É através de um ecrã que é dado o tom de Tár (2022), num live que rima simultaneamente com o enquadramento de uma situação e com a morosa iminência do que está para acontecer. Simultaneamente, Tár é Lydia (Cate Blanchet) e um espaço observacional, no qual mergulhamos, onde a genialidade, o poder e o fantasmático estabelecem entre si uma inextricável relação de conflito.
Lydia Tár é uma maestrina brilhante, cujo nome entrou para a história, reconhecido amplamente como o de uma das maiores maestrinas vivas e a primeira mulher a dirigir a Filarmónica de Berlim. Numa das primeiras cenas, ficamos a par do seu notável e extenso currículo, através de uma entrevista conduzida por Adam Gopnik (cameo), a propósito do lançamento da sua biografia “Tár on Tár”. Na entrevista, que grosso modo decorre em mezzo piano, ouvem-se os pontos acutilantes para o curso da narrativa: o papel do maestro, do ponto de vista do controlo do tempo (a espontaneidade da musica é uma ilusão) e a leve discussão sobre a relação de Gustav Mahler (compositor no qual Lydia é especialista) com a sua mulher Alma, com enfoque na credibilidade desta como compositora aos olhos do marido (“só há lugar para um idiota”).
A estética de Tár é assim estabelecida numa musicalidade simbólica desencadeada através do diálogo. Em Tár os símbolos são charneiras e vão sendo ativados num lento crescendo, contínuo e contíguo com o que não podemos garantir estar a ver nem a ouvir, isto é, com presença de fantasmas: da estetização do bélico, no próprio espaço de Berlim (para além do espaço físico, em referências históricas), na música clássica per se (já com a controversa nota de abertura sobre Mahler e Alma), na figura de poder do maestro (e na relação com os seus subordinados) e, requintadamente, na figura de uma mulher lésbica no papel de “deus” (de quem se gosta), acusada de abusos sexuais (mas não se pode).
Todd Field orquestra provocadoramente esta rapsódia de conflitos quase como se se tratasse de uma epoché, em que a mise-en-scéne está em perfeita harmonia com uma frieza estética de símbolos, numa narrativa em que a ambiguidade é uma neblina envolvente. Lydia viaja sempre de jato, mas conduz um Porsche elétrico (uma incongruência que lhe podia servir de síntese). Representa uma descentralização da masculinidade preponderante no meio da música erudita, embora conserve imaculadas as suas propriedades tóxicas. Deus está presente (“ele vê tudo”) em Tár e em Lydia, oscilando entre o reconhecimento divino e o adestramento dos seus (fiéis) seguidores. Nas palavras de Luís Miguel Oliveira “é dos filmes mais me too que já se fizeram, mas a protagonista e abusadora é uma mulher, e uma mulher lésbica”. No próprio diálogo verifica-se esta dicotomia palpitante entre o que se percebe e o que se concebe, quando a certa altura há um equívoco fonético entre a palavra misoginia e misogamia.
Com efeito, os símbolos que compõem Tár, em três andamentos — contemplação, crise e queda — surgem-nos num cruzamento de atuais guerras culturais e de uma série de clichés dos retratos de poder, sedimentando uma imagem mais ou menos familiar de alguém que beneficia dos seus privilégios de maneiras eticamente dúbias. Projeta-se no mundo com um único propósito: a arte. Lydia Tár, fria, determinada, genial, maquiavélica e alvo de um escândalo, é uma personagem reescrita sobre um palimpsesto de figuras sobre as quais se mantém aceso o debate sobre a (não) separação entre a arte e a vida.
The Whale, do cineasta Darren Aronofsky, chegou aos cinemas portugueses e trouxe consigo um tópico urgente: o facto de vivermos num mundo carente de empatia. Na cerimónia dos Óscares arrecadou duas merecidas estatuetas, celebrando-se assim o regresso do ator Brendan Fraser, estrela “esquecida” pelo público.
Assim que o filme abre, somos introduzidos à sua personagem principal: Charlie, um professor de um curso online. Apesar de, inicialmente, apenas ouvirmos a sua voz (Charlie esconde-se atrás de uma câmara que mantém desligada), a intensidade dessa mesma voz prepara-nos para um filme que nos irá levar numa viagem emocional desconfortável. Passados uns minutos vemos aquilo que esperávamos ver desde o início: o enorme corpo de Charlie (antecipado já pelo cartaz e trailer do filme). Aquela figura “monstruosa” (o fato de gordura que lhe valeu o Óscar de melhor caracterização) existe não só para “assombrar” e deixar desconfortável o espectador, mas também para trazer para cima da mesa o tema da obesidade mórbida que, à primeira vista, parece ser o tema principal da nova longa-metragem do realizador de clássicos como Requiem for a Dream e Black Swan.
É difícil para o espectador distanciar-se deste corpo e desta obesidade, tendo em conta a forma próxima como a câmara de Matthew Libatique (diretor de fotografia) enquadra a personagem principal – quase sempre em grande plano – e a forma como a montagem sonora dá destaque a certos ruídos que o ator faz enquanto come. Uma das principais críticas feitas ao filme é a de que aquele corpo grotesco apenas serve o propósito de espantar, ou até “entusiasmar” o espectador, de uma forma que pode ser interpretada como populista. Na sala de cinema, vemos que, enquanto Charlie “engole” asas de frango gordurosas, o espectador, que se delicia com um balde de pipocas cobertas de caramelo, ri, sendo pouco claro se se trata de um riso cómico ou nervoso. Considerações à parte, torna-se óbvio que Darren Aronofsky nos queria chocar com estas imagens, ao mesmo tempo que nos remete para a noção extremamente realista das mesmas.
Desta forma, pode inferir-se que o lado performático do corpo acaba por marcar um filme que é, por sua vez, uma adaptação da peça de teatro de Samuel D. Hunter e que, por isso, se vê, primeiramente, apoiado nos seus diálogos. O espetáculo do corpo – um espetáculo visual, que alguns parecem ver como fetichista – caminha de mãos dadas com a palavra, neste que é um filme que não faz por esconder o seu lado teatral. Esta realidade faz com que The Whale acabe por perder, dado respirar tanto a texto dramático. Ainda assim, esta afinidade com o teatro faz-nos pensar que talvez o diálogo expositivo e o cenário único – um apartamento desleixado mas, em suma, um pouco genérico – sejam as únicas duas formas capazes de dar resposta à história de vida de Charlie: uma vida que se passa num mesmo lugar e onde nada acontece e onde só nos resta falar sobre aquilo que já aconteceu.
Porém, The Whale é sobre questões muito mais gerais do que apenas a vida e a obesidade desta personagem. É um filme com várias camadas, que nos fala de orientação sexual, religião, literatura, relações familiares, parentalidade e sentimentos empáticos que nutrimos sobre “o outro” à nossa volta. Na última semana de vida de Charlie, este tenta uma reaproximação com a sua filha adolescente, interpretada pela atriz Sadie Sink, num papel que se mantém muito colado àquilo que faz na série pela qual ficou conhecida: Stranger Things. Ao longo do filme, para além desta interação com a sua filha, Charlie interage com os seus alunos através de uma câmara desligada; com um estafeta de pizzas através de uma porta que mantém fechada; com um pássaro que vem comer à sua janela; com a sua ex-mulher alcoólica; com um jovem que pertence à Igreja New Life e que tenta salvá-lo espiritualmente; e com a sua grande amiga e irmã do seu companheiro morto, Liz. Interpretada por Hong Chau, Liz é a grande companhia de Charlie e é também através dela que vivemos algumas das emoções mais fortes deste filme.
É no olhar de Brendan Fraser que vemos espelhada a necessidade de uma sociedade mais empática. Charlie é um homem que, independentemente da forma como a sua vida tenha corrido, continua a olhar para o mundo à sua volta com um olhar quase inocente, de alguém que vê beleza naquilo que está a presenciar. Há uma felicidade e empatia inerentes a esta personagem que dá ao filme uma pequena mensagem de esperança e que nos faz pensar se terá Darren Aronofsky amolecido ao longo dos tempos. No final de contas, estas personagens todas querem salvar e ser salvas, e é nas ligações entre elas que está a grande magia deste filme. Aronofsky eleva o filme na sua cena final, através de um contraste direto com a câmara desligada no início do mesmo. Finalmente, vemos um Charlie que deixou de se esconder atrás da câmara e atrás de objetos como o andarilho, que o parecia ajudar a movimentar-se pela casa, um Charlie que caminha para a sua filha e que por isso parece ser “absolvido”, numa espécie de libertação religiosa. O branco substitui o preto. A empatia substitui a falta dela.
Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.
Estas reflexões de José Saramago foram originalmente escritas para Lisboa. São “Palavras para uma cidade”, nascidas a partir de uma curiosidade sobre o berço lisboeta e um anseio profundo de poder testemunhar todas as suas mutações e não apenas aquelas que vieram depois de 1895. É um desejo universal, este de criar algum tipo de fisicalidade às nossas memórias. Por isso é que tiramos fotografias, gravamos os nossos vídeos caseiros e compramos porta-chaves da torre Eiffel quando vamos a Paris. São fontes externas, provas dos momentos que experienciamos e ferramentas que podemos manusear para olhar para trás e tentar afirmar, com alguma objetividade: “Eu fiz isto. Eu estive aqui. Neste instante, nós estávamos assim.”
Desta forma, procuramos alcançar também algo exterior a nós, seja uma pessoa ou um lugar, na tentativa de lacrar algo antes que a mente possa trair a anamnese. É neste âmago que surge Aftersun, a primeira longa-metragem da realizadora escocesa Charlotte Wells, cuja protagonista, Sophie, recorda uma semana de férias passada na Turquia com o seu pai, Callum, nos finais dos anos 90. Na corrente de um ritmo delicado, viajamos turvamente entre passado e presente, posicionados na subjetividade de Sophie e no conhecimento implicado de que Callum não se encontra no mais recente plano temporal.
A âncora das suas memórias são, naturalmente, os vídeos caseiros que gravou naquele período, com a descontração e desenfadamento característicos de uma criança de 11 anos que descobre a sua primeira câmara e de um pai a querer encapsular a infância da filha. Com a idade, as imagens tornam-se vinhetas de um tempo irrecuperável, objetos de análise que preenchem as lacunas de um mistério. Sophie parece absorvê-las, questionando o que escondem por trás, na esperança de encontrar respostas. Assim, mesmo nos momentos de inocente felicidade e ternura genuína, permanece, engrenhada, a profunda melancolia do presente e a sensação de haver algo, permanentemente por definir, a borbulhar por debaixo da superfície.
Geralmente, esta é uma história associada ao género conhecido por coming-of-age, uma expressão propositadamente aberta. Podemos pensá-la como “chegar a uma idade”, podendo indicar uma maioridade ou simplesmente uma outra etapa do crescimento humano. No fundo, é um certo tipo de amadurecimento. Mas o que define exatamente esse processo e a quem o podemos associar?
No presente caso, Aftersun coloca ambos os seus protagonistas no precipício da mudança. Sophie, numa posição mais clara, prestes a fazer o salto da infância para a adolescência e Callum, aos 31, no limbo incerto entre jovem-adulto e, simplesmente, adulto. Ou melhor, a imagem que normalmente associamos a essa palavra armadilhada. Uma pessoa formada, que já não tem a necessidade de se questionar a si ou ao estado da sua vida porque, convencionalmente, já o teria alcançado. Seria um pai com a possibilidade de oferecer aulas de música à filha ou comprar um tapete sem ter de pensar duas vezes.
Assim o conhecemos e, mais tarde, Sophie, exatamente no mesmo lugar. Contudo, como ela é o nosso veículo, a nossa porta de entrada para o filme, chegamos, mas nunca estamos, de facto, perto de Calllum. A câmara observa-o sozinho sempre a um braço de distância, de costas ou através de vidros e espelhos. Como se, por cima dele, permanecesse um véu translúcido, impedindo o contacto. Tentamos percebê-lo da mesma forma que ela, na sua imagem mental que serve como interlúdio, entre as luzes fortes e intermitentes de uma discoteca escura, onde, entre o balanço dos corpos, é difícil alcançar alguém.
Por isso persistimos na ambiguidade, no contraste sentido entre a experiência coletiva e individual daquelas férias, na oposição entre a alegria conjunta e a depressão solitária que, com a vulnerabilidade de Paul Mescal e Frankie Corio, se desembaraça naturalmente. O que separa as duas personagens nesse tempo, e as aproxima mais tarde, é exatamente aquilo sobre o qual David Bowie e Freddy Mercury cantam na frontal needle drop escolhida para o clímax, a instantaneamente reconhecível “Under Pressure”. It’s the terror of knowing what the world is about.
E nada mais apto para descrever toda a sensação nostálgica e agridoce do filme do que o título, Aftersun, o creme cuja aplicação minimiza os efeitos do escaldão, mas não cura, propriamente, a queimadura. Apenas o tempo tem essa capacidade. Não obstante, Sophie tenta de certa forma usar os vídeos que gravou com a outrora moderna handycam como a sua marca personalizada de aftersun, uma tentativa de refrescar as suas lembranças e, talvez, encontrar uma cura para a evanescência da memória. Mas de todas as imagens, talvez a mais marcante seja a de uma polaroid de 30 mil liras turcas. Segundo a segundo, as caras de Sophie e Callum vão surgindo no fundo branco. Ao testemunharmos o vazio a transformar-se num artefacto do passado, apercebemo-nos que a motivação de Charlotte Wells, nesta obra imensamente pessoal, é a própria tentativa de recriar essa mesma cadência de revelação, explorando os limites do seu alcance.
Jean (Vincent Lindon) diz a Sara (Juliette Binoche): “Tinhas o anjo. Agora tens o diabo.” e desata a partir coisas do apartamento de Sara. O amor e a paixão são contraditórios, e não se percebe bem onde começa um e acaba o outro. Claire Denis acerta no alvo se o alvo é retratar a complexidade da paixão e do amor e o seus momentos de mais intensa alegria ou frustração, fazendo jus tanto ao título original Avec amour et acharnement como ao título português Com Amor e Com Raiva.
A cena inicial do filme apresenta-nos o casal Jean e Sara, mergulhando e nadando na praia, numa dança aquática pautada pelas notas do piano. Da água passamos para o interior da terra, num plano subjetivo do metro de Paris. É nessa flutuação entre ir ao fundo e vir à tona que a história se desenvolve. Denis filma de uma forma clássica a história de um típico triângulo amoroso. Sara não consegue controlar o desejo pelo antigo amante, François, e a tensão que se começa a desenvolver entre o trio de personagens vai-se intensificando através da música (quase sempre presente) e do uso de câmara lenta em algumas sequências.
O filme da realizadora francesa está longe de ser espantoso e perde-se numa visão algo banal dos dramas passionais. Contudo, essa banalidade não é, neste caso, totalmente descartável, pois é também dela que são feitas as nossas histórias de vida, marcada por contradições, raiva, juras de paixão eterna e ódio passageiro. Claire Denis sabe filmar e sabe como contar, fazendo uso da sua sensibilidade para ir de encontro às idiossincrasias dos retratados. Ainda assim, o filme talvez não agarre o espectador mais cético e racional que, se não conseguir calçar os sapatos das personagens, questionar-se-á acerca do interesse de olhar o melodrama existencial da vida de Sara.
Denis também não esquece problemas mais atuais do nosso tempo e aproveita as cenas de Sara na rádio onde trabalha para dar voz a temáticas como os conflitos no Líbano e a luta antirracista. Embora surja apenas como apontamento e não se perceba bem a pertinência da presença desses assuntos na narrativa, essas cenas acabam por criar camadas narrativas que ajudam ao envolvimento dramático em que se situam as personagens.
Vincent Lindon e Juliette Binoche são o centro e a força gravitacional do filme. A presença de ambos os atores é de onde o filme tira as suas maiores qualidades, nas cenas de maior paixão e violência. É mesmo essa paixão que tem algo de violento, no sentido de arrebatadora e tumultuosa, e que causa em Sara uma aflição tornada evidente na cena em que avista da varanda de sua casa o encontro entre Jean e François, com a camisola a tapar-lhe a cabeça, como se de uma virgem Maria se tratasse.
Babylon, do realizador de La La Land e Whiplash, abre com uma cena excêntrica na qual um elefante enorme defeca para o ecrã, parecendo estar a defecar no próprio espectador. Esta cena resume bem a essência do filme, que parece concentrar-se mais nos fluídos corporais, nos golden showers, nas quantidades extraordinárias de droga e no sexo explícito, do que em recriar a história do cinema. A cena seguinte, apesar de igualmente excêntrica, teria sido uma forma muito mais elegante de iniciar o filme: uma festa extravagante na casa de um dos magnatas do cinema mudo, onde as personagens principais parecem todas cruzar-se e a narrativa finalmente desencadear.
O filme conta a história da Hollywood louca e caótica dos anos 20, era do cinema mudo, e da transição para o cinema sonoro dos códigos e das regras morais. Este fascínio com Hollywood e com o som são temas frequentes na filmografia de Damien Chazelle, o jovem realizador americano que tem provado ser uma das grandes apostas do cinema contemporâneo. Aqui, Chazelle parece ter sonhado um pouco alto demais. Num filme que chega quase aos 190 minutos (e como este tempo passa lentamente aos olhos do espectador). Existem demasiadas cenas e preocupações que deveriam ter sido abdicadas na montagem, que acaba por parecer estranha e oscilar em termos de ritmo. O desejo de Chazelle de constantemente querer atingir a perfeição, desta vez, parece tê-lo traído.
No centro do filme estão as personagens de Diego Calva (Manny Torres), um mexicano que diz fazer tudo o que for preciso para estar em contacto com um set de filmagens e que poderá relembrar o produtor executivo Eddie Mannix; Margot Robbie (Nellie LaRoy), uma aspirante atriz com inspirações em Clara Bow; e Brad Pitt (Jack Conrad), um famoso ator do cinema mudo, que é inspirado numa das suas grandes estrelas: John Gilbert. Para além destes, mas com papéis ligeiramente mais secundários, temos Jovan Adepo (Sidney Palmer), um músico de jazz que faz sucesso na transição para o cinema sonoro, que poderá ser inspirado em Curtis Mosby; e Li Jun Li (Lady Fay Zhu), uma cantora/atriz falhada que ganha a vida a legendar filmes mudos, e que parece beber da história da primeira atriz chinesa a aparecer em Hollywood: Anna May Wong. O filme tem ainda espaço (ou força este espaço) para um quase fantasmagórico Tobey Maguire (James Mckay); um Spike Jonze no papel do realizador Otto Von Strauss, uma referência a Erich Von Stroheim; Jean Smart, como a crítica Elinor St.John; e ainda, uma das poucas personagens que não é ficcionalizada: Max Minghella como uma das figuras mais influentes do cinema, Irving Thalberg. O filme dispersa quando deambula pelas histórias de todos estes personagens que ocupam demasiado tempo do ecrã e que, ao mesmo tempo, não parecem ter tempo suficiente para uma construção sólida. É muito tempo com muito a acontecer e pouco tempo para explorar cada coisa, o que resulta num conjunto de muito boas cenas que acabam por não funcionar como um todo. Destaque para a cena da cobra, na qual Lady Fay Zhu mostra ser a heroína, e para a cena na qual Nellie LaRoy está, pela primeira vez, num set de filmagens com gravação de som: uma cena demorada, mas que parece levar o tempo que é preciso para espectador se sentir dentro dela, ou seja, por vezes o tempo do filme é exatamente o tempo certo, mas ainda assim algo parece não funcionar.
Apesar das suas grandes interpretações (Chazelle junta um elenco de luxo) e de estas cenas exímias que constituem o filme, este não funciona e não se torna numa grande obra prima, como seria de esperar do realizador norte-americano. Apesar destes problemas e de uma montagem pouco meticulosa, Chazelle não deixa de nos trazer uma a banda sonora, uma fotografia, cenários e figurinos que funcionam de forma bastante equilibrada neste seu Babylon, nem tudo é criticável.
O tema do Código de Produção do Cinema, conjunto de normas morais aplicadas aos filmes lançados nos Estados Unidos entre 1930 e 1968 pelos grandes estúdios cinematográficos, é um dos pontos fulcrais desta história que pretende trazer de volta a nostalgia sobre uma Hollywood da Golden Era. Aquelas festas excêntricas, os bacanais fabulosos, e o consumo excessivo de drogas já não cumpriam com as leis deste novo cinema: o cinema sonoro. Contudo, quase no final do filme percebemos a hipocrisia desta nova era, que era tão corrompida quanto a anterior, e que apenas sabia melhor encobrir-se. É uma era de aparências que substitui a era muda das extravagâncias.
Apesar de todas as críticas que tem sofrido, Babylon é bem-sucedido na forma como se apresenta enquanto carta de amor ao cinema, e o culminar desse amor está na cena final (que evoca filmes como Cinema Paradiso ou 2001: A Space Odissey): uma montagem de vários filmes da história do cinema que passa no ecrã diante de Manny Torres. Chazelle é um cinéfilo e isso é nítido nos seus filmes anteriores, mas ainda mais neste. A impressão é que Babylon nos faz sentir bem por termos comprado um bilhete e por estarmos sentados na sala de cinema, dado que consegue trazer de volta a nostalgia do cinema e prova que há filmes que devem ser vistos numa sala que faça jus à sua grandiosidade.
Depois do brilhante Shoplifters (2018), é difícil para Hirokazu Kore-eda superar-se ou trazer-nos algo que se assemelhe, em termos de excelência, ao vencedor da Palma de Ouro. Broker não é, nem tenta ser, melhor ou tão genial como Shoplifters, todavia não haveria razão para ter passado tão despercebido, já que encaixa que nem uma luva na aclamada filmografia do realizador japonês e continua a emocionar todos aqueles que o assistem. Na verdade, é nisto que Kore-eda se revela exímio: em exponenciar o lado empático do espectador através de uma bem trabalhada direção de atores que permite uma viagem ao interior de cada personagem individualmente.
O realizador deixa o Japão de lado neste filme para dar lugar ao fenómeno sul coreano das “baby boxes”, que consiste numa recente elevada criação de caixas em igrejas para que mães e pais solteiros ou em dificuldade possam deixar os seus recém-nascidos, numa forma quase de pedido de ajuda. Estes bebés não são dados para adoção, a finalidade é eventualmente os seus pais conseguirem, assim que organizarem as suas vidas, voltar. O filme abre dessa forma: vemos uma mãe a deixar o seu bebé numa dessas “caixas”. Na verdade, vemo-la a deixá-lo fora da caixa, atitude que nos parece um pouco imprudente e descuidada a princípio, mas que poderá ser desde logo um sinal de que algo nesta decisão não será definitivo. E o filme acaba por dar imensas voltas, talvez até voltas a mais. Uma das razões porque poderá ser alvo de críticas é por se perder às vezes a tentar ligar todas as mil e uma pontas da sua história, na vida real nem sempre existe esta excessiva ligação entre tudo.
Ainda assim, o elenco é de luxo, com o prestigiado ator do sucesso Parasite, Song Kang-ho, a assumir a liderança. A sua personagem é o dono de uma lavandaria e faz voluntariado na mesma igreja em que Moon So-Young (interpretada pela atriz Ji-eun Lee) deixa o seu bebé no início do filme. Juntamente com Dong-soo (Dong-won Gang), Sang-hyeon elabora um esquema de tráfico de crianças. Esporadicamente, os dois escolhem uma criança e levam-na para a lavandaria para depois a poderem vender no mercado de adoção. Dong-soo, também ele em criança abandonado pelos pais, encarrega-se de analisar a veracidade e honestidade dos pais com quem escolhem fazer negócio. A estes três atores principais, juntam-se Bae Doona e Lee Joo-young, duas detetives que querem apanhar estes dois traficantes em flagrante. Contudo, o negócio dos mesmos não enfrenta apenas esse entrave, mas muda quando So-Young volta para buscar o seu filho e acaba por se juntar a eles na jornada da procura de pais para o seu bebé. Numa carrinha, os quatro e, mais tarde, também Hae-jin, uma criança do orfanato de Dong-soo que apenas quer ser incluída uma família, embarcam nesta viagem, transformando este drama num road movie familiar, ao estilo de Little Miss Sunshine.
Na realidade, esta é outra das críticas feitas ao filme: a de tratar estes temas problemáticos com uma certa leveza e comicidade. Todavia, é interessante pensar que talvez Kore-eda esteja apenas a testar os limites do seu espectador e daquilo que este possa considerar certo ou errado. O mesmo método se aplica ao tema da família, que este tem vindo a desconstruir em todos os seus filmes. Será fácil para nós, após passarmos uma hora e meia a acompanhar estas personagens, empatizarmos com elas mesmo que estas tenham tomado as decisões mais erradas? E, afinal, o que podemos classificar como família? Apenas aqueles que nos são ligados através do sangue ou, ainda mais, aqueles que nos acompanham na jornada que é a vida? Torna-se difícil para o espectador distinguir o certo do errado, o bem do mal, e desconsiderar tudo aquilo que aprende sobre cada uma destas personagens ao longo do filme. Se alguns vêem este questionamento que o realizador levanta como crítica, tal também pode ser interpretado como um dos pontos mais fortes do filme: esta interação com o espectador que este questionamento acaba por permitir.
Kore-eda vai continuar a ser um dos melhores realizadores japoneses vivos, e vai continuar a contar-nos histórias de forma brilhante, quer a nível do argumento quer a nível da interpretação dos seus atores. A temática da família, que parece unir toda a sua obra, é arriscada pela forma como a apresenta. O seu cinema é um cinema daqueles que estão à margem, da sociedade, do certo e do errado e que parecem unir-se através do sofrimento e de mágoas passadas. O realizador leva ao extremo estas personagens, muitas vezes crianças, colocando-as em situações em não veem outra saída que não a errada. Os erros não impedem o espectador de se relacionar com elas, este que também é levado ao extremo, e é, até mesmo, o que lhes permite relacionarem-se com as outras personagens dentro do filme. Em suma, Broker é um filme, que mesmo não resultando na perfeição, é digno de ser visto no grande ecrã.
Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão, estreou a 8 de dezembro, em solo português. À boleia da tempestade, a realizadora portuense foi apresentar à sala esgotada do Cinema Ideal o filme que recebeu o prémio principal da secção Giornate degli Autori, paralela ao Festival de Veneza. “Hipnotizante” e “importante” foram as palavras que o júri, presidido por Céline Sciamma, convocaram para o descrever.
Do latim insula veio a italiana isola – lugar de exílio, ermo, cortiço… ou ilha. Ana e Luís são dois adolescentes que vivem num pedaço de terra cercado, por todos os lados, pelo Oceano Atlântico. As suas dinâmicas sociais e familiares são exploradas com vagar em São Miguel que se revela, em Lobo e Cão, uma ilha de tradições marcadas, de cultos inexoráveis e de um isolamento que faz questionar se o acto de querer será, também, pecado.
Lobo e Cão manifesta-se na desconstrução do binarismo e na (con)fusão de dicotomias num coming-of-age que, de facto, hipnotiza. Cláudia Varejão descreveu-o como um “filme-coral”, que nos parece acertado: na base do coral, Ana, a nossa personagem principal que carrega no seu âmago uma introspecção determinada que só a adolescência permite; nos “tentáculos”, cada um dos pedaços de vida que vamos, aos poucos, explorando.
Assim, chegam-nos em mosaicos a lassidão de ser-se filha do meio, entre dois irmãos rapazes, e a relação ora maternal, ora vulnerável – algo tão simples como pedir ajuda para se abrir um cadeado pode ser um statement de remissão. A amizade com Luís abre portas para conhecermos um mundo subterrâneo de afeto e camaradagem entre a comunidade queer que Lobo e Cão resgata do apagamento a que é fadada, mostrando que, mesmo nestas isolas, a existência de um lugar seguro é alcançável. A chegada de Cléo, amiga emigrada no Canadá, que traz nas mechas de cabelo rosa o vendaval de uma juventude despudorada, desperta em Ana um querer tão forte que a desprende do embaraço.
Cláudia Varejão cede, num argumento que é mais forte em motif que trama, uma história preciosa de afirmação juvenil – em Ana, a dualidade contraditória entre querer e fazer, que lhe é desmontada pelo padre hippie que lidera as comunhões (“querer é fazer acontecer”); em Luís, a libertação em poder ser quem é e vestir o que quiser junto dos amigos e da mãe, e, ao mesmo tempo, a repressão da tradição em que continua a participar, mesmo sem caber nos seus moldes. Num dos momentos de maior tensão, Luís encontra-se na caminhada tradicional dos Romeiros, de que faz parte com o seu pai, cuja cara soturna e marcada é sinónimo de um trabalho árduo e viril, antónimo da sua.
A cinematografia é exímia, os planos aproximadose enquadramentos invulgares contribuem para a sensação de claustrofobia que a ilha pode causar. O Oceano pontua a ação, sendo personagem presente em todos os momentos importantes – começa repressivo e acaba libertador; é ele que dá e ele que tira, é entreposto, ponto de crime e de fuga, manifestação omnisciente que observa. O trabalho de sonoplastia insigne também se destaca: reproduz o que escutamos no mergulho e emite, em vários pontos da trama, um pranto misterioso e medonho que só poderia vir do fundo do mar.
A técnica está lá também nas atuações dos não-atores que permeiam a película: há um minimalismo inerente nas atuações que se revelam autênticas. O trabalho da procura destes atores, que Varejão descreve como “extenuante”, certamente compensou, sobretudo com a escolha de Ana Cabral, cujo silêncio tímido conquista desde a primeira cena, segurando algumas das pontas que o ritmo vagaroso do filme acaba por deixar esvoaçar.
Este esvoaçar, no entanto, não é pejorativo. Lobo e Cão encontra a sua potência no não-dito: entre o selvagem e o domesticado, entre o feminino e masculino, entre a tradição e a modernidade… é no vazio entre cada um dos binómios que se encontra o espaço necessário para crescer e afirmar a identidade, para a experimentação. Se a adolescência é um limbo desajeitado onde o bem, o mal, o desejo e o indizível são peças do mosaico, é no “entre” que principiam todas as possibilidades.
Ao longo das nossas vidas, vestimos diferentes papéis sociais, criamos as nossas ficções e expressamo-nos com a liberdade e diversidade a que o nosso desejo nos impele. Cada um de nós, vive e sobrevive com os respectivos medos e vontades, muitas vezes limitadas pelos preconceitos instalados na conduta humana e nas relações com os outros. Todas estas questões são convocadas no mais recente filme de Cláudia Varejão.
Tudo começou em 2016, quando a realizadora foi convidada para uma residência artística nos Açores, mais propriamente na zona alta de Rabo de Peixe em São Miguel. A localidade açoriana, conhecida por ser uma das mais pobres da Europa, foi o lugar onde Varejão encontrou a imagem improvável que serviu de mote para o filme: ao descer à vila piscatória, enquanto observava os pescadores que ali trabalhavam, viu aproximar-se daqueles, um grupo de raparigas transsexuais. Virilidade e vulnerabilidade, o que entendemos por masculino e feminino, cruzavam-se perante o olhar da realizadora que viu nesse cenário o conflito a explorar no filme. Desse encontro com os jovens da ilha, nasceu o impulso para a realização de Lobo e Cão (2022), título que já aponta para essa dicotomia que o filme procura perceber e desconstruir.
Daqui se denota toda a carga social que o filme carrega e que também o ultrapassa. Deste projecto, nasceu uma associação de apoio aos jovens LGBT da ilha e às suas famílias. Com um conjunto de psicólogos foram desenvolvidos psicodramas que ajudaram estas pessoas a perceber melhor o lugar do outro e a pensar a multiplicidade de formas existentes em cada um, servindo também de base para a escrita do argumento. Após este trabalho, partindo das histórias pessoais daqueles jovens e ainda das próprias vivências e memórias da realizadora, esta começou a escrever a narrativa que nos havia de guiar por este período fugaz da vida destes jovens.
Ana e Luís, protagonistas deste filme, poderiam ser o lobo e o cão, numa troca e mistura de papéis sociais e normas para o que é entendido ser uma pessoa do sexo feminino e do sexo masculino. Ana talvez não seja cão, mas antes o lobo que procura ser selvagem e Luís talvez não seja o lobo que querem que ele seja, mas talvez o cão que precisa de afecto e do abraço materno. E talvez tudo se troque, tudo se confunda e nenhum deles seja lobo nem cão.
No meio do oceano atlântico, o mar surge como horizonte metafórico de fuga e liberdade. Ana é a filha do meio de três irmãos e lida com a opressão que sente aos seus desejos e à sua liberdade. Lida com os códigos que lhe são impostos, diz não saber o que significa pecar, nem o que é o bem e o mal. Luís expressa-se da forma que o faz sentir mais livre e lida com as consequências da moral conservadora da sua família e amigos.
O filme de Cláudia Varejão é claro naquilo que pretende mostrar. Dois jovens são obrigados a viver segundo os padrões normativos da sociedade, sentindo-se oprimidos num código moral com que não se identificam. Infelizes e não conseguindo viver a sua identidade em pleno, procuram vivê-la da forma possível e o filme, criando a distância que nos permite o pensamento sobre as particularidades de cada género, torna-se uma viagem que possibilita ao espectador acompanhar essas descobertas. Notamos na vivacidade das cores da fotografia do filme, o desejo inerente e contido que “não cabe na ilha”, mas que Luís e Ana transportam consigo.
Contudo, e apesar de algumas ideias visuais interessantes, sente-se falta de alguma subtileza e engenho para evitar que o filme se torne disperso na construção narrativa de algumas personagens (algo que se poderá dever a escolhas de montagem ou da própria rodagem), e que fizesse o filme transcender mais as suas temáticas. Ainda assim, Lobo e Cão é um retrato comovente e importante daquela comunidade e que nos põe a questionar as limitações que são impostas à nossa identidade.
O filme tem um peso social muito grande, pelas temáticas de que se aproxima e pelo trabalho feito junto da comunidade da ilha de São Miguel, em particular dos jovens queer/LGBT e das suas famílias. Como é que se articula essa vontade em ajudar aquelas pessoas com a criação de um objecto artístico como é um filme?
O filme parte de uma curiosidade. Neste caso de uma curiosidade observacional. Eu venho mais do documentário, trabalho com pessoas e aquele território interessou-me muito, porque é um território, diria, muito português. Portanto, com heranças judaico cristãs muito presentes no quotidiano e na sociedade, mas ao mesmo tempo um território onde o momento histórico e a vida contemporânea também está presente. As novas gerações trazem isso: uma liberdade de expressão, de expressão de género que aqui é muito importante. Esta questão: o que é o género? O feminino e o masculino e todos os outros géneros que cada vez nós nos permitimos mais a explorar, a validar, a integrar na sociedade… todos estes elementos estavam presentes na ilha, logo desde início.
Portanto interessou-me muito este território isolado no mar, que tinha todos estes elementos que todos conhecemos. Só que ali era possível circunscrever a um espaço geográfico e depois de eu ver aquela cena na doca piscatória dos pescadores a falarem com miúdas transsexuais e todo esse universo polarizado, levantou-me muita curiosidade. Eu acho que a curiosidade é o motor da criação, de querer conhecer, de querer saber mais, ir à procura de respostas, e quanto mais respostas temos mais perguntas temos, não tem fim… Eu não utilizaria a palavra “ajudar”, mas “participar” na construção de melhores vidas para a comunidade. A partir do momento em que eu queria trabalhar com eles, com pessoas de lá e não levar actores, percebi que não podia não me envolver na vida real destas pessoas e a vida destes jovens é ainda uma vida cheia de sofrimento, cheia de medo… Ser adolescente é isso, mas ser adolescente queer ainda mais. É redobrado o receio de ser diferente, o receio de não pertencer, de exclusão. Quando eu fui percebendo que isto era muito latente e que causava muito sofrimento na população, foi aí que me comecei a envolver num lado mais activista. Tentei ajudar a criar este primeiro centro de apoio a pessoas LGBT e às famílias, mas este lado de trabalhar socialmente com as pessoas não foi o ponto de partida. Foi uma necessidade que apareceu durante o processo e que eu integrei.
Agora sem dúvida que o cinema e a arte em geral têm uma participação activa na vida das pessoas. Claro que os filmes podem ajudar, desde logo a que as pessoas se sintam representadas, validadas, entendidas, e isso pode empoderar a vida das pessoas, pode dar chão, pode dar afecto. Isto acontece com um filme como pode acontecer com uma fotografia numa exposição, com a música que nós ouvimos e que tem uma letra que parece que foi feita para nós. Isso é o lado que não tem valor. A arte não tem valor nesse sentido. É um valor enorme, um valor humano, de vida, que transcende o valor financeiro, a urgência financeira, o financiamento para a cultura, enfim…
A arte pode ser vista como um espelho da realidade e parece-me que o cinema ajuda a criar a distância necessária para perceber coisas que nem sempre são fáceis de perceber para quem sempre viveu com certas narrativas instaladas. Acreditas que o cinema/os filmes/a arte têm essa capacidade de nos ajudar a ver melhor a realidade?
O cinema é um exercício fabuloso que nos permite uma certa distância, como ponto de partida. Nós estamos distantes do ecrã, distantes do filme e portanto vemos de fora. Mas depois há um espelhamento da vida e somos convocados para dentro. Estes dois movimentos opostos têm uma força enorme, uma força de reflexão, de pensamento e de sentir. Nós sentimos muito quando vemos, quando vemos em silêncio e quando vemos de fora. E depois há momentos de clarividência neste processo de observação. E isto é também aquilo que eu vivo quando estou a fazer, eu estou a olhar para algo, de alguma forma estou de fora, mas estou implicada nessa realidade. Tenho um olhar de relação com a realidade. Eu tenho esta experiência ao fazer que depois também acaba por se sentir nos filmes. Eu não imagino a vida sem estas ferramentas dos filmes, dos livros, da música, porque são momentos de encontro, quase como ir à igreja. São momentos de encontros espirituais, filosóficos, psicológicos em que nós nos permitimos sentir e estar em contacto com o nosso mundo interior, porque a vida é absurda. A vida é absurda. Nós estamos sempre em movimento e a cumprir papéis sociais e a cumprir tarefas, vidas académicas e vidas profissionais. E isto é para quê? Para sobreviver, para fazer parte. E a arte permite-nos reflectir um bocadinho neste absurdo da vida e o cinema, eu sou suspeita, diria que é a forma mais rica de criação, porque a vida é muito real dentro dos filmes. E isso é incrível, é uma ferramenta, é uma arma e uma arma política também, porque é uma arma de transformação. O nosso olhar enquanto vê um filme transforma-se, reencontra-se, conecta-se e depois trazemos isto tudo cá para fora, para a vida. Nós saímos tocados dos filmes, uns mais, outros menos. Mas mesmo aqueles nos quais nós não nos encontramos, validam aquilo que nós não queremos. Portanto é sempre um lugar de encontro e construção da nossa própria identidade.
Trabalhas junto da comunidade com não-actores ou actores não profissionais. Poderias ter feito este filme com actores profissionais? Até que ponto é realmente necessário essa proximidade das pessoas filmadas ao papel que representam?
Era possível, mas não era eu certamente. Tudo é possível no cinema, não existem impossíveis. Existem infinitas formas para o ofício, para se fazer…
Esta pergunta tem uma ramificação, que é perceber que cuidados é preciso ter para que o método não seja demasiado invasivo da intimidade destas pessoas? Pelo que contavas na sessão de ontem eles próprios já se confundiam com a personagem que interpretavam.
Acho que é preciso um cuidado extra, porque não existe a proteção nem o treino que os actores têm. Os actores têm treino para entrar numa personagem e saber sair dela. Isto é um trabalho impressionante. Um actor não profissional não tem estas defesas, por isso eu acho que redobra o cuidado não só do realizador, mas de toda a equipa, de proteção, de ajudar as pessoas a entrar e a sair, de ajudá-las a ir para casa depois. O que levas para casa é a experiência que tiveste, mas não levas a personagem. É preciso outra atenção e nesse sentido eu tive muita ajuda. Eu tive ajuda de psicólogos, ajuda de uma equipa que é muito experiente. Quase todas as pessoas que me estavam a acompanhar já tinham feito muitos filmes, portanto havia muita atenção a isso. Falamos todos sobre isso, de como era importante estar atento às pessoas e protege-las da dinâmica do cinema. Às vezes no plateau somos muito agressivos, brutos, temos uma série de coisas adquiridas que as pessoas não entendem. Tem que haver outra atenção e outro cuidado.
Apesar de tudo, o filme parece-me bastante positivo, luminoso, colorido…
Sim, porque isso estava lá na ilha. Estava nestas pessoas.
…mas gostava de falar de duas cenas em particular que me parecem ser as mais violentas do filme: a cena da romaria em que o pai ataca Luís e o insulta e a cena em que a gente da ilha parece tentar converter Luís através de todo aquele ritual divino.
Quão difícil é representar a homofobia e como é feito esse trabalho com não actores? E de que forma é que isso ajuda a exorcizar preconceitos?
É uma pergunta muito interessante, porque eu também tinha muito essa dúvida. Como é que eu vou fazer estas cenas sem ser a trabalhar com pessoas que são realmente homofóbicas? É o movimento oposto. É trabalhar com as pessoas que têm o olhar de integração da diversidade, mas com a consciência de que existe a agressão, que existe o fechamento, o conservadorismo, existe a violência. Foi a partir de um lugar bom, de pessoas boas para representar aquilo que nós não desejamos, mas que sabemos que existe e que já vimos ou sentimos. E estas pessoas, estes adultos trouxeram isso. Este pai do Luís tem isso. O pai do Luís é um homem bom.
…Acho que também se nota isso na sua interpretação. A dificuldade que ele tem a exercer aquela violência…
Sim, ele faz aquilo como as próprias pessoas fóbicas. Elas fazem por embrutecimento da vida e parece que vemos uma humanidade lá dentro. No gesto da violência – isto é um paradoxo – vemos uma inversão da humanidade. Portanto, ela está lá. Não dá para representar uma coisa sem representar o seu oposto. Este foi o processo de trabalhar com estas pessoas. Essa luz está sempre lá, mas as pessoas estão revoltadas pelo medo, pelo medo da não pertença.
Já tiveste reações mais negativas ao filme por parte de pessoas mais preconceituosas ou homofóbicas?
Não.Agora saímos desta sessão com escolas e, nas partes de mais intimidade entre as miúdas, sente-se o comentário, o riso nervoso, um silêncio envergonhado… Que não deixam de ser preconceitos, um lugar de pré-conceito da nossa educação, ainda de estranheza daquilo que sai da norma, deste lado mais hétero normativo da sociedade e sinto esse desconforto nos olhares, mas não de uma forma agressiva e espero não vivê-la.
Vês a própria ilha como algo simbólico da condição em que se encontram estes jovens? Essa vontade de sair da ilha e alcançar outra liberdade longe daquela bolha.
Claro. Acho que a ilha é uma metáfora para as ilhas em que todos vivemos, não só as pessoas queer. Nós todos nos sentimos em ilhas. Agora nesta sessão perguntou-se a certa altura “quem é que aqui se sente numa ilha?” e os braços levantados eram da maioria das pessoas na sala. Nós todos, de alguma forma, nos sentimos sós. Talvez seja esta a condição do ser humano. Nascemos e morremos sozinhos. E há um enorme sentido de solidão nesta ideia de ilha. Nós somos a ilha. E eu acho que o filme é muito aberto nesse sentido. Não é um filme queer. É muito mais sobre a condição humana de sermos todos tão diversos e termos tanto receio de não conseguir pertencer no dia-a-dia, à sociedade, a este teatro todo que é construído. Isto é um grande teatro. Os papéis sociais, as profissões, os papéis familiares… Isto é uma grande encenação e nós fomos educados logo de início.
Estamos sempre em ficção…
Estamos e já que é para estar em ficção, então que sejamos mais livres na ficção. Acho que é isso que o filme convoca. Já que é para ser um teatro a vida toda, então vamos experimentar vários papéis. E o ser humano permite-se pouco a experimentar diferentes máscaras e isso é que acho que provoca grande sofrimento na vida. Somos educados a ser uma coisa e a escolher ser uma coisa. E nós somos muitas coisas diferentes ao longo da vida. Estamos sempre a mudar, mas estamos sempre com medo de experimentar ser diferentes do que éramos ontem, como se isto fosse incoerente… e não é, porque nós somos uma multiplicidade de coisas. E por isso é que é muito interessante trabalhar com não-actores, porque as pessoas são muito mais autênticas. Como não têm este jogo profissional, descobrem dentro delas várias vozes e isto é um processo infinito de encontro com os mundos interiores.
Como é que vês a questão da identidade de cada um e a diversidade de que somos feitos? Porquê que achas que ainda existe a necessidade da dicotomia masculino/feminino?
Acho que é um perigo para a sociedade sairmos de um jogo que está tão profundamente instalado. Isto destrói todas as nossas convicções. Isto dá muito medo, sobretudo ao poder. Se de repente passamos todos a ser queer, ser gays, trans, diversos… isto questiona todo este sistema. O poder vem de cima, não vem de dentro. Isto é a grande luta social. Acho que é daí que vem o preconceito e acho que vem bastante da religião, porque é uma narrativa muito vincada: o homem, a mulher, a procriação. Isto questiona tudo, tudo aquilo que nos foi ensinado. Questiona esta ideia de família mais fechada, do pai, da mãe e dos filhos… questiona muita coisa, não só a própria identidade, como a própria ideia de desejo e orientação sexual. Levanta tantas perguntas, põe tanto em causa que é um perigo. É um perigo e depois permitimo-nos muito pouco. Acho que temos todos muito medo do que acontece se não correspondermos ao esperado. O que me vai acontecer? Será que vou ter lugar na sociedade? Será que vou ter trabalho? Será que vou saber quem sou? Vou-me perder? E depois como é que me volto a encontrar? Isto levanta muitos medos.
Como no texto da Clarice Lispector que leste…
“Se eu fosse eu?” Se a gente pensar seriamente sobre isto, percebe que nós não sabemos e que nunca nos permitimos. Ficamos assustados com o que temos andado a fazer, mas eu acho que é um bom exercício fazermos mais vezes esta pergunta: se eu fosse eu o que diria nesta situação? Se eu fosse realmente eu, o que eu sinto, o que respondia? A maior parte das vezes ficamos pelo pensamento, mas se experimentássemos ser, que rico que seria…
De um ponto de vista formal, tens vontade de manter este método de fazer cinema no futuro ou vais procurar experimentar novas formas de construir narrativas, novas formas de mostrar aquilo que pretendes? Tens vontade de continuar a trabalhar perto de comunidades/grupos de pessoas?
Eu acho que já estava a trabalhar bastante neste sentido de trabalhar a realidade, mas com ideias formais que construo com as pessoas. Sem dúvida, o meu grande prazer são as pessoas. Eu sinto-me uma amadora. O tempo passa e eu tenho cada vez menos certezas. Tenho muitas dúvidas e gosto muito de experimentar e sinto-me mais segura a experimentar com as pessoas do que com actores, porque estes trazem-me sempre tantas seguranças e convicções que eu fico assustada, sinto-me diminuída. Gosto muito da liberdade deste lugar de experimentação a partir do real.
Entrevista a Cláudia Varejão conduzida por Ricardo Fangueiro
Por altura da estreia de Alma Viva, o mais recente trabalho de Cristèle Alves Meira, tivemos a oportunidade de falar um pouco com a realizadora. Alma Viva é um regresso às origens da realizadora, filha de emigrantes portugueses em França, e mostra-nos, num registo assombroso e místico, a relação espiritual entre Salomé e a sua avó, no momento em que esta se aproxima da morte.
A herança mística que é transmitida de avó para neta é o motor da acção, aquilo que põe Salomé em movimento e que a faz entrar em conflito com o seu universo íntimo e familiar. Alma Viva toca no tema da emigração, dos rituais tradicionais, das tensões entre a população da aldeia, e faz-nos olhar para uma realidade ficcionada, para uma terra que nos parece próxima e familiar (o filme foi filmado numa aldeia em Trás-os-montes, terra da mãe da realizadora), mas que é fruto de sonhos, memórias e matéria do inconsciente.
No equilíbrio entre o realismo da mise-en-scène e o lado fantástico e ascético que envolve a história, reside parte do encanto deste filme que faz encarnar na pequena Salomé, não só a alma da avó, como uma energia sobrenatural que nos mostra o lado mais enigmático da paisagem transmontana.
Alma Viva é um olhar fresco sobre o interior do país, sobretudo, porque não tem ambições antropológicas e serve-se de um imaginário criado pela autora para atingir camadas mais profundas da realidade.
De onde surge o impulso para fazer este filme? Calculo que tenha um lado autobiográfico e que tenha origem num desejo de voltar a olhar para estas pessoas e estes lugares, para onde voltava todos os verões com a sua família.
É engraçado, porque muitas vezes dizem que é autobiográfico, mas o filme é uma ficção pura. Há um lado autobiográfico por conhecer aqueles décors, estar envolvida de forma mais íntima com as pessoas que aparecem na imagem e com as histórias que vou contar, mas o filme é uma ficção pura. É um filme de género quase fantástico, mas o que dá aquele ar autobiográfico é a minha opção de tornar as coisas muito realistas na forma de filmar, na forma de falar… e para mim é muito interessante, porque o público agarra no filme como se este fosse antropológico, mas na verdade essa aldeia não existe e essas pessoas não existem. Isso tudo é ficção do cinema e cada quadro, cada rosto foi exposto a uma sublimação de luz, de enquadramento e de pensamento de encenação. Aquela aldeia não existe, aqueles céus estrelados não existem, a câmara não consegue filmar aqueles céus estrelados, aqueles sons… Quando filmamos não havia nenhum insecto, não havia nenhum animal e tivemos que criar aquele ambiente sonoro, que tem que ver também com a minha vontade de criar um ambiente um pouco mágico, sobrenatural, com a presença de animais particulares que podem criar essa tensão dramática.
Quando falava em lado autobiográfico referia-me mais a essa vontade de replicar certas memórias, aspectos e vivências.
Sim, tem uma parte autobiográfica, mas é limitado pensar que é só isso, porque demorei muito tempo a encontrar a história. Sabia que queria contar a história de uma avó e de uma neta, mas a neta durante muito tempo era uma adolescente. Salomé, a protagonista, voltou a ser criança no final da escrita do argumento e depois também demorei bastante tempo a perceber qual era o equilíbrio entre as crises familiares. Queria contar as crises dessa família, a forma como vivem o luto, o momento das partilhas e essas famílias divididas entre aqueles que partiram e regressam com um poder económico muito grande e aqueles que ficaram e que sentem um complexo de inferioridade. Queria contar a família, mas não sabia no argumento o que era mais importante. Quando soube que o mais importante era a relação entre uma avó e uma neta e uma transmissão mística de um saber esotérico, aí é que comecei mesmo a tocar no assunto do filme. Mas não foi fácil, porque estava confrontada com dois tabus, o da morte e o da bruxaria, e no início ficava a tremer perante a palavra “bruxa”. Será que podia falar sobre isso? Pesquisei muito, de forma quase antropológica. Fui ler livros sobre bruxaria em Portugal e também fui ler coisas em França, porque há uma parte em França onde há muita bruxaria. Houve um rapaz muito importante que se chama Jorge Dias, um jovem imigrante, estudante de mestrado na universidade em Lyon que fez a tese sobre a avó dele que é bruxa. Esse foi um encontro muito importante para mim, porque ele inscreveu na tese a relação que ele tinha com a avó quando regressava no verão e a via ter capacidades de médium. Foi quando li a tese dele que pensei que também poderia assumir esse tipo de temática. Havia uma vontade de falar da relação dos vivos com os mortos e da transmissão entre uma avó e uma neta. Mas, depois, para chegar lá foi um processo bastante grande de escrita da narrativa.
Esse lado espiritual descobriste com o filme? Ou já tinhas essas memórias associadas àquele local?
Já nasci numa família onde o oculto estava presente… era normal curar-se com plantas… e desde criança sempre ouvi os adultos falar sobre histórias muito estranhas de bruxas, maldades, mau olhado … e isso lembro-me que me fascinava e ao mesmo tempo aterrorizava-me. E acho que o filme está a tentar transmitir essa contradição que esse tipo de história pode criar em nós. Fascínio e terror. O que acho bastante singular é que o demónio nessa história é uma pessoa que amamos. Porque muitas vezes nos filmes de terror há muitas histórias de pessoas que são possuídas pelo demónio, que são temáticas clássicas do género fantástico, mas aqui a particularidade é que se trata da avó amada, a querida avó. Isso é que cria ali uma confusão entre amor e sofrimento, luz e obscuridade, e também a forma realista de tratar do assunto, porque, muitas vezes, nos filmes americanos ou nos teenage movies são temáticas que vemos sempre. Só que neste filme estamos num lado muito realista e muito envolvido numa comunidade. Se analisarmos bem, os rituais no filme foram completamente inventados, porque reparei também nas minhas pesquisas que cada praticante ou bruxo/a, ou curador, médium, (eles têm vários nomes), cada um tem a sua própria prática e vão buscar símbolos a várias culturas. Não há nenhum livro que diga que a magia vai ser assim e vai ser assim que vamos proceder, cada um vai ali fazer a sua receita e eu pensei a mesma coisa. Qual seria a receita do nosso filme? Então fui buscar São Jorge, fui buscar os cigarros, que é uma prática mais do xamanismo. Em Portugal nunca vi bruxos nenhuns usar cigarros, mas é uma mistura de rituais para criar uma realidade que é uma realidade de ficção para esse filme.
Acaba por ser um universo construído a partir das tuas vivências e referências. Contudo, de que forma é que a realidade que encontraste invadiu a narrativa inicial?
O que mais transforma a escrita é a encarnação dos actores. Quando comecei mesmo a escolher os actores, a personagem transforma-se num corpo, numa voz, numa pessoa concreta que vai entrar naquele papel. Isso transforma a escrita e cada vez que acontece vou também buscar muito da realidade do actor que escolhi, para pôr nas cenas e na personagem. Por exemplo, a personagem da avó era, no argumento, uma avó muito mais austera, menos excêntrica e colorida, e a Ester Catalão foi um encontro incrível, porque ela tem essa liberdade, sensualidade, essa luz que transformou o papel da avó. E isso aconteceu com várias personagens, como com a protagonista, a Lua Michel. Quando escrevi, a personagem tinha onze anos e quando filmei ela só tinha oito. Então isso transformou a personagem. Por exemplo, o facto de conhecer o Duarte Pina de O Invisível Herói (2019), a outra curta que fiz com ele, e de saber que ele tinha capacidades de cantar, pensei: “vou pôr um grupo de músicos no meu argumento”. Então, foi o facto de conhecer esse actor e as suas capacidades instrumentais que fez nascer esse lado na personagem.
A única coisa que tento é guardar uma espontaneidade, por isso não ensaio muito com os actores, e os actores não profissionais não vão ler o texto, ter o argumento na mão, para não estarem ali a fingir. Passo muito tempo a falar com eles a explicar qual vai ser a história, a situação, mais ou menos o que eles têm de dizer… e depois eles dizem com as palavras deles, mas quase sempre é parecido com o que eu escrevi, porque escrevi a pensar neles. A metodologia é observar e conhecer muito bem as pessoas com quem vou trabalhar. Por exemplo a Marta Quina, a personagem da Gracinda, eu já sabia como ela falava, porque já a conheço. Dizia-lhe: “Oh marta, a marta vai subir as escadas, mas está muito zangada, porque os cães estiveram a dar cabo dos tomates” e já sabia que ela tinha aquela capacidade, porque na vida real ela tem essa energia. Era só dizer acção. E é bastante realista, porque sei que ela é assim. Depois com a Ester Catalão já era outra metodologia. Trabalhamos com um auricular porque muitas vezes ela esquecia-se de coisas… na verdade cada pessoa tem uma metodologia diferente.
Ao ver a Lua Michel no filme, parece ter sido um casting certeiro. No entanto, ela sempre esteve ali ao teu lado. Foi uma escolha óbvia?
Cometi o erro de a ter filmado noutros filmes, mas cortei-a sempre na montagem. Ela entrou no Sol Branco (2015) como um bebé, depois entrou no Campo de Víboras (2016) tinha três anos e no Invisível Herói tinha 5 ou 6. E a cada vez foi cortada na montagem. Quando chegou aos seis anos ela disse: “Mamã, estás sempre a cortar-me” (risos). Foi outra amiga minha que a revelou num filme, porque ela estava à procura de uma criança para o filme dela e disse-lhe: “Se calhar vou-te mandar a Lua em casting, porque sempre a cortei na montagem e desta vez é um papel principal, por isso se gostares dela, já vai ter um papel onde não está cortada”. Depois desse filme, ela foi muito felicitada em festivais, ganhou prémios com essa curta e aí apercebi-me que tinha uma actriz ao meu lado e pensei porque não seria ela. Decidi então que o papel ficasse mais jovem, mas ela tem uma maturidade que nem percebemos bem a idade dela.
O filme conta com poucos actores profissionais e foca-se mais no trabalho feito com a população da aldeia. Como é que foi feita essa articulação no trabalho das personagens?
Os actores profissionais são muito importantes, mesmo que minoritários. Temos a Ana Padrão, a Jacqueline Corado, Catherine Salée, Valdemar Santos, Pedro Lacerda e o Nuno Gil. A Ana Padrão é originária de uma aldeia ali perto e aceitou rememorar e lidar de novo com as suas origens. Isso foi muito importante, porque ela foi buscar lembranças das tias, da avó e ajudou-me a enriquecer os diálogos com palavras mesmo locais. Durante os ensaios, dias antes, ela ficou a dormir na casa da avó, porque é numa aldeia perto e perguntava: “Como é que dirias aquela palavra? Quando chove, como é que dirias?”. Fez esse trabalho para voltar a essa forma de falar e todo um trabalho do corpo, da fisicalidade, porque o seu papel é mesmo de uma pessoa de aldeia, que trabalha a terra e encarna uma masculinidade que foi buscar e que não tem nada que ver com os papéis que a Ana faz normalmente. Fico muito emocionada com a generosidade com que ela se envolveu neste projecto. É uma enorme actriz. Já tínhamos tido uma experiência juntas, fizemos o Campo de Víboras juntas, que já era um papel similar nas mesmas aldeias e isso ajudou a desenvolver a confiança. Mas nesse filme ela trabalhava uma parte mais feminina, enquanto neste ressalta um lado mais masculino.
Apesar de assombroso e fantasmagórico, o filme conserva um lado cómico. Era importante para ti realçar esse aspecto?
Sim, muito importante. A comédia, o lado mais cómico, quase burlesco, estava presente desde as primeiras linhas, porque é a forma que tenho de mostrar o carinho que tenho por estas situações extremas do ser humano, crises, guerras entre vizinhos… aquilo é tão excessivo que dá para rir e o cinema permite essa mise-en-scène, esse tom mais cómico. E não foi fácil no momento do financiamento do filme, porque apontavam esse aspecto aparentemente incoerente de, numa mesma cena, tão dramática, chegar aquele momento em que se torna tragicomédia. O desafio era enorme. Diziam que não era possível criar lágrimas e ao mesmo tempo mostrar aquela situação quase absurda. Mas sabia que na vida isso acontece. E a comédia permite uma certa crítica simpática sobre o lado materialista da emigração. Então aproveitei essa tonalidade mais cómica para dizer: “Bom, não acham que às vezes é um bocado absurdo quererem exibir as vossas riquezas?” (risos), como nas cenas em que trazem prendas, porque é um sinal de sucesso da vida lá fora. É uma forma de os infantilizar e apontar coisas mais subtis da realidade da vida dos emigrantes.
A tua formação foi toda feita em França?
Nunca vivi em Portugal. A minha formação foi para actriz. Antes de fazer cinema fiz teatro durante dez anos e depois tirei o mestrado em teatro. Nunca fiz escola de cinema, mas para escrever o Alma Viva tive um ano na escola La Fémis, para escrever o argumento. Sozinha teria sido impossível. Agora também escrevo para outras pessoas…
Pergunto isto, porque reparei no ritmo particular do filme. Estava à espera de mais densidade e mistério em algumas cenas. Como o filme tem um lado fantasmagórico, estava à espera de sentir outra densidade no tempo, na atmosfera, no som das cenas… Qual é a tua relação com o cinema português?
Na verdade, para este filme não tenho referências portuguesas. Claro que vejo cinema português, mas não foi a ele que fui buscar as referências para fazer o Alma Viva. Tem mais que ver com o cinema italiano, neo-realismo, Ettore Scola, cinema espanhol, Carlos Saura… o Cria Cuervos (1976) foi o filme que mais me acompanhou. E nos filmes mais contemporâneos foi a Alice Rohrwacher ou o La Cienaga (2001) da Lucrecia Martel, muito pela forma de filmar um grupo, uma família num lugar fechado e a Lucrecia é uma rainha, um génio da encenação. Na duração dos planos, sinto, fazendo aqui uma confissão, que às vezes cortei um pouco cedo. Às vezes são 3 ou 4 segundos que acho que devia ter a mais… mas é assim, estou a aprender. Ao mesmo tempo, aquela brutalidade com cortes mais abruptos tem que ver também com a energia das personagens. Eu gosto de mudar de ritmo. Enquanto espectadora, também sinto que, em alguns planos que se demoram mais, muitas vezes são os realizadores a olharem para si próprios.
Depois de sucessos como Force Majeure e de vencer a sua primeira Palma de Ouro com The Square, Ruben Östlund arrecada novamente o grande prémio do festival de Cannes com o recente Triangle of Sadness, filme em exibição nas salas de cinema portuguesas. O realizador sueco, que era já conhecido por fazer filmes com um marcado cunho político e social (é brilhante a forma como os seus filmes conseguem deixar o espectador desconfortável e a questionar os seus valores morais) embarca numa vertente mais cómica da crítica, num filme de chorar a rir do princípio ao fim. Triangle of Sadness apresenta-se, assim, como uma sátira ao capitalismo e aos jogos de poder.
Composto por três atos, o filme divide-se entre a vida de um casal de modelos influencers, um cruzeiro e uma ilha aparentemente deserta. Estes dois últimos décors são escolhidos a dedo e têm também grande significado na narrativa. O cruzeiro, local de grande luxo e ostentação, é símbolo do capitalismo e da clara hierarquia de poderes. A divisão upstairs/downstairs é muito clara quando vemos os passageiros ricos a apanhar banhos de sol no andar de cima, os empregados brancos entusiasmados com a ideia de belas gorjetas, e os empregados não brancos no último andar a quem ninguém parece ver ou prestar contas. Esta marcada hierarquia relembra a distribuição de andares na casa de Parasite, de Bong Joon-ho.
A ilha deserta, por outro lado, cenário comum de reality shows e de filmes como The Lord Of The Flies, deixa-se encaixar neste tipo de papel, estimulando a luta pela sobrevivência e pelo poder das personagens que se conseguiram manter vivas depois do naufrágio. O instinto de sobrevivência rapidamente se revela num desejo e uma busca pelo poder, e aqueles que antes se encontravam no fim da hierarquia são aqueles que agora dominam. O estatuto, na ilha, não advém da riqueza mas da capacidade de sobrevivência, e uma das empregadas não brancas do cruzeiro mostra ter aptidões que os outros não apresentam, invertendo-se, assim, os papéis. Contudo, quando uma hipótese de salvamento parece estar em vista, esta sede de poder parece corromper os valores morais até daqueles que viveram uma vida de pobreza e humildade. O instinto humano é querer mais e mais, mostra-nos o realizador. Östlund faz-nos assim questionar os nossos próprios valores e códigos morais mostrando-nos como as diferentes pessoas acabam por agir todas da mesma forma quando colocadas naquela situação, a ambição sobrepõe-se ao carácter. O seu cinema não é um cinema de fé, pelo contrário, é um cinema de completa descrença na humanidade, um cinema de escrutínio moral da condição humana. Naquele lugar, seríamos também nós corrompidos pela ambição? É a questão que está implícita quando abandonamos a sala de cinema.
A verdade é que o cinema europeu tem vindo a focar-se, cada vez mais, nesta questão da corrupção dos valores morais e da hipocrisia da sociedade. No entanto, Östlund não critica só os ricos e poderosos, e isso é talvez o mais interessante de ver nos seus filmes. Ele critica também os mais pobres e aqueles que impulsionam os ideais de esquerda e depois não parecem fazer nada para os levar efetivamente avante (como a personagem do comandante interpretada por Woody Harrelson). Trata-se de uma esquerda que prega mas nada faz. O cinema de Östlund é amargo, desconfortável, ainda que dê ao espectador uma enorme vontade de rir, o facto é que é impossível deixá-lo indiferente. Todavia, Triangle of Sadness dividiu a crítica. A quantidade de cenas visualmente exageradas (envolvendo fluidos corporais) fez com que alguns críticos achassem que o realizador se estaria só a desviar do seu objetivo primordial para impressionar o espectador. Há, sem dúvida, um foco maior nos temas que nas personagens, mas isso talvez seja um trunfo e não um defeito. Estas personagens estão lá para nos obrigar a entender os temas e não para criarmos empatia e conhecermos as suas histórias, uma vez que o objetivo é não perdermos o foco nos temas que são trazidos à discussão.
Triangle of Sadness é consistente na dura crítica que faz, mas talvez falhe quando tenta atingir demasiados alvos ao mesmo tempo: há demasiados focos e demasiadas pessoas a serem julgadas. Desde o oligarca russo, representado pelo brilhante Zlatko Burić, à empregada filipina Abigail (Dolly de Leon), que conduz muito bem a segunda metade do filme; desde o casal de modelos em constante conflito ao casal apaixonado que vê na produção de armamento um hino ao seu amor. A superficialidade destas pessoas descreve-se muito bem com uma das falas mais repetidas do filme: “In Den Wolken”, que quer dizer “nas nuvens”, onde todas elas parecem estar alheias à realidade. O “jantar do comandante” é o culminar do nonsense, deixando o espectador fisicamente enjoado com toda a sua agressividade visual.
Todo este corrupio de críticas e inside jokes pode ser avassalador para um filme só, ainda assim as duas horas e meia parecem passar a correr. E Triangles of Sadness revela-se uma sólida chamada de atenção ao capitalismo crescente e à sociedade do consumo. Navegando pelos temas dos estereótipos de género, principalmente no seu primeiro ato, Östlund faz um estudo de como até nas relações o dominante é esta ideia de poder, a ideia de uma troca de favores (relações que poderíamos descrever como transacionais), mostrando-nos que estas pessoas não são mais pessoas mas, sim, produtos quase robóticos deste consumismo brutal e de uma grande hipocrisia.