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Os fantasmas da sociedade em Great Yarmouth: Provisional Figures

Em 2018, Marco Martins estreia a peça Great Yarmouth: Provisional Figures, baseada em relatos de imigrantes portugueses residentes na cidade costeira do nordeste de Inglaterra: Great Yarmouth. Esta cidade, um dia intitulada de “o melhor lugar do universo” por Charles Dickens no seu romance David Copperfield (1849), tornou-se uma cidade fantasma, uma espécie de Las Vegas pós-apocalíptica. As fábricas de transformação alimentar desta região, aproveitando-se  da crescente crise económica e da capacidade de alojamento dos hotéis e campos de caravanas semi abandonados, começam uma busca por trabalhadores desesperados. Estes trabalhadores tinham de estar dispostos a aceitar quaisquer tipo de condições, aquelas que os ingleses não queriam aceitar. Este fenómeno levou a que a comunidade portuguesa em Great Yarmouth crescesse até aos 7 mil habitantes desde 2009, ano em que os primeiros imigrantes começaram a instalar-se na cidade. 

Apesar do sucesso da peça, Marco Martins sentiu que a sua missão para com este lugar e estas pessoas ainda estava longe de terminar. Assim, começou a escrever o filme que estreou no início deste ano e que fez agora parte da seleção oficial da edição XXIX do festival Caminhos. O filme partilha o mesmo nome que a peça e conta com um elenco de luxo, com nomes sonantes como Beatriz Batarda, Romeu Runa, Nuno Lopes e Rita Cabaço, que, por sua vez, se juntam a vários não-atores. Tal como a peça homónima, o filme baseia-se nos relatos destes não-atores e de outros que acabaram por não marcar presença na peça mas que Marco Martins  documentou ao longo de anos de pesquisa. É uma representação crua das condições de trabalho e de vida deploráveis que marcam este lugar. 

Great Yarmouth: Provisional Figures, de Marco Martins – © Direitos Reservados

Percebemos que o dia-a-dia destas pessoas já não é um dia-a-dia normal, mas sim um dia-a-dia de sobrevivência, e sentimos na pele como sobreviver é uma tarefa miserável. A tal cidade fantasma abriga todos estes “fantasmas” da sociedade, as provisional figures de que fala o título, nome pelo qual ficaram conhecidos os trabalhadores imigrantes em situação indefinida ou provisória. Já nem os próprios passaportes lhes pertencem, e esta perda de identidade está muito bem refletida na visão de Marco Martins. O filme que bebe muito do cinema do realismo social britânico e de referências como Mike Leigh, Ken Loach, numa abordagem à la Nil By Mouth, do reconhecido ator britânico Gary Oldman, transporta-nos ainda para a um outro tipo de arte: a pintura. A sua fotografia, os cenários decadentes, a falta de luz e as cores térreas e escuras deste Great Yarmouth lembram-nos a pintura dos realistas e naturalistas do séc. XIX. Há uma representação muito naturalista do desconforto e da violência desta realidade. Raúl, personagem interpretado pelo excelente Romeu Runa, faz imitações de perús para entreter os britânicos, e é ele uma personagem ridicularizada e humilhada. Nele podemos ver o culminar da metáfora entre os animais, em toda a sua carnificina, e estes trabalhadores imigrantes. Aliás, a metáfora animal-homem está presente desde cedo no filme, que abre precisamente com o tema da migração das aves. 

Os Comedores de Batata, de Vincent Van Gogh (1885) – © Direitos Reservados

Todavia, é praticamente unânime na crítica que a performance de Beatriz Batarda seja o ponto forte desta mais recente obra do realizador lisboeta. Ela que representa a “mãe dos portugueses”, figura também inspirada em relatos reais. É ela que ajuda estas pessoas, mas, ao mesmo tempo, é ela que se aproveita delas, fazendo um jogo duplo com os britânicos, ela que percebe (ou tenta perceber) melhor a língua deles. O gesto e as expressões faciais de Batarda fazem o espectador imergir tão intensamente nestas duas horas de filme que se torna impossível fugir ao desconforto causado por este. Beatriz Batarda prova mais uma vez ser exímia naquilo que faz. Apenas com o olhar ela diz-nos praticamente tudo em planos como aqueles em que conduz pela cidade e apenas lhe vemos os olhos refletidos no espelho retrovisor do carro. É, de facto, um filme que provoca sensações e no qual os 5 sentidos do espectador estão apurados e é fácil para este identificar-se com o que estas personagens veem, ouvem e até mesmo cheiram. Uma das cenas que melhor exemplifica isto é um gesto que a personagem de Batarda repete muito ao longo de todo o filme: o de colocar pomada Vicks no nariz para não sentir o mau cheiro generalizado da cidade. É como nos diz a personagem de Rita Cabaço: “toda esta cidade cheira a sangue e merda”. 

Em suma, é de grandes performances que o filme se constrói em volta de um destino, em tempos turístico, que é a antítese de “casa” e que fica marcado por imagens perturbadoras, desconfortáveis e por ser o lugar onde os sonhos terminam. Great Yarmouth: Provisional Figures é um retrato de uma cidade na qual ninguém quer viver, mas da qual as personagens que conhecemos parecem não conseguir sair. Marco Martins tenta uma abordagem mais poética e teatral na sequência final, talvez ainda inspirado na sua peça, que fica um tanto aquém dos restantes minutos do filme. Ainda assim, a sua última longa-metragem não deixa de marcar esta nova geração de cineastas portugueses que parecem caminhar de mãos dadas com este sentido de denúncia social e com um cinema que se aproxima do cinema de intervenção.

Great Yarmouth: Provisional Figures, de Marco Martins – © Direitos Reservados

Inês Moreira

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