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Creatura e a repressão do desejo sexual feminino

Elena Martín Gimeno, nascida em Barcelona em 1992, é uma jovem atriz, argumentista e realizadora. Em 2017, escreveu e realizou a sua primeira longa-metragem, Júlia ist, na qual também participou como atriz. Em 2023, traz-nos Creatura, que estreou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes e obteve o Prémio Europa Cinemas para Melhor Filme Europeu. Elena Martín Gimeno escreve o argumento deste filme em conjunto com a espanhola Clara Roquet. É, ainda, Elena a personagem principal do filme: Mila. A narrativa constrói-se à volta desta personagem, uma mulher que decide ir morar com o namorado para a casa onde a família costumava passar férias. Este lugar e as interações com o seu parceiro motivam uma viagem de autodescoberta através das suas memórias. Creatura é um filme sobre a sexualidade feminina e as repercussões que advêm da sua descoberta.

O filme apresenta uma estrutura tripartida. Vemos três Milas: a mulher de 35 anos (Elena Martín Gimeno); a adolescente de 15 anos (Clàudia Malagelada) e a criança de 5 anos (Mila Borràs), de quem a personagem parece ter adotado o nome. Estas três fases da mesma personagem sugerem, na verdade, três personagens diferentes, da mesma maneira que vamos sendo várias pessoas ao longo da nossa vida. As mulheres, entre os 3 e os 6 anos, experienciam, pela primeira vez, o aparecimento de um inocente sexual awakening: existe uma exploração do corpo derivada da curiosidade inerente a esta faixa etária. Na adolescência, com o aparecimento da menstruação, dá-se o adult sexual awakening; e na vida adulta, por volta dos 30 anos, a mulher começa novamente a pensar nestas questões, em parte vindo do desejo de construir ou não uma família. O resultado é, portanto, um filme composto também por três temporalidades diferentes, sendo que a fase adulta é intercalada pelos momentos do passado. 

Creatura, de Elena Martín Gimeno – © Direitos Reservados

Creatura não é organizado cronologicamente porque não é construído de modo conclusivo, ou seja, a realizadora não se propõe a contar uma história com princípio, meio e fim, que se inicia na infância e se conclui na fase adulta. Pelo contrário, é esta fase adulta sinónimo de questionamentos que leva à procura de respostas na adolescência e na infância, o que, consequentemente, transporta também o filme para essas temporalidades. 

Apesar desta divisão ao nível das personagens e da cronologia, o filme passa-se num só lugar: a casa de férias da família, ou o espaço em volta desta (como a praia). Esta casa é usada como meio condutor para as memórias da personagem. E esta memória é um dos temas principais de Creatura. A estrutura não-linear do filme relaciona-se diretamente com a viagem de autodescoberta da personagem que, por seu lado, se relaciona com a maneira como a nossa própria memória funciona, e esta aproximação é um dos aspetos mais interessantes da mais recente longa-metragem de Martín Gimeno. Há ainda outra coisa que o filme parece fazer de forma inteligente, a chamada de atenção para a relação memória/realidade.

Creatura, de Elena Martín Gimeno – © Direitos Reservados

Há uma sequência no filme na qual Mila conversa com a sua mãe (é dos poucos momentos íntimos entre as duas) sobre as lembranças que tem, de pedir ao seu pai que lhe esfregasse o rabo para que conseguisse dormir. E a mãe responde-lhe que não era apenas ao pai que pedia isto, mas também a ela. A verdade é que, muitas vezes, a nossa própria memória nos prega partidas, e é nesta sequência que o espectador parece começar a questionar-se sobre a veracidade de tudo o que viu até agora. O que vemos no filme não são imagens do passado, mas imagens de como Mila se lembra desse passado. 

Existem, por conseguinte, duas relações fulcrais no decorrer do filme: a relação de Mila consigo mesma e com o seu corpo, e a relação de Mila com os pais. Que têm um papel fundamental no que toca à descoberta sexual da criança, são eles que terão de lidar com esta descoberta e são eles os responsáveis por dar algum tipo de esclarecimento às questões existentes. No caso de Mila, não porque os seus pais foram maus pais (a realizadora coloca-se fora deste julgamento), mas por questões muito mais do foro social e cultural. A sua sexualidade foi de certo modo reprimida logo desde cedo, resultando numa enorme ansiedade em volta do desejo sexual, que acabou por se manifestar numa irritação de pele. 

O argumento do filme foi construído com recurso a entrevistas a inúmeras mulheres, jovens adolescentes e crianças. Este é um problema generalizado, afirmam as argumentistas. A sexualidade da mulher é associada a algo sujo e negativo, que é associado a sentimentos de culpa e vergonha, como se de algo não natural se tratasse. Elena Martín Gimeno apercebeu-se deste problema e desta dificuldade que muitas mulheres têm, mesmo em adultas, ao falar da sua intimidade, como se esses temas fossem secretos ou imaculados. A religião contribui crucialmente para esta repressão, fazendo com que estes assuntos se mantenham tabu. O feminismo crescente tem vindo a tentar desconstruir estas ideias, mas ainda existe muito trabalho pela frente.

Creatura é, assim, mais relevante que nunca, pois está na hora de colocarmos estas repressões retrógradas para trás das costas. Mila somos todas nós que não tivemos um espaço seguro para podermos exprimir a nossa sexualidade e intimidade. E uma das coisas mais inteligentes do filme é não cair no cliché da violação, mas precisamente mostrar-nos que não precisamos de ir tão longe para nos tornarmos vítimas de uma sociedade preconceituosa e castradora. Elena Martín Gimeno constrói um filme didático, que não procura chegar a conclusões, mas que procura levantar mais questões e que, de maneira nenhuma, parece deixar o espectador indiferente.

Inês Moreira

Creatura, de Elena Martín Gimeno – © Direitos Reservados

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