dela não se pode desconectar e que é prolongamento de si. Ver os filmes de Lahire é ser convidado a entrar na sua intimidade e a empatizar com o seu corpo e outros tantos que nos mostra. Essa parece ser a característica maior do seu trabalho – a de conjugar tudo e notar a intersecionalidade que conecta os mais diversos aspetos da luta feminista que apoia, e da própria vida humana. O individual e o colectivo não se desligam um do outro, assim como o que é artístico não se desliga do que é pessoal, nem o humano do não-humano, e todos os seus filmes refletem esse raciocínio agregador de supostos opostos. O tratamento das imagens é sempre frenético, no mesmo filme não só tudo cabe como tudo dança em conjunto – uma mescla de documentário, performance, animação e experimentação, como define a apresentação do programa, é construída em cada projeto com uma harmonia muito particular. A própria Lahire incorporava uma panóplia de aspetos: era lésbica, feminista e ativista queer na época de Thatcher, tinha anorexia e apoiava o combate à guerra e à energia nuclear. Todas essas temáticas se refletem nos seus filmes e permitem levantar problemáticas pertinentes ainda hoje, sinal de que Lahire também trespassa os tempos – e sinal também de que os mesmos problemas sistémicos se arrastam ainda…  

Terminals, de Sandra Lahire

Terminals (1986), Plutonium Blonde (1987), Uranium Hex (1987) e Serpent River (1989) são os 4 filmes que a realizadora desenvolveu sobre os efeitos nocivos da produção de energia nuclear. A exploração de minas de urânio prossegue apesar das conhecidas mazelas que se fazem sentir na saúde humana e no meio ambiente envolvente. São as vozes de mulheres trabalhadoras nesta indústria que nos revelam a sua realidade e as suas preocupações. Os filmes entrelaçam essas vozes e corpos com as máquinas e sons colossais com que contactam diariamente, explorando os efeitos devastadores que os avanços industriais capitalistas produzem nos seus corpos e comunidades. Os resultados são amálgamas de sobreposições de imagens e sons, alterações e reversões de velocidade, sempre acompanhadas por narrações, que nos guiam nessas viagens conturbadas pelas mutações que a tecnologia provoca: vemos repetidas vezes radiografias como prova das doenças causadas pela radiação e ouvimos alguém dizer-nos que as águas do rio do local onde vive foram contaminadas, e já não são próprias para consumo. “Não se pode beber a água para salvar a vida” é a conclusão dessa mulher. Tanto os corpos como os recursos naturais carregam feridas abertas provocadas pela exploração desenfreada do mundo. 

Serpent River, de Sandra Lahire

As feridas específicas que a cultura patriarcal rasga no corpo feminino são também alvo de reflexão e crítica na obra desta artista. Em Arrows (1984), por exemplo, Lahire traz à tona certas dinâmicas culturais que contribuem para o surgimento de casos de anorexia, nomeadamente a subjugação histórica da mulher a objeto passivo de desejo e as tentativas de tornar os corpos femininos moldáveis segundo padrões de beleza alucinatórios. Lahire descreve práticas cirúrgicas invasivas de liposucção, anima recortes de revistas de modelos femininos ao som das indicações de uma aula de aeróbica, e recupera a imagem bíblica de Eva como lembrança da simbologia preponderante da mulher como pecadora. Num movimento que conecta estas narrativas coletivas com sentimentos profundamente íntimos, a cineasta contrapõe filmagens do seu corpo anoréxico com as de pássaros engaiolados, aludindo ao sufoco que sente a partir de si própria e que confessa aos espectadores: “Se apenas não estivesse sozinha nesta pele grande e vazia. Se apenas pudesses entrar e confortar-me.” Neste que foi o seu primeiro filme, Lahire demonstra a habilidade de não recear a sua vulnerabilidade e de se expôr em todo o seu sofrimento, talvez como meio de criar vínculos a outros corpos em angústia que com ela, através dos seus filmes, se podem relacionar.  

A filmografia da realizadora britânica destaca-se ainda pelo diálogo próximo com a poeta Sylvia Plath. Em Lady Lazarus (1991) é a voz de Plath que recita alguns dos seus poemas alternados com excertos de uma entrevista que deu pouco antes da sua morte. O uso da linguagem é articulado com o habitual fluxo constante de imagens de Lahire, aqui girando em torno da temática do suícidio, lembrando-nos da mortalidade da qual não escapamos. Encontra-se uma componente poética constante nos paralelos visuais que Lahire traça. Em todos os seus trabalhos, o emaranhado de linguagens está a um passo de se tornar desordenado, contudo surpreende pela lucidez com que alberga aspetos tão diversos da experiência humana. A montagem elaborada de imagem e som parece guiada pelos tormentos sentidos na pele de uma mulher que não se conforma e que encontra afinidades em tudo. As suas sequências de imagens tornam-se um corpo – falam-nos, cantam-nos, choram e riem, levam-nos a voar com os pássaros e encostam-nos à parede também, não nos deixam desviar o olhar enquanto o que têm a dizer não estiver dito. Sandra Lahire criou filmes que são metamorfose constante, tudo se transforma em tudo, e tudo remete para o corpo que, incansável, não se cala. 

[Foto em destaque:  Lady Lazarus, de Sandra Lahire]

Berlinale 2022 – A nossa experiência e os nossos 5 melhores filmes (III)

A oportunidade de presenciar a 72ª edição da Berlinale apareceu e quis agarrá-la por inteiro. Uma experiência bonita que despertou em mim a vontade de ver tudo, e não perder um segundo que fosse.

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Carlos Lobo e a beleza poética da juventude

Carlos Lobo, professor de fotografia na Universidade Católica do Porto, apresenta na Berlinale de 2022 a sua primeira curta-metragem de ficção. Aos Dezasseis acompanha uma jovem no epicentro da descoberta das inseguranças e curiosidades típicas da adolescência. Conseguimos, após a primeira exibição do filme, conversar um pouco com o realizador e entender algumas das motivações para este projecto, bem como o processo criativo que o guiou. 

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Sobre o empoderamento intrépido de Márcia no novo filme By Flávio de Pedro Cabeleira

Pedro Cabeleira apresentou By Flávio na 72ª edição do Berlinale, tendo sido selecionado para a competição de curtas-metragens a decorrer no festival. Tivemos a oportunidade de conversar com o realizador que nos revelou que depois de Verão Danado (2017), e enquanto procurava financiamento para a próxima longa metragem, decidiu realizar esta curta para se manter activo durante esse hiato.

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