Produzida sob o mote “No Happy Ever After”, a 6ª edição do BEAST IFF – festival dedicado ao cinema da Europa do Leste – é criadora de um diálogo entre o cinema e a situação política destes países. “Não há finais felizes?” é a pergunta que paira nas ruas do Porto durante os dias do festival. Há uma ideia romântica da dor como criadora de uma imensa potência artística que, até certa medida, o BEAST parece confirmar. Isto porque a programação dedicada à emergente cultura progressiva e às inúmeras narrativas de resistência deixa pouco espaço para contos de fadas e utopias. Os finais não são necessariamente felizes e não precisam de o ser. Afinal, há ainda um longo caminho a percorrer e é relevante explorar fórmulas alternativas aos finais felizes.
Num festival onde a maior parte dos filmes exibidos são bastante recentes, The Murder of Mr. Devil (1970) rompe com este padrão, transportando-nos para os anos de ouro da produção cinematográfica checoslovaca. Este é o único filme dirigido individualmente por Ester Krumbachová, grande responsável pela estética da nova onda de cinema checo. Inserido neste movimento de vanguarda, o filme opera um jogo entre o real e o surreal; uma desconstrução sarcástica do comportamento masculino e dos cânones da comédia romântica.
Imprevisível e erótico, The Murder of Mr. Devil desenvolve-se exclusivamente no interior do apartamento de uma mulher solitária que convida o Diabo (Bohouš Čert) para sua casa. À semelhança de Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman, também este filme nos convida para a esfera privada da mulher. Aqui, atividades ordinárias recebem uma relevância que é inusitada no cinema. Entre móveis e talheres antigos, plantas tropicais, tons alaranjados e acinzentados, assistimos a requintados banquetes e às inúteis tentativas desta mulher conquistar um homem guloso e indelicado.
No BEAST, este filme surge integrado num programa chamado “The Raisin Prophecy”, constituído por The Murder of Mr. Devil e In Search of Ester, um documentário de Věra Chytilová que procura compreender quem foi Ester Krumbachová. Este programa é uma tentativa de recuperação de uma personalidade outrora esquecida. Ester Krumbachová (1923-1996), um nome central da vida artística em Praga, nos anos 60, foi colocada numa lista negra com a alteração do clima político da Checoslováquia na década de 1970. Os seus filmes foram banidos e só nos anos 90 se iniciou uma redescoberta do seu trabalho. Torna-se pertinente incluí-la na programação do festival quando a entendemos como uma encarnação desta tensão política. Ainda assim, a sua relevância vai além deste vínculo biográfico. Vejamos o título do programa:
“The Raisin Phophecy”, passível de ser traduzido para ‘A Profecia da Passa’, remete para a predição de um futuro de inspiração divina. Numa primeira análise, a profecia corresponde à própria narrativa do filme. Há uma cartomante que prevê um misterioso saco de passas nas suas cartas. No final do filme, como uma profecia que se cumpre, o Diabo, homem glutão, é capturado num saco e ironicamente transformado em passas. A par disto, parece haver também uma associação à mulher. Como uma predestinação incontornável, esta sente-se atraída pelo Diabo, o fruto proibido. The Murder of Mr. Devil é, neste sentido, uma profecia herética; uma evocação alegórica e crítica do pecado bíblico original.
Mas será a narrativa o único aspeto a considerar quando referimos ‘profecia’? Certamente que não. Reconhecido como o primeiro filme feminista checo, The Murder of Mr. Devil prende em si uma fascinante atualidade. Profundamente político, audaz e experimental, este filme descreve a vontade de romper com as diretrizes do realismo socialista. É o cinema da expressão individual e da emancipação daqueles que desejavam reconhecer-se nos ecrãs. E, por isso, refletir sobre este conceito implica pensá-lo enquanto precursor de uma cultura progressiva na Europa do Leste. Ester Krumbachová veio semear raízes daquilo que décadas mais tarde voltaria a ganhar um novo impulso. Retomar este filme, na 6ª edição do BEAST IFF, é encontrar-lhe um final diferente: não necessariamente feliz, mas certamente um pouco mais livre.
Lituânia soviética, década de 1970. Laimis Janutėnas, pescador agora reformado, gravou durante esses anos as suas viagens intercontinentais a bordo do barco de pesca industrial onde trabalhava. Aos 80 anos, dizia que as imagens em 8mm só tinham sido vistas pela sua companheira Marytė Janutėnienė. Foi então que Laimis chegou ao contacto com o realizador Rimantas Oičenka, pedindo a este que fizesse algo com as suas imagens e que as partilhasse com o mundo.
O resultado é este Reisas (The Trip), uma viagem no navio pesqueiro e uma viagem nas memórias de uma história de amor. Sem sentimentalismos desproporcionados e acertando na dose de nostalgia, a curta parte desse arquivo para nos dar um olhar sobre a Lituânia daquela época, reflectindo sobre a tensão existente com os ideais soviéticos instalados no país.
Delicado na execução, pertence àquele género de documentários empenhado em contar ao detalhe, de forma precisa e eficaz, a história daqueles que retrata. Os primeiros planos mostram-nos esse encontro com Laimis e Marytė nos dias de hoje, na sua sala de estar, onde vão remexendo em correspondências e fotografias que trocavam na altura em que Laimis embarcava durante largos meses. Rimantas apropria-se das imagens de Laimis para as remontar numa lógica narrativa que pretende encenar os momentos vividos pelo casal. As imagens filmadas por si são relativamente poucas e servem para enquadrar e contextualizar aquilo que, no presente, significam as imagens de arquivo. Por exemplo, o plano que abre o filme é uma escultura de um elefante que, percebemos mais à frente, foi algo que Laimis adquiriu numa expedição por África.
De um ponto de vista de ecologia das imagens, o que Rimantas faz é perceber o potencial cinematográfico daquelas filmagens amadoras, reorganizando-as, para formar este “voltar ao passado”, sensação essa que é reforçada pela decisão de sonorizar, através da técnica de foley, as imagens mudas. A decisão de colocar esses sons, é onde reside a força e o interesse particular deste Reisas. Essa escolha está profundamente ligada a uma tentativa de recuperação da memória, representando uma viagem no tempo, em que a nostalgia é substituída por um uso pragmático do arquivo. Assim, o que vemos já não são imagens fetichizadas do passado, tornando-se, pelo contrário, um meio de transporte para o presente que há nelas. Esse é o grande feito de Oičenka. A viagem do título é a viagem no mar, na sua história, mas sobretudo a viagem no tempo.
Um dos últimos planos do filme é uma longa contemplação do rosto de Marytė, onde se podem ler as marcas desse tempo, mas também onde se reconhece a felicidade apaziguadora que as memórias da sua história de amor lhe trazem. Laimis aproxima-se e serve-lhe mais chá. Ela olha-o de relance. E a viagem de ambos continua.
The Trip foi o filme escolhido pelo júri do Beast International Film Festival para o prémio East Doc, que distingue o melhor documentário em competição no festival.
Ricardo Fangueiro
Entrevista com Rimantas Oičenka, conduzida por Maria Mendes
*For english version, see below.
Antes de mais, parabéns pelo prémio de melhor documentário no BEAST IFF. Sei que “The Trip” é a tua primeira curta-metragem, feita de imagens de arquivo produzidas em 1975. Portanto, a minha primeira questão seria: Como te cruzaste com essas imagens?
Eu recolhi este arquivo de um homem que, de alguma forma, me encontrou e me contactou há uns 6 anos. Temos alguns amigos em comum. Então, ele era um pescador que costumava fazer algumas gravações, com a sua câmara de 8mm, enquanto pescava. Ele guardou todo esse arquivo na sua casa e quando me encontrou, disse-me: “Eu filmei muito, mas nunca ninguém viu este material, à excepção da minha mulher. Tenho 80 anos, por isso assumo que vou morrer em breve e quero que as pessoas vejam o que eu filmei”. Ele só me perguntou “consegues fazer alguma coisa com isto?” E tudo começou aí.
Depois, eu vi todo esse material, e foi muito interessante para mim. O problema é que quase tudo era sobre a indústria da pesca e a pesca não me interessa. Na verdade, eu sou contra a indústria da pesca, por isso tive que encontrar algo pessoal nesse material. Não soube imediatamente o que fazer, mas eu sabia que queria fazer.
Ainda que a pesca não seja algo que te interesse, “The Trip” é um documentário sobre a indústria da pesca na Lituânia soviética. Eu quero saber como é que tu achas que isto é importante e como o filme representa a Lituânia de um ponto de vista mais histórico ou político.
Em 1975, a Lituânia fazia ainda parte da União Soviética. Nós éramos ocupados pelos soviéticos, e eu acho que isso foi uma das razões pelas quais eu decidi fazer este filme. Agora que vivemos num país independente outra vez, eu queria falar de como era a situação política e de que como as pessoas costumavam viver durante esses tempos. Isto é muito importante para mim.
Então, “The Trip” foi um esforço de aproximação a algo relacionado com o passado do teu país. Este filme está relacionado contigo de outra maneira?
Na verdade, sim. Quando eu comecei a falar cada vez mais com o homem que filmou isto, eu também conheci a sua mulher. Primeiro, ela não queria contactar comigo. Pensava que eu só estava curioso sobre as viagens pesqueiras do seu marido. Mas eventualmente, eu também estabeleci uma conexão com ela, e fiquei muito impressionado com a relação deles enquanto casal. Eles estavam casados há mais de 50 anos.
Eu casei-me na mesma altura em que eu recebi este arquivo e descobri uma série de relações entre a minha vida e a vida deles em 1975. Estávamos a viver coisas parecidas. Eu e a minha mulher tínhamos casado recentemente, estávamos à procura de um novo apartamento, e a minha filha tinha acabado de nascer na altura. Descobri que, através da história deles, eu podia falar sobre aspectos pessoais da minha vida.
Para além disso, outra parte importante deste filme são as cartas. Eu perguntei, ao Laimis e à sua mulher, se eu podia ver as cartas que eles escreveram um ao outro quando o Laimis ia nas suas viagens pesqueiras. Eles guardaram todas as cartas e, eventualmente, deram-mas. Foi aí que eu encontrei todos os detalhes sobre eles: como se conheceram, a sua relação… E é engraçado, porque na altura eu estava a viajar pela Lituânia a organizar sessões de cinema ao ar livre e a minha mulher estava sozinha em casa com a nossa filha. Foi outra semelhança que encontrei entre nós e este velho casal.
Penso que a forma como sonorizas as imagens de arquivo é muito curiosa, porque nos transporta para aquele tempo. Como é que foi a construção da voz-off que narra o filme?
As cartas foram lidas por mim e pela minha mulher. Foi durante o tempo do Covid, quando não podíamos encontrar-nos com mais ninguém. A minha ideia original era encontrar alguns actores e actrizes para lerem essas cartas. Mas primeiro, queria ter alguns rascunhos, algo para começar a trabalhar. Para isto, gravei com o meu telemóvel e pedi à minha mulher para fazer o mesmo. Mais tarde, quando eu estava a tentar encontrar actores eu percebi que tinha ficado muito ligado à gravação provisória e decidi mantê-la dessa forma.
E como foi o processo de montagem e seleção das imagens para o filme?
Não havia muito material. Eram cerca de 5 horas de filmagens. Quase tudo era muito bom, então foi difícil escolher. Ao mesmo tempo, eu já sabia o que queria e escolhi as imagens que representavam melhor os sentimentos que eu queria enfatizar.
Isto é bastante claro na cena da partida, quando os pescadores dizem adeus, mas também na cena final, onde eles estão a voltar após cinco meses naquela viagem.
Por falar em viagem, acho que esta é a minha última questão: De onde vem o título deste filme? É porque descreve uma viagem – através da memória, a vida de um pescador, mas também o passado da Lituânia? O que pensas disto?
Primeiro, eu decidi que o título inglês seria “The Trip”, mas eu acho que foi um erro. Devia tê-lo chamado “A Trip”. Talvez tenha acontecido por causa do meu inglês pobre, mas eu acho que há uma grande diferença entre “the” e “a trip”. Além disso, a minha ideia principal para este título era que ele tivesse diferentes significados. A viagem podia ser esta viagem pesqueira em particular, mas também o casamento e conexão entre duas pessoas. Para mim, 50 anos juntos e continuarem bons amigos, é uma bela viagem.
Entrevista conduzida por Maria Mendes
Interview with Rimantas Oičenka, conducted by Maria Mendes
First of all, congratulations on winning the best documentary in BEAST IFF. I know that “The Trip” is your very first professional short movie and that it is made out of archive footage from 1975. So, my first question would be: How did you come across this footage?
First of all, I got this archival footage from one man who somehow found me and called me like 6 years ago. I have a few common friends with him. So, he used to be a fisherman and used to record some videos with his 8mm camera while he was fishing. He kept all of this footage at his house and when he found me said: “I was filming a lot but no one has seen this material except my wife. I am 80 years old, so I assume I’m probably going to die soon and I want people to see what I recorded.” He just asked me “Can you do something with this?”. This was the beginning.
Then, I watched all that material, and it was really interesting for me. The problem was that almost everything was about fishing and fishing is absolutely not my thing. I’m actually against the fishing industry and so, I had to find something personal in this material. I didn’t know immediately what to do with this but I knew I wanted to.
Even though fishing is not your thing, “The Trip” is still a documentary on the fishing industry in Soviet Lithuania. I want to know how you think this is important and how this film represents Lithuania more historically or politically.
Back in 1975, Lithuania was still part of the Soviet Union. We were occupied by the Soviets, and I think this was one of the reasons why I decided to do this film. Now that we live in an independent country again, I wanted to talk about how the political situation was, and how ordinary people used to live during those times. This is very important to me.
So, “The trip” was an effort to get closer to something related to the past of your country. Is this film related to you in any other way?
Actually, yes. When I started to talk more and more with the man who filmed this, I also met his wife. At first, she didn’t want to get in contact with me. She thought that I was only curious about her husband’s fishing trips. But eventually, I also established a connection with her, and I was very impressed by their relationship as a couple. They were married for more than 50 years.
I got married at the same time I received this archive and I found a lot of relation between my life and their life back in 1975. We were living very similar lives. Me and my wife were recently married, looking for a new apartment, and my daughter was a newborn at the time. I found that through their story I could speak about personal aspects of my life.
Also, an important part of my film is the letters. I asked them, Laimis and his wife, if I could see the letters they were writing each other when Laimis went on the fishing trips. They kept all of the letters and eventually gave them to me. That’s where I found all the details about them, how they met, their relationship… And it is funny that at the time I was traveling around Lithuania organizing open-air cinema screenings and my wife was also at home alone with my daughter. This was just another similarity that I found between us and this old couple.
I think that the way you chose to sound the archive images is very curious because it takes us back to their time. How did this idea come about and why is it important for the film?
The letters were read by me and my wife. It was Covid times when we couldn´t meet with any other people. My original idea was to find some actors and actresses to read those letters. But first, I wanted to have some drafts, something to start working with. For this, I just recorded it with my phone and asked my wife to do the same. Later, while I was still trying to find some actors I understood that I had become very close to the draft and I simply decided to keep it this way.
And how was the process of montage and selection of the images for the film?
There wasn’t a lot of material. It was about five hours of footage. Almost everything was really good so it was kind of difficult to choose. At the same time, I already knew what I wanted so I chose the images that represented better the feelings I wanted to emphasize. This is very clear in the departure scene, where the fishermen are saying goodbye but also in the final scene, where they are coming back after five months of that trip.
Speaking of trip, I think that my last question is: Where does the title of this film come from? Is it because it describes a trip – through memorý, the life of a fisherman but also the past of Lithuania? What do you think about this?
First of all, I decided that the English title would be “The Trip” but I think it was kind of a mistake. I should call it “A Trip”. Maybe it happened because of my poor English but there is quite a big difference between ‘the’ and ‘a’ trip. Besides this, my main idea for this title was that it could have different meanings. The trip could be this particular fishing trip but also the marriage and connection between two people. For me, 50 years together and still really good friends is a wonderful trip.
1+1. Dois corpos. Movem-se ininterruptamente e não parece haver forma de os parar. Em Play/Repeat, curta-metragem de Carlos E. Lesmes, somos cúmplices da intimidade de um casal. Numa atmosfera de profunda vulnerabilidade, assistimos à materialização da sua relação através da sua expressão corporal. As palavras dão lugar ao movimento e ao gesto e a distância entre os corpos adquire uma dimensão corpórea. Ora se quebra uma ligação, ora se fundem num só que é dois. 1+1=1.
Exibida na competição oficial EXPERIMENTALEAST do BEAST International Film Festival 2023, Play/Repeat é um exercício experimental, uma revelação do cinema enquanto registo dos corpos que se relacionam no espaço. Nada menos. Nada mais. Temos uma câmara enquanto mecanismo de fixação do toque e da emotividade. Dois corpos confinados às várias divisões de um apartamento. E uma repetição contínua do seu movimento que parece ter como palavras de ordem PLAY e REPEAT.
Enquanto evocação da musicalidade que lhe dá origem. Acompanhada por “Untitled (Play it On Repeat)”, esta curta-metragem resulta da diluição das fronteiras entre disciplinas artísticas. É uma obra híbrida; uma fusão do cinema com o teatro, as artes visuais, a música e a dança. Os corpos que vemos na tela não são atores e meros executores daquilo que foi outrora coreografado. São bailarinos, mas também intérpretes-criadores; participantes no processo de construção cénica. Bebem da arte de produzir significado através da sua catarse corporal. Trazem consigo as suas próprias releituras, num duplo e mútuo estado de afetação que concretiza este filme como uma perpétua viagem de experimentação.
REPEAT:
Como se aquilo que vemos na tela não fosse senão o mundano, a observação e constatação daquilo que é inevitável. O quê? A aproximação e o afastamento dos corpos. A natureza paradoxal e a complexidade intrínseca das relações humanas marcadas pelo companheirismo e, simultaneamente, pela solidão. Esta curta-metragem é uma repetição das nossas vidas – da própria humanidade, talvez. É, acima de tudo, uma repetição e uma reinterpretação da vida do realizador. Nasce da sua necessidade de expressar e de sentir corporalmente uma relação passada. Play/Repeat é uma continuidade carnal de si mesmo. Um filme que parte do seu corpo, formando um só que jamais deixará de ser dois: Carlos E Lesmes + Rea Lest.
O QueerLisboa é para muitos uma oportunidade de sentir o encontro pulsante da diferença. Não só um ponto de chegada, como acima de tudo um ponto de partida, este festival de cinema, verdadeiramente inclusivo, volta a Lisboa para a sua 27ª edição. Um evento que, através da exibição de obras cinematográficas inseridas na esfera LGBTQI+, da promoção de atividades paralelas, como discussões abertas e exposições, tem conseguido celebrar a diversidade, contribuindo desta maneira para a consciencialização em assuntos não tão convencionais geralmente marginalizados noutros contextos.
No sentido de provocar uma reação impactante relativamente à contradição da norma, I Can See the Sun but I Can’t Feel It Yet (2023), realizado por Joseph Wilson e escrito por Evan Francis Jones, esteve presente na competição de curtas-metragens, na edição do Queer de 2023. Indo de encontro ao tema do festival, este filme contém em si bem presente a realidade imanente da imiscuição em ambientes que submetem pessoas a terapias de conversão.
O estilo simulado e experimental desta produção, bem como o dramatismo sonoro associado ao trabalho de som de Rick Smith, conseguem tratar as terapias de conversão como uma realidade distópica, algo da ordem do surreal, muito distante de todos nós. A verdade é que estas práticas altamente problemáticas ainda têm presença no mundo atual. Produções como esta pretendem elucidar especialmente a gravidade da sujeição de pessoas queer a processos de mutilação emocional, tendo como pretexto a patologização das diferentes orientações sexuais e identidades de género. Num mundo altamente avançado como o que vivemos, parece insensato e completamente descabida a existência destas práticas, sendo que a sua desacreditação é extremamente preponderante nos dias de hoje – e o modo como são retratadas nesta curta, é talvez, o único aceitável, no sentido de trabalhar para a exclusão permanente destes processos de desumanização.
O rigor formal dos planos, apesar da experimentalidade em que estão embebidos, quer seja pela desvitalização viva que dá aos cenários, quer seja pelo contraste de cores nos décors, levanta de modo perspicaz as preocupações necessárias associadas a este problema e que, inegavelmente, precisam de ser alvo de debate. Direitos humanos como a liberdade de autodeterminação e a orientação sexual e identidade de género são violados nestes procedimentos, sendo que o filme, pelo clima de suspense que cria – pela expectativa e espera, pela caracterização das personagens e pelo dinamismo dos movimentos da câmara, com planos estáticos ou com zoom in/zoom out – tem a perfeita capacidade de fazer transparecer a amargura aflitiva sentida aquando da imiscuição neste género de ambientes marcadamente penosos, que submetem sujeitos a processos de brainwashing por meio de métodos pseudocientíficos ou religiosos – oferecendo-lhes um lugar de fala.
Não obstante, o filme não quer apenas ser um retrato desta atmosfera pesada de mutilação emocional. Pelo contrário, deve ser visto como um apelo a que se procurem formas de performatividade de género não baseadas em [qualquer forma de] violência. É sabível que os media são elementos fundamentais da repetição dos atos estilizados, existindo uma complicitude por parte do sistema social na produção e reprodução de género. Mesmo assim, para haver uma proliferação de gestos subversivos é necessário operar por dentro da própria matriz de modo a atualizá-la. E é através de filmes que mostrem o sentir-se parte da periferia que se pode almejar em direção à aceitação da autoexpressão livre das orientações sexuais e identidades de género, promovendo a recetividade, a complacência e tolerância para com os indivíduos queer – que, ao longo das suas vidas, atravessam períodos conturbados de autodescoberta e autoaceitação. Podemos ver o sol, mas não senti-lo. Por isso, se em detrimento da mutilação e violência emocionais for promovido um apoio exterior por parte dos pares, será sempre facilitado o processo de estar em paz consigo mesmo e com a sua identidade – e aí conseguiríamos, por fim, sentir o calor reconfortante do sol sobre o qual apenas tínhamos lançado o olhar. Tratar a periferia com a convencionalidade que se trata a norma é dar um passo no sentido de atingir a sensibilização para a luta pela aceitação e igualdade. E o Queer, com a criação de uma plataforma de inclusão, fá-lo de maneira extraordinária, configurando-se como um evento cultural seminal em Lisboa.
A 17ª edição do MOTELX, Festival Internacional de Cinema de Terror, animou Lisboa na passada semana, com inúmeras sessões de cinema, masterclasses e convidados. Brandon Cronenberg, filho do cineasta canadiano David Cronenberg, foi um desses convidados, ele que é uma das mais recentes promessas de cinema de género: um cinema que combina o horror psicológico e o sci-fi. Cronenberg esteve no Cinema São Jorge para acompanhar a estreia portuguesa do seu novo filme: Infinity Pool. Todavia, este ano, o festival decidiu fazer uma retrospetiva de toda a sua obra, passando ainda em sala as suas duas longas-metragens anteriores – Possessor (2020) e Antiviral (2012) – e ainda uma das suas curtas-metragens – Please Speak Continuously and Describe Your Experiences as They Come To You (2019).
Neste texto, o foco será a análise das suas duas longas mais recentes: a estreante Infinity Pool e Possessor. Em Infinity Pool, um casal, James (Alexander Skarsgård) e Em (Cleopatra Coleman), passam umas férias numa espécie de resort excêntrico num país ficcional chamado La Tolqa (que se assemelha ao cenário de White Lotus ou de Triangle of Sadness) na esperança de James ganhar inspiração para um novo livro, após o seu primeiro não muito bem sucedido romance. O casal conhece um outro casal, Gabi (Mia Goth) e Alban (Jalil Lespert), que os leva num passeio fora do resort que acaba com o atropelamento de um local. James, culpado do crime, é julgado e percebe que, segundo regras do país, no caso de morte, é o filho mais velho da vítima que deve vingar esta. Contudo, nesta realidade distorcida, há uma saída para os mais privilegiados: a criação de um doppelgänger que assumirá as culpas e morrerá no lugar do culpado. O único senão é este ter de assistir à sua própria execução.
Três anos antes, em Possessor, Brandon Cronenberg explora uma premissa um pouco mais simples, mas apoiada num mesmo sistema corrupto que valoriza aqueles com mais poder. Voss, interpretada de forma brilhante por Andrea Riseborough, é uma assassina contratada que consegue “possuir” o corpo de uma pessoa próxima da sua vítima, facilitando assim o crime. Quando ao entrar na mente de Colin (Christopher Abbott), o seu novo bode expiatório, algo não corre tão bem e a própria vítima começa a ter controlo sobre a mente da sua parasita (Voss). A partir deste momento, o filme começa a caminhar para uma esquizofrenia mental, muito bem retratada visualmente por Cronenberg, que só pára na destruição e caos total.
Ambos os filmes fazem o espectador questionar-se sobre a decência humana e sobre o quão longe alguém iria sabendo que não haveria consequências para as suas ações. É quase como se estivéssemos perante uma régua moral e essa régua parece estar partida, e talvez seja essa a mensagem que o realizador canadiano nos quer passar: a de uma sociedade estilhaçada e que não parece conseguir encontrar o caminho para o bem, associando o mal a algo prazeroso e afrodisíaco. A violência nos dois filmes é praticada da forma mais violenta possível, aproveito a redundância. No caso de Voss (em Possessor), esta evita o uso da pistola substituindo-a por uma arma mais sangrenta, e no caso de Infinity Pool, a violência é quase sempre associada a sexo (vemos quase tantas cenas sangrentas como orgias) e a festa, num tom quase medieval. A crítica social é forte. Nos dois filmes, mas ainda mais evidente em Infinity Pool, o realizador parece mesmo sugerir que é apenas o medo das consequências que impede as pessoas de praticarem o mal, e que se numa sociedade paralela, estas consequências fossem extintas por via, por exemplo, da tecnologia (notemos ainda a crítica ao aumento do uso desta, que nos remete inúmeras vezes para a série televisiva Black Mirror e para, no caso de Possessor, o episódio específico Crocodile, com Andrea Riseborough também como protagonista), o caos estaria instalado e a sobrevivência seria apenas um jogo de poder.
Apesar da crítica ser algo muito evidente, e de o body horror e as cenas sangrentas estarem lá, Brandon Cronenberg explora um lado muito mais identitário e psicológico nos seus filmes: o das repercussões psicológicas que os crimes praticados têm nos seus autores. Se, no caso do seu pai, o foco era o terror físico, no caso de Brandon o foco vira-se para a mente, a alma, e as suas assombrações e demónios. Em ambos os filmes, há uma espécie de duplicação identitária. Em Possessor, por uma via quase de parasita (de habitar o corpo do outro), e em Infinity Pool, através mesmo de uma duplicação, duplicando-se neste caso o corpo. Estas transposições ou duplicações de identidade parecem causar uma certa fragmentação na identidade original, que no caso de Voss, parece estar cada vez mais longe, e no caso de James, que acaba por se confundir com a identidade copiada (a dada altura, alguém lhe pergunta “mas não tens receio que tenham matado o James original?). As sequências experimentais do filme nas quais conseguimos acompanhar aquilo que está a acontecer na mente das personagens principais acabam por superar, ao nível do terror, do medo e da ansiedade, as cenas de violência gratuita e sangue. É muito interessante a forma como o realizador nos consegue conectar com o pânico sentido na mente destas personagens.
A retrospetiva a Brandon Cronenberg foi um dos momentos altos de um festival que segue mais um ano sem desiludir o seu espectador. E Brandon Cronenberg assume-se como uma estrela em ascensão do cinema de terror que, apesar da pesada herança do seu pai, se tem conseguido destacar com um cinema muito próprio e cada vez mais intrigante.
Subsiste a tendência para, sem tardar, procurar legitimar os objectos artísticos com que nos defrontamos. Legitimação política, social, ética, moral, etc. É – não só, mas também -, a uma tal urgência de integração (e regulamentação) da arte, que a obra de Deborah Stratman diz respeito, criticando-a, justamente, pela resistência que apresenta a uma categorização linear. Deborah Stratman, artista destacada na 31ª edição do Curtas Vila do Conde – International Film Festival, com a projecção de curtas-metragens de sua autoria, a atribuição de uma carte blanche, e a exposição Unexpected Guests, patente na galeria Solar: presença motivadora de um ensaio reflexivo acerca de uma obra inscrita num tempo histórico particularmente ruidoso, cuja impermeabilidade (a uma voz singular, a uma crítica justa, a uma dissensão por mais ponderada), como aparência, como imagem, corpo a modelar, a penetrar, a adulterar, mas igualmente a escutar, a recolher silenciosamente na sua novidade mais ou menos monstruosa, mais ou menos maravilhosa; impermeabilidade, dizíamos, que constitui a matéria-prima do mais refinado posicionamento crítico. Neste sentido, poder-se-á falar de uma poética, ou até, de uma linguagem, da incomunicabilidade. Uma linguagem que trabalha com a imagem que se recusa, que é escuridão, silêncio, sem, todavia, obrigar senão ao mais rico encontro, nesse plano em que imaginação antecipatória e construção se tocam, entre mutismo e diálogo.
Stratman trabalha o problema da legitimação artística, muito embora não na medida em que procura alinhar com um qualquer alfabeto vigente e de alta eficiência mediática, isto é, não ambicionando para si essa legitimidade – a oscilação do espaço de exposição dos seus trabalhos é, de resto, sintomática de uma presença marginal e, daí, potencialmente panorâmica e crítica. À artista norte-americana parece afigurar-se-lhe de maior interesse o exercício de explorar os efeitos que a sua obra visual – cinematográfica e/ou plástica – comporta e pode comportar no espectador, independentemente da sua proveniência social, política ou cultural. Fazer a tábua rasa como o projecto imenso e fresco (Maria Filomena Molder adverte, em Palavras Aladas (2022), para o gesto da tábua rasa como próprio da juventude) do acto (desde logo, político) de olhar um mundo (o nosso), cujo crescimento e expansão correspondem igualmente a um imenso trabalho de destruição e declínio. O que vem complexificar a relação umbilical e perfeitamente mútua entre crescer e destruir, entre prometer e findar, é o gesto concomitante, a que corresponde esse jogo duplo, da assinatura do homem nesse mesmo mundo, e que vem inscrever o poder como o âmbito tão rizomático quanto dissimulado (e, com efeito, dramático) em que o homem se move e por que se constitui. Chegamos a um impasse, tanto de ordem epocal quanto de natureza filosófica; indecidibilidade que se forma precisamente no território flutuante que os seus limites (e, sobretudo, uma certa ideia de limite) encerram por sobre um tempo indeterminado, potencialmente excedente do período histórico em que se anunciam e de que se valorizam simbolicamente. Recuperemos algumas palavras de Bernard Stiegler em States of Shock, a propósito do pensamento invariável e repetidamente (em loop, como Hacked Circuit, exposto na Solar) esgotado e, dessa feita, inconcluso, acerca da economia sistémica pensada por Stratman: “In particular, one cannot fail to notice here that what is said about the system seems to leave no room for the question of the limits of the system, for the fact that any dynamic system has limits, and that a time will inevitably come when these limits are reached, philosophy consisting perhaps always and firstly in thinking such passages to the limit.” (Stiegler, 2015: 93). O plano em que os limites se jogam, antecipando a sua própria refutação, isto é, consistindo no fantasma da sua forma póstuma, é o plano da técnica, à qual Stratman, pela realização de filmes-observatório, cede pela articulação com um lirismo especulativo, gerado no olhar compassivo (assim o imaginamos) do espectador. Assim, o que de puro pode existir é essa articulação técnica, prestes a perder para outra proposta mais refinada numa história técnica universal, lançada, e igualada, no mesmo terreno virtual que a designada história natural: “the pursuit of the evolution of the living by other means than life – which is what the history of technics consists in (…)” (Stiegler, 1998: 135).
Pensemos num filme como Second Sighted (2014), cujo título sugere imediatamente o gesto de voltar a olhar, rever, testemunhar, ou melhor, testemunhar uma testemunha (que se julga, presentemente) passada, sabendo de antemão que um tal exercício comporta o lance no território falsário da ficção – joguete que a artista ajuda a desconstruir, servindo-se, como pedra-de-toque, do registo documental como presença desestabilizadora da fronteira entre fantasia e real, sob mediação do papel do arquivo (como espécie de excedente, destinação entrópica, da História). As primeiras imagens do filme situam-no num registo cindido entre a imagem surreal(ista) – é difícil resistir a sobrepor à imagem inicial, dos olhos incendiados, essa outra de Un Chien Andalou (1929), também a abrir o filme, da sutura do olho – e a mera captação técnica de imagens de uma cidade, no caso, de uma senhora idosa no cais de uma estação de comboios. Partículas brancas em gradativa concentração (lembrando-nos dessa afirmação de Carl Sagan, de que o homem é nada mais que poeira de estrelas), um par de olhos em chamas, prédios incendiados, na iminência do desabamento, tratam-se dos planos iniciais do filme, seguidos de um zoom na figura da tal transeunte, sequência que aponta para a hipótese da identificação de uma agência, pela ligação causal entre o fogo e o rosto humano. Há, todavia, uma força que persiste e que inibe a um encadeamento narrativo que dessa figura humana constituísse o agente de um crime (por fogo posto, nomeadamente), pela atribuição de uma autoria (a culpa seria uma consequência possível, de todo o modo incerta). E, de facto, dessa primeira hiper-sugestão por via de uma vigilância que também nos cabe a nós, espectadores, não há seguimento nem evolução narrativa alguma. A deriva persiste, como essa força enigmática que tudo traga, tudo aparentemente igualando, manifestando-se não só paralelamente ao desenho de directrizes traçadas por cima de imagens de paisagens variadas, como por esses mesmos desenhos instigada.
Parece haver tão-só circuitos a repetir e matéria a captar, infinitamente. E essa repetição, e a eventualidade da captura e do registo sensíveis, dão-se através de uma data de recursos técnicos. Lembre-se Vever, filme composto de imagens de uma viagem que Barbara Hammer faz à Guatemala em 1975, com textos – a servir de marcação temporal – de Maya Deren, sobre o trabalho artístico, o nascimento da arte, o fracasso, a composição criativa. Estruturalmente o filme é também uma second sight, e é-o nos termos em que repete um determinado circuito, reciclando material imagético e literário, não obstante revitalizado numa montagem singular, pelas mãos de Stratman. A repetição do fracasso, um modo aperfeiçoado de errar, valendo sobretudo a formação de uma imagem inconsciente do corpo, da matéria, memória sensível independente do esquema corporal que a cada um cabe transportar, e que nos une numa língua universal, instigante, muito embora jamais passível de ser articulada. É sob o signo da incomunicação, da opacidade, do que resiste a ser significado sob a suposição de que assim se encontra desconstruído, caso encerrado, que os filmes de Stratman se realizam.
Há um retrato que fica sempre por acabar: no caso de Vever (2019), o do modo de viver das comunidades na Guatemala, bem como da intenção (termo assaz referido durante o filme, seja em palavra escrita e inscrita na película, seja pela voz off) que verdadeiramente motivou aquela viagem e, posteriormente, aquele filme, que é, não nos esqueçamos, a marca do abandono de um outro filme (de Hammer). É precisamente com essa impossibilidade de acabar – que o termo (empiricamente necessário) de um objecto fílmico exerce – que o dispositivo técnico dialoga, no sentido de tornar mutáveis as posições de criador e criação, ao ponto de se tornar indistinguível quem filmou e quem foi filmado ou, seguindo as palavras do filme, de quem, de que parte e qual a intenção subjacente: do real prévio à filmagem, do real que a película revelou, do real resultante da montagem de Stratman? O sem termos do acto de olhar, e dos estímulos a que a realidade nos expõe, inviabiliza a definição clara de fronteiras, e apresenta como o porto mais seguro a asserção da ambiguidade: “It was only after I had conceded my defeat as an artist, My inability to master the material in the image of my own intention, That I became aware of the ambiguous consequences of that failure”. Tudo o mais serão traços na areia, deslizamentos de terra, um barco à deriva no mar, vogando sobre as ondas, rimando, de resto, com a imagem particularmente impressionante, imóvel, de um navio num mar congelado, em Optimism (2018), filme que toma, como problema central, o território de Dawson City, no extremo norte do Canada: território gelado, inóspito, no qual toda a forma de vida surge como uma incontornável manifestação, conquanto sóbria, do desejo. Também aí parece operar-se a tentativa de fazer uma razia de sentido, em grande parte sugerida pelo título que denota, quase comicamente, a disponibilidade – e a inteligência – para a confiança, a boa-fé, ainda que acabe por destacar a desolação das primeiras imagens do filme. A paisagem de neve é imensa, qualquer corpo que a atravesse é um pormenor de cuja passagem não se acreditam vestígios. Neste sentido, o ecrã dá-nos os traços de um desenho breve, à partida extinto, de que nada restará senão a sua passagem. Funde-se ouro, bailarinas dançam num bar, que assombrosamente se assemelha a um estaleiro, a um local onde se pára, estando em viagem, mas onde não se fica, onde nada nos diz que fiquemos. Os locais que habitamos são aqueles que nos despertam o desejo de neles reconhecer um motivo para permanecer, tratando-se primeiramente de um desejo de leitura: o lugar diz-me, pede, que o leia e que nele encontre um motivo desejável. Apesar desses elementos de vida breve – um homem a trabalhar o ouro, mulheres a dançar num palco – tudo nos reafirma a estranheza de estar ali. Um recorte circular de espelho surge, ofuscante, no meio da paisagem. Espelho que não deixa ver nada. Imagem abstracta que interliga metonicamente sol e ouro, configurando o primeiro como a matéria fabricada pelos residentes-resistentes da montanha, e o segundo como matéria-prima, o corpo trabalhado e o rosto identitário de quem ali viva, visto por aqueles que se limitam a chegar (para partir): nós próprios, espectadores. Mas, sublinhe-se, em Dawson City os espelhos não compreendem reflexos e/ou estes não devolvem nada.
A estranheza que impera das mais diversas formas é explorada, sendo antes de mais contacto com o real, sob recurso a aparelhos técnicos cuja presença não é nunca obliterada – a câmara está sempre presente -, e pela sucessão de imagens que correspondem muito significativamente à inscrição de desenhos no espaço: no espaço da película fílmica e do mundo, ambas constituindo fundos de estranhamento, plataformas de re-significação. Diz Jean Luc-Nancy, em O Prazer no Desenho, a propósito do desenho como traço e projecto, como forma fechada e plano ao aberto: “O desenho é então a Ideia: ele é a forma verdadeira da coisa. Ou, mais exactamente, ele é o gesto que provém do desejo de mostrar esta forma e de a traçar de modo a mostrá-la. Não se trata, contudo, de traçar para mostrar como uma forma já recebida: traçar é aqui encontrar, e para encontrar há que procurar – ou deixar que ela se procure e se encontre – uma forma por vir, que deve ou que pode vir no desenho.” (Nancy, 2022: 17). O desenho, que em Musical Insects (2013) tem um papel estrutural – filme composto a partir de um livro de ilustrações com a exposição paródica de diversas espécies de gafanhoto -, representa um mecanismo de realização cinética e a proposta de um plano de investigação em curso. E aqui desenho é todo e qualquer movimento de intercepção com o meio: seja um amontoado de terra a ser revolvido por uma escavadora, um barco cortando as águas do mar, a sobreposição de setas e sublinhados por cima do plano de uma paisagem, a impressão da ausência de corpos na relva, em The Magician’s House (2007). Neste filme, fotografias, retratos desvanecidos, o posto de correio com a inscrição “ithaca jounal”, as vozes imperceptíveis de duas crianças, uma casa vazia, em que os sinais de vida compreendem uma função mitológica ampliável (lembrada a Odisseia pela referência a Ítaca, um retrato que não parece do tempo da casa, encerrando um arcaismo, temporalidade ilocalizável, conquanto potencialmente redentora).
O mito, na sua dimensão universal, também ela plástica, dispõe tanto a memória como território a desbravar, jamais absolutamente conhecido, como enquanto desolação e abandono de uma forma que, antes de se prestar a constituir o signo identitário de um alguém, é por excelência marca de presenças passadas, irrecuperáveis, tão-só imagináveis. Mas a imaginação é aqui, neste tempo que nos cabe e que parece ter chegado já tarde, matéria para as máquinas talharem. Saberemos, ou não, um dia, com que mãos, e com que guindaste, urdimos o nosso próprio retrato no mundo. E que máquinas habitaram os pontos cegos que nos formam e nos motivam a continuar e aos quis, por facilidade, nos habituámos a designar: universo infinito.
Bibliografia:
Nancy, Jean-Luc (2022). O Prazer do Desenho. Lisboa: Documenta.
Stiegler, Bernard (1998). Technics and Time 1. Stanford: Stanford University Press.
Stiegler, Bernard (2015). States of Shock, Stupidity and Knowledge in the 21th Century. Malden: Polity Press.
É no cruzamento de matérias primas, de suportes analógicos e digitais e na dilatação dos seus limites que se descobre o trabalho de Pedro Maia, realizador português a residir em Berlim há vários anos. O confronto dos materiais, a desfiguração, destruição ou diluição do figurativo e da própria materialidade das imagens, com vista à reificação da abstração, remete para uma ideia de pintura em movimento trabalhada sobretudo em película de 16mm e 8mm. Desde as primeiras experiências em Super 8, passando por um filme criado a partir de “restos” de planos do filme A Zona (2008), de Sandro Aguilar (onde trabalhou como segundo assistente de realização), até à multidisciplinariedade que cruza live cinema, música, livros e instalações, chegamos ao ponto em que já não há (ou nunca houve) imagem real. É o caso de March of Time, que estreou na competição experimental do Curtas Vila do Conde 2023.
O realizador afirma que o filme nasceu do “interesse de explorar a inteligência artificial (AI), porque o que tenho visto é muito mau e muito piroso. Então foi pensar em utilizar isso para voltar atrás. Pegar nesta ideia de regressão da tecnologia, do futuro a olhar para o passado e a recriá-lo. Lembrei-me de pôr a AI a criar imagens destruídas de 16mm. Produzi um algoritmo que concebia uma espécie de terceiro analógico. Portanto, é a inteligência artificial a tentar criar imagens que ela entende serem imagens de 16mm destruídas.”
Partindo de uma reflexão sobre o tempo e a sua influência nos suportes fílmicos, a ideia passou por usar mecanismos de machine learning (um processo tecnológico que permite aos computadores adquirir e desenvolver conhecimento sobre determinado assunto automaticamente) de forma a criar imagens degradadas de 16mm.
Se o conceito nos deixa curiosos, o resultado não é menos interessante. O que vemos é uma sugestão estética daquilo que seria película destruída/desfigurada do ponto de vista da máquina. Nunca saberemos que imagens reais aquela desfiguração esconde, levando a nossa mente a viajar por este filme-fantasma, pleno de cores, formas e texturas, divididas em “capítulos”, de onde a narrativa não está completamente ausente. Há vontade de criar uma estrutura, um desenvolvimento, um ténue fio condutor que, por muito minimal que seja, nos guie pela aventura imagética. Sem deslumbres, – porque há sempre o contacto com a pobreza inerente àquilo que a inteligência artificial é capaz de produzir – o realizador utiliza aquilo que é mais uma ferramenta ao seu serviço, não esquecendo as suas limitações. Neste caso, o trabalho é também a procura das imagens certas. É preciso treinar o computador, domesticá-lo, conduzi-lo através de um caminho atestado de informações e fazê-lo “pensar”, “ensinar-se”.
À semelhança de alguns projectos como How to Become Nothing (2017) ou Janela do Inferno (2022), onde tem sido feita a articulação entre objectos fílmicos mais tradicionais de montagem fixa e formatos ao vivo, com March of Time acontecerá o mesmo: “Agora estou em conversas com alguns sítios para passar isto para 16mm e mostrar como instalação. Com o Pedro Vian, que fez a banda sonora, estamos a desenvolver um concerto com base nisto. O filme foi comissariado pelo 25AV que financiava uma peça audiovisual a um duo que concorresse. Agora, quatro desses projectos vão ser selecionados para a vertente ao vivo. Nós ainda não sabemos se vamos ser selecionados, mas já estamos a avançar com o projecto.”
Esse desejo por cruzar diferentes disciplinas artísticas é expresso pelo realizador, que dá o exemplo de vários dos seus outros trabalhos: “Cada vez mais tenho essa necessidade de que o projecto não seja só uma coisa. Especialmente por causa dessa necessidade de deixar um ou vários registos. Por exemplo, a partir do How to Become Nothing fizemos o Fade Into Nothing, porqueo Indielisboa estava interessado em mostrar isto em competição. Agora, quando olho para o filme, fico arrependido, porque é muito menos radical. Fizemos uma versão mais contida, menos confusa, onde a montagem é muito mais simples. Ao vivo há muitas coisas que acontecem. Agora arrependo-me de não ter transposto essa radicalidade do live cinema, que para mim foi a melhor forma de mostrar o projecto”.
Também Janela do Inferno, filme comissariado para um concerto do festival Walk&Talk nos Açores, transformou-se numa curta-metragem: “Convidaram-me para fazer o concerto de abertura do festival e decidi convidar a Lucy Railton, que faz música electrónica experimental, para fazermos a residência em conjunto. Depois o Luís Fernandes, que comanda o GNRATION, convidou-nos a fazer uma peça para ficar online, com uma montagem fixa entre 10 a 20 minutos.”
Essa experiência em filmes-concerto e live cinema, levou-o a desenvolver um trabalho muito forte no que toca à articulação com a música e espetáculos ao vivo, algo que é reforçado pela sua visão cinematográfica: “Como eu venho do cinema experimental e não da media art, para mim tudo no ecrã tem que funcionar como um filme. Depois quando pões a banda, as luzes, o público, isso fica muito mais forte. No meu trabalho, apesar de todo o improviso envolvido, há uma estrutura em que sei mais ou menos a música, os tons, e sei que começo num certo ponto e sei onde tenho que estar no momento seguinte. Aquilo tem que continuar a funcionar por si só numa sala de cinema. A narrativa é muito importante também para os músicos e não tem que ser uma coisa óbvia. Nos meus filmes experimentais e concertos abstractos há sempre qualquer coisa que me guia e espero que guie de alguma forma o concerto. Às vezes coisas muito básicas como começar muito escuro e acabar muito claro. Só isso já é importante, porque te ajuda a restringir, a saber que tens que fazer determinada coisa. Como faço isto há muitos anos, já consigo respirar fundo, mas quando estás ao vivo o tempo é muito mais rápido. Se não tens pausas, é difícil. O mais importante para mim é teres uma narrativa, seja lá qual for.”
Sobre voltar a trabalhar filmes mais narrativos ou figurativos como Fade Into Nothing ou Guanche, projecto para o festival ALESTE na Madeira, que voltou a juntá-lo a Paulo Furtado e à actriz Iris Cayatte, o realizador acrescenta: “Apresentamos na Madeira, no Curtas Vila do Conde, no Porto, e é um projecto que é cinema, música e spoken word. Apresentamos no Curtas e tivemos muito bom feedback. É narrativo, mas também muito experimental. Mas a minha tendência é ir sempre para coisas não narrativas, apesar de haver sempre uma estrutura, como no Janela do Inferno: há uma ideia de percurso, uma narrativa, apesar de ser muito experimental, mas acontece mais quando trabalho com outras pessoas. No Guanche escrevemos um guião e acabamos por fazer uma coisa totalmente diferente.”
Nesse cruzamento de várias disciplinas artísticas, naturalmente, os projectos acabam por vir de impulsos diferentes. O facto de trabalhar num dos últimos laboratórios da Alemanha a fazer todos os processos analógicos (revelação, cópias de cinema, etc.), onde é responsável pelas digitalizações, fez com que fosse à procura de bobines de nitrato, “porque as cinematecas têm, mas aquilo está sempre muito bem guardado, porque é muito inflamável e é difícil ter acesso. E eles disseram-me que tinham lá umas latas. E aquilo eram imagens de um incêndio para aí de 1930, um filme que está completamente destruído, com imagens de um fogo num suporte que é altamente inflamável. E decidi que tinha que fazer alguma coisa com aquilo, uma coisa de 5 minutos, muito simples.”
Daí nasceu Berlin Feuer (2021), onde a forma se alia ao conteúdo representado, dando origem, pela sua fenomenologia, a um filme-chave e representativo do seu trabalho:“Digitalizei as imagens e estava a trabalhar com elas, mas achei que fazer uma coisa só com found footage, como o Bill Morrison faz, não era suficiente e decidi intervir na película. Muitos dos projectos que faço em película passam por uma primeira destruição. Digitalizo, faço uma segunda destruição, digitalizo, etc. Até quase o original ser perdido. No Guanche tenho isso: imagem limpa até um nível de destruição em que quase não vês nada. Gosto dessa ideia de o que fazes ser irremediável, de fazer os filmes como faço os concertos, com essa qualidade quase efémera.”
O que também ajuda a tornar o seu trabalho particularmente interessante e único é uma despreocupação com purismos desnecessários. Identificar as qualidades latentes dos materiais e suportes com que se trabalha, desafiando-se a expandir as características inerentes ao seu trabalho através dos mesmos, tem sido receita para os seus filmes: “Gosto de articular o digital com o analógico. Uso muito o digital, faço muita coisa em 4K. Não me interessa aquela ideia nostálgica da película ou do antigo. Isso não me interessa. Eu uso a película pela sua plasticidade e propriedades. E no Guanche isso é fixe, porque consigo no mesmo concerto ir de uma imagem muito limpa em que te focas numa imagem muito bem construída de forma cinematográfica e passar para uma totalmente caótica em que quase não vês imagem. O que tenho feito em alguns projectos como o Janela do Inferno é filmar em digital e passar para película. Destruir o analógico e voltar a passar para digital. Ando sempre entre uma coisa e outra. Acho que é isso que dá força ao meu trabalho, porque no cinema tu tens os puristas da película que fazem as cópias e não percebem nada de digital. Depois há a malta do digital que não percebe nada de película. Eu estou confortável nos dois campos e acho que o meu trabalho explora isso e valoriza-se por causa disso. Não tenho aquela coisa nostálgica, mas antes um interesse em intervir na película, seja pós-revelação ou na revelação com químicos, onde mudo os tempos, o PH da água… ou aplico efeitos de solarização como o Man Ray fazia.”
Para além dos espetáculos onde alia as suas imagens à música de outros, essa relação com a música e os seus atributos é também importante nos seus filmes: “Sim, a música acaba por ser uma paixão mais forte do que o cinema para mim, mas não tenho talento nenhum. Mas é aquela coisa de fazer música com imagens. É um conceito a que eu não gosto de me associar tanto, mas é um bocado visual music.”
A experiência em sala é a imersão nas qualidades materiais e plásticas das imagens criadas pelo realizador e da música a que se associam, numa fruição visual e sonora que não deixa de apelar a descobertas estruturais e narrativas por parte do espectador. Essa relação com a música é transposta também para a própria criação de vídeos musicais que, mais uma vez, se articulam com outros suportes: “Fiz um videoclipe para o Vessel que se chama Passion, que tinha tanto bom material de 16mm, de stills e tudo mais, mas o Vessel não queria lançar o disco em vinil, por motivos ecológicos. Então decidimos fazer uma fanzine, limitada a 50 unidades, com base nas imagens a 16mm que não foram usadas no videoclipe, para quem comprar o digital ter a fanzine. Depois o dinheiro era doado a uma instituição de mind charity, porque a música tem também que ver com isso. Portanto, a ideia era construir um livro que fosse uma espécie de filme. Esta dinâmica é uma coisa que me interessa muito. Obviamente que o meu trabalho é mais ao vivo e sobre esta ideia de construir coisas que não se repetem.”
Para além de March of Time, Pedro Maia apresenta ainda o videoclipe “Scotch Rolex and Shackleton – Deliver The Soul, na competição de vídeos musicais do 31º Curtas Vila do Conde.
Quando estamos num museu de figuras de cera, não é apenas a célebre e infame câmara dos horrores tão discutida que incita em nós sentimentos negativos. Pelos longos corredores nunca nos sentimos seguros com os olhares daquelas figuras miméticas em cima de nós: nem humanas, nem objetos. Várias razões verificam-no (sentimo-nos observados, temos medo que ganhem vida, etc…), mas independente destas, é uma verdade universal. Esta história não acaba com as figuras de cera, isto é observável com qualquer objeto ou coisa que se tenta aproximar duma aparência humana através da mimese. Foram mencionadas figuras de cera, mas podiam também ter sido certos tipos de robôs, esculturas, bonecos e o que é o foco deste ensaio: marionetes, fantoches e outros objetos de espetáculo.
Um termo é crucial: Uncanny. Normalmente é traduzido para “estranho”, mas na realidade é uma palavra com um significado mais específico, tendo um contexto histórico, psicológico, social e cultural muito preciso. O termo, de forma mais concreta, está ligado, não a algo simplesmente misterioso, mas à experiência psicológica de percecionar algo estranhamente familiar. O termo é usado para ilustrar o sentimento ou processo psicológico do ser humano quando se depara com algo que se encontra delicadamente equilibrado na linha ténue entre completamente alienígena e estranhamente demasiado familiar. Uncanny foi pela primeira vez utilizado por Ernst Jentsch num ensaio chamado Das Unheimliche. Neste ensaio Jentsch foca-se no conto Der Sandmann de E. T. A. Hoffman, famoso pela sua personagem Olympia: uma boneca exatamente igual a um ser humano (que mais tarde acaba por ganhar vida). Já neste texto, o uncanny começa a ser ligado a figuras como bonecas e marionetas, objetos miméticos de algo vivo (aqui também já ligado a medos racionalizados, como o de “ganharem vida”).
A doll which closes and opens its eyes by itself, or a small automatic toy, will cause no notable sensation of this kind, while on the other hand, for example, the life-size machines that perform complicated tasks, blow trumpets, dance and so forth, very easily give one a feeling of unease. (Jentsch, 1906)
Outro autor, e provavelmente o mais célebre, a trabalhar o uncanny foi Sigmund Freud no seu ensaio homónimo. Freud vai desenvolver esta definição como encontrar “o estranho no aparentemente normal”, algo que não só reforça entendimento prévio do termo, como lhe acrescenta novas conotações.
I will say at once that both courses lead to the same result: the “uncanny” is that class of the terrifying which leads back to something long known to us, once very familiar. (Freud, 1919)
Na segunda metade do século XX, este termo evolui para a sua fase final célebre. Masahiro Mori, um pioneiro no campo da robótica, cunha, na década de 1970, a expressão “uncanny valley” (nesta altura ainda só aplicado ao seu campo de trabalho). Este conceito tem referência a um vale físico numa representação gráfica da teoria de que robôs com base na figura humana vão ser cada vez mais aceites pelo ser humano, quanto mais corretamente se assemelharem. Todavia, o que Mori mostra com a sua representação gráfica é que esta não é uma curva em subida permanente, ou seja, existe um “vale”, ou uma descida na aceitação em relação à semelhança. Este vale representa a descida drástica de aceitação quando estas máquinas se começam a assemelhar de forma demasiado apurada e realista ao seu objeto (sem serem ainda absolutamente perfeitas). Isto incita no ser humano um sentimento muito forte de uncanny, uma certa inquietante estranheza. O termo, como pode ser visto, é muito específico a uma certa situação, mas o termo de uncanny valley em uso neste ensaio está mais ligado à sua apropriação mais expansiva que se encontra na nossa cultura geral. Este conceito foi estabelecido nos anos 1970 e até hoje verifica-se uma lenta entrada do termo no zeitgeist cultural em que nos inserimos. Isto deu-se em dois passos. Inicialmente o tema foi expandido para se referir a qualquer coisa que se assemelha a um humano e se encontre nesse ponto específico do vale hipotético; mais tarde, o termo começou a ser usado para se referir a qualquer coisa de característica mimética que se aproxima demasiado do objeto da sua mimese (sem esta ser perfeita). Para exemplificar melhor esta segunda evolução, seria interessante estudar a reação à tendência viral que se popularizou na internet, em 2020, da criação de bolos miméticos hiper-realistas. Pode parecer estranho, no entanto, por alguma razão, nesse ano, vídeos de bolos que imitam muito realisticamente objetos ou coisas (sapatos, garrafas, latas e até bebés…) a serem cortados, revelando que não eram a coisa que imitavam, mas sim um bolo, tornaram-se extremamente populares (principalmente no Instagram). Como estes bolos eram feitos não interessa muito para esta discussão, o que é fascinante é a forma como as pessoas reagiram. Em reação a esta tendência ganhar uma popularidade absurda, desenvolveu-se uma piada que se espalhou mundialmente, maioritariamente através do Twitter. Esta piada tinha diversas variações, sendo a sua base um medo jocoso de um futuro distópico ou cenário aterrorizante onde nada é o que parece: tudo é bolo (num momento de abraço a alguém querido, essa pessoa desfaz-se: a sua pele em pasta de açúcar, as suas entranhas em recheio de chocolate…). Pode parecer completamente ridículo, não obstante, mostra perfeitamente como a experiência psicológica do uncanny valley ultrapassa a robótica e até a mimese humana, sendo uma experiência universal que se liga a qualquer objeto camaleónico (e simultaneamente mostra também as justificações do medo do uncanny: algo não é o que parece, etc).
Antes de abordar o tópico principal, uma rápida ligação tem ainda de ser feita: a das marionetas com o uncanny. As marionetas (neste caso referindo-se a qualquer objeto usado num espetáculo ao qual seja dado vida e movimento) podem, então, ser vistas provavelmente como o exemplo perfeito do uncanny, pois não só têm quase sempre uma característica de imitação (seja ela de um ser humano ou não), como também lhes é “dada vida” através de movimentos controlados (aproximando-se dos robôs aos quais Mori se referia). As marionetas são normalmente utilizadas em artes do espetáculo, mas este texto apenas se focará na sua relação intermedial com o cinema: num filme, a que nível e de que modo é que a técnica e as convenções próprias deste meio artístico afetam e interagem com estes objetos (principalmente no que toca à sua relação com o uncanny e a uncanny valley). Esta exploração será feita a partir do contraste entre dois filmes muito diferentes: Neco z Alenky de Jan Švankmajer (traduzido como Alice, sendo esse o nome pelo qual irá ser referido) e Superstar: The Karen Carpenter Story de Todd Haynes (que será tratado apenas como Superstar no resto do ensaio, por uma questão de brevidade e melhor compreensão).
Jan Švankmajer é um realizador checo surrealista, mundialmente famoso nos círculos de cinema de animação e arthouse devido às suas numerosas e inovadoras curtas e às suas menos numerosas, igualmente fantásticas (no verdadeiro sentido da palavra), longas-metragens. Švankmajer é um surrealista na verdadeira definição do termo enquanto movimento artístico, e não no sentido lato da palavra: um artista que explora uma realidade muito ligada ao inconsciente e que se baseia numa realidade que não é nem a nossa realidade absoluta, nem a realidade do sonho, uma “surrealidade” (como dizia o “fundador” do movimento surrealista, André Breton). Švankmajer é conhecido no seu cinema, não só pela sua vertente surrealista, mas também devido ao uso recorrente de duas artes diferentes que incorporava sempre na sua obra: o teatro de marionetas e o stop-motion (ou animação de volumes). Enquanto aqui são mencionadas marionetas, estas não se limitam à definição de dicionário, algo restritiva, de “Boneco manipulável, geralmente através de cordéis e engonços ou através da mão introduzida numa espécie de luva que constitui o corpo do boneco”. É proposta uma expansão que Švankmajer tentava atingir. No seu cinema, quando se fala de marionetas, o referente de “boneco manipulável controlado por um titereiro” está sempre em questão, no entanto, este não se restringe às limitações mecânicas desta definição. Pode ser qualquer objeto (figurativo) que é manipulado pelo realizador. Muitas vezes é já introduzida a animação de volumes, permitindo uma manipulação destas marionetas sem qualquer visível elemento mecânico da mesma (com raras exceções como o Chapeleiro Louco de Alice a ser abordado). Em segundo lugar, para continuar a falar da animação de volumes, esta não se restringe só ao controlo das marionetas, é também uma técnica utilizada para controlar pontualmente alguns objetos aos quais não são dados “vida” (como às marionetas), e também de forma estilística para criar um novo ritmo de movimento (um movimento quebrado, fluido que habita praticamente todos os seus filmes). Alice, tal como o nome indica, é um filme baseado no seminal livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Este livro trata a história de uma rapariga nova que se depara, depois de seguir um coelho por um buraco no chão, com um mundo fantástico onde a lógica humana não se aplica. Esta obra está inserida dentro do género do non-sense, sendo as características mais marcantes da mesa a subversão da lógica comum e a estranheza não justificada (e não justificável). Face a estas características, pode-se facilmente classificar esta obra como proto-surrealista (tendo sido escrita praticamente um século antes do surgimento do movimento artístico). Sabendo isto, é de fácil compreensão a escolha de Švankmajer na obra a adaptar para o cinema. Mas existe outro aspeto que vai ao encontro direto com o tema aqui a ser explorado. No livro original, embora se trate do tema de non-sense, nem tudo é completamente abstrato. O que Lewis Carroll pega em referentes do mundo em que vivemos (maioritariamente ligados à infância) e subverte-os de forma a provocar uma assoberbante estranheza. Será uma inquietante estranheza? Não. Carroll podia muito facilmente ter deixado a sua obra cair no reino do uncanny. Tal não acontece. O essencial a entender é a forma em relação à dupla face do conteúdo. O conteúdo estranho, mesmo dentro da sua estranheza, tem uma certa neutralidade. O conteúdo é a matéria prima a ser trabalhada, não causa ela em si mesma este efeito no espetador. O que acontece, então, é que a escrita vai ser o elemento que empurra ou afasta este conteúdo estranho do uncanny. A forma influencia o conteúdo. Não só verificamos isto na obra de Carroll, mas também no filme de Švankmajer. A técnica e forma do cinema e da arte das marionetas é que vai influenciar o conteúdo, neste caso empurrando completamente a história até cair no fundo do abismo da uncanny valley. Sabe-se de imediato que Švankmajer não está interessado na história de Lewis Carroll como um simples exemplo de maravilha infantil:
A atração temática de Švankmajer pela infância portanto representa, não uma ânsia por uma prévia inocência, mas a articulação de um perdido conjunto de hábitos, princípios de pensamento e lógicas. De facto, “inocência”, segundo Michael Richardson, “não existe [nos seus filmes],” porque “os terrores [do amadurecimento] nunca são superados.” O perigo real vem, não do enfrentar esses terrores, mas em fingir que já não existem ou que talvez nunca tenham existido (Keith Leslie Johnson, 2017)*
Ao analisar o Uncanny deste filme, a primeira coisa que chama à atenção são as marionetas. As marionetas dividem-se em quatro categorias que devem ser analisadas individualmente. A primeira é a categoria dos objetos apropriados. Švankmajer não se limita apenas a construir as suas marionetas de forma tradicional, optando por remover objectos (normalmente utilitários) do seu propósito de existência, criando uma mistura de objetos que se assemelha à personagem em causa e à qual depois lhes dá uma nova vida. Švankmajer, no seu famoso decálogo onde dita os seus princípios para cinema de animação, afirma:
Animation isn’t about making inanimate objects move, it is about bringing them to life. Before you bring an object to life, try to understand it first. Not its utilitarian function, but its inner life. (Švankmajer, 1999)
Este “mandamento” demonstra a forma como Švankmajer perceciona estes objetos que usa. Ele não os usa para contar as suas histórias, ele conta as histórias desses objetos (o que é ainda mais fascinante se se pensar na forma como o objeto está a representar um referente diferente: o objeto conta uma história exterior a ele, mas que só ele pode contar). Mas como é que isto promove o ambiente uncanny? Ao criar estas marionetas dá-se uma cisão dupla do referente. Pode-se olhar para a marioneta de duas formas, mas nenhuma delas vai ser reconfortante. Em primeiro lugar, a marioneta como o que ela está a tentar representar, o que incita um sentimento bizarro devido ao reconhecimento pelo espetador da representação, em contraste ao reconhecimento da sua estranheza formal (construída por outros objetos). Em segundo lugar, a marioneta como um conjunto dos objetos que a constituem, também bizarro devido à forma como, mesmo sendo os objetos coisas reconhecíveis do mundo humano, a sua mistura e a forma como são conjugados vão encaminhá-los da zona do objeto mundano reconhecível para o da representação de algo exterior e fantasioso. Isto pode ser visto, por exemplo, na personagem da Lagarta, uma personagem amigável (embora misteriosa) e reconhecível do livro de Carroll, aqui representada por uma meia com uma dentadura e dois olhos de vidro. Estes objetos não são só causadores do uncanny devido à sua aproximação do não-humano ao humano, mas também por serem símbolos da morte, não estando só presentes neste tipo de marionetas.
Isto acabaria na segunda categoria, marionetas da morte, uma categoria de marionetas muito presente na obra de Švankmajer, que se destaca principalmente neste filme. O que se entende com marionetas da morte, são marionetas feitas a partir de animais mortos, sejam estas taxidermias ou apenas esqueletos modificados.
O interessante nesta categoria de marioneta é a subversão completa do uncanny. Em vez de ser uma aparência viva de algo morto, é um processo com mais etapas. Na história já mencionada de E.T.A. Hoffman, Olympia, a boneca, é reconhecida como um dos grandes elementos do fenómeno no conto, devido a ser uma figura estática sem vida que é animada (sendo o animismo um dos grandes causadores do uncanny, segundo Freud). Nestas marionetas, o processo passa por três passos. Estes crânios, ossos e taxidermias são reais: já tiveram vida, sendo essa a primeira etapa. Depois disso, estes animais foram mortos e transformados em taxidermias, a segunda etapa deste processo e também o primeiro passo para alcançar o uncanny: taxidermias em si, mesmo as que não são marionetas, são normalmente acusadas de incitar este fenómeno no observador (seja isto pela ideia de que algo está morto enquanto devia estar vivo, então existindo a possibilidade de ganhar vida a qualquer momento, seja pela sua atitude fantasmagórica perante a morte). A terceira etapa é a da animação das marionetas, a criação derradeira do uncanny nestes objetos: algo que já foi vivo, devendo estar morto, e que mesmo assim vive, confirmando o medo (este movimento é natural, mas não devia ser nestas circunstâncias: mais normal que o normal). Outro grande elemento nestas marionetas é o de muitas delas estarem ligadas ao conceito de amputação, sendo por exemplo, só crânios, dando a ideia de um animismo mórbido, macabro e impossível.
O terceiro e o quarto tipo de marionetas são menos comuns: as marionetas clássicas e a boneca. A marioneta clássica não se encontra muito presente no filme, mas o momento em que aparece é dos mais marcantes. O principal exemplo desta categoria de marioneta é o do chapeleiro louco: uma marioneta no sentido mais clássico da palavra, controlada por fios visíveis que sobem até céus desconhecidos (seria importante ler The Clown Puppet de Thomas Ligotti, um escritor eternamente fascinado com o horror das marionetas e o animismo desse vazio).
O quarto tipo de marioneta toma a forma de Alice quando diminui de tamanho. Ambas estas marionetas funcionam no nível básico do uncanny já explorado anteriormente, o qual uma boneca ou marioneta tradicional apresentam. A grande diferença entre elas é o facto de uma ser animada e a outra não (o que vai dar de encontro ao próximo tópico onde isto será explorado de forma mais desenvolvida: a animação).
A animação é das partes mais importantes de qualquer filme do Švankmajer. Durante muito tempo, o cineasta fez curtas-metragens que a ela se restringiam, mas a mistura entre live-action com este meio começou a ser mais explorada pelo autor nas suas longas-metragens. As últimas têm sempre um nível variante de live-action (algumas até tomando o ator humano como papel principal), contudo, contêm sempre, sem exceção, o uso fulcral da animação. Esta é utilizada em duas grandes vertentes: a animação de marionetas e a “hiper-animação”.
A animação de marionetas já foi de certa forma explorada em parágrafos anteriores, mas não o suficiente para chegar ao seu núcleo. Esta expressão artística é dos elementos mais importantes e responsáveis pelo ambiente uncanny do filme, podendo até ser estudada em separação da marioneta. O referente que dela existe é o de algo que tem um titereiro, alguém que a controla. O que a animação neste caso efetua é retirar “as cordas” ao objeto, ou seja, o elemento que permite o espetador criar uma ligação entre ele e o seu titereiro. A marioneta já é considerada um dos grandes exemplos do uncanny, devido à semelhança ao seu referente e ao animismo que implica. Todavia o titereiro e as suas cordas funcionam como um cobertor reconfortante que garante que esta não passa de um objeto. Švankmajer aumenta o desconforto ao retirar este cobertor de segurança, deixando o espetador a sós com o uncanny. O cineasta escolhe então estrategicamente também mostrar os fios de uma marioneta: a do chapeleiro louco. O seu artifício fica em completa evidência, ou seja, em vez de ser só um objeto que é suposto tomar o lugar de outra coisa, é uma marioneta. O espetador reconhece a marioneta, como o que ela representa e agora também como marioneta em si. Vê que está a ser controlada, mas não sabe pelo quê. Isto amplifica o horroroso mistério, mas agora para outro campo: o titereiro invisível.
O outro tipo de animação usada é a “hiper-animação”. Este termo é aqui usado em referência à animação do real, ou seja, das filmagens live action. Esta divide-se em duas grandes categorias, a do possível e a do impossível. A do impossível, contrariamente ao que o nome diz, é a mais “normal”. Esta designação refere-se a quando Švankmajer anima objetos ou pessoas (não marionetas) de forma a conseguirem realizar ações que não conseguiriam no mundo real (tomemos como exemplo a transformação de Alice na boneca, sendo este momento já um crossover entre a hiper-animação e a animação de marionetas, ou até o momento em que a Alice entra dentro da gaveta).
Embora isto seja bizarro, obriga-nos a aceitar uma realidade alienígena à nossa. A hiper-animação do possível é mais bizarra. O realizador pega em ações de pessoas ou objetos que poderiam ser simplesmente filmadas e quebra-as em fotogramas, animando-as em vez de as filmar “normalmente”. Esta técnica encontra-se muito presente nos filmes deste realizador, sendo o exemplo mais notório provavelmente o da curta-metragem Food. O efeito que ela tem no espetador é a de este estar a ver uma ação normal na qual algo está ligeiramente errado: o espetador perceciona o movimento, mas este está diferente o suficiente do seu referente real para causar um sentimento uncanny. O oposto disto seria, no cinema digital, a utilização de 60 frames por segundo ou outro tipo de FPS elevado: enquanto neste filme a estranheza vem do movimento ter “frames a menos”, aproximando-se do real sem chegar lá, nestes exemplos do cinema digital a estranheza vem de um sentimento de a imagem ser “mais real que o real”, aproximando-se demasiado da nossa perceção do movimento fora do cinema (algo à qual não estamos habituados).
Seria impossível dar como terminada uma análise de Alice sem mencionar a sua realização. A realização de Švankmajer é interessante devido à sua forma de aproximar o conteúdo da estranheza e do uncanny. Este efeito é alcançado através de uma linguagem maioritariamente clássica e linear no que toca à realização e apresentação da narrativa, ocasionalmente quebrada por chamadas de atenção à sua presença. O que esta linguagem atinge é o embalar do espetador numa consciência narrativa no qual se sente imerso (mesmo com o seu bizarro conteúdo) até ser completamente quebrado por momentos muito artificiais e pouco naturais, como os planos de pormenor da boca de Alice.
Em contraste, é possível concluir este estudo com uma análise do filme Superstar: The Karen Carpenter Story, filme realizado por Todd Haynes, em 1988, que conta a história de vida de Karen Carpenter (a célebre vocalista da banda The Carpenters), focando-se principalmente na luta com o seu distúrbio alimentar (anorexia nervosa). O que esta obra prova é que a técnica cinematográfica, embora seja normalmente usada para exacerbar o sentimento de uncanny causado pelas marionetas, pode também servir para o amenizar.
Neste caso, encontram-se em jogo vários elementos que contribuem para este efeito. Um dos principais é o seu contexto. Este filme usa bonecas e bonecos barbie que modifica e manipula.
Estes objetos, tirados de contexto, muitas vezes seriam ligados ao sentimento de uncanny (brinquedos como bonecas são elementos recorrentes no cinema de terror), mas o que Todd Haynes faz é explorar meta textualmente o contexto sociocultural em que se inserem. Acima de tudo, Haynes quer criar uma identificação com estes bonecos, ou seja, quer estabelecer pathos:
Bem, a ideia de fazer um filme com bonecas na verdade veio antes de qualquer outra coisa. Eu vi um pequeno trailer promocional a preto e branco na televisão – um excerto vintage de TV dos anos 50, que introduzia a Barbie ao público Americano. E tinha uma pequena cena interior em miniatura com a boneca sentada pela sala de estar, e depois a barbie entrava e mostrava o seu novo vestido à Midge e também era intercalado com cenas live action- uma rapariga jovem a abrir a caixa de correio, filmada de dentro da caixa de correio, a receber o seu correio do clube de fãs da Barbie. E eu fiquei muito intrigado com a ideia de fazer uma narrativa bastante direta a beber de formas populares pré-existentes, mas simplesmente substituindo atores reais com objetos inanimados, com bonecos. E sendo muito cuidadoso e detalhado de forma a provocar o mesmo tipo de identificação e investimento na narrativa como um filme real conseguiria. (Haynes, 1989)**
Estes bonecos estão ligados à nossa infância, reconhecemo-los por os termos usado como brinquedos, tendo nós sido os seus manipuladores (ou os titereiros). A primeira escolha importante que Haynes faz é a de não usar animação stop motion, mas sim manipular os objetos como marionetes clássicas. Mesmo tendo o titereiro fora de campo, isto aproxima os objetos à nossa realidade, não de uma forma estranha, mas de uma forma familiar que nos permite estabelecer com eles uma ligação emocional (a experiência de ver o filme é semelhante à de vermos alguém a brincar com uma casa de bonecas, criando narrativas das quais são o seu “Deus”). Outro relevante aspecto do contexto sociocultural é a iconografia da Barbie em si. Esta é uma boneca ligada muitas vezes a estereótipos de “perfeição” que a sociedade impunha no papel da mulher (mesmo que a marca se tenha afastado disso ao longo dos anos, na época em que a história se passa esta era a sua conotação). Por esta razão, faz todo o sentido usar estas bonecas para contar uma história sobre distúrbios alimentares, criando imediatamente uma ligação de forte de pathos do espectador com os objetos, reconhecendo a sua conotação e ligando-a à história real que está a ser recontada.
O outro aspecto a mencionar é o da realização. Todd Haynes é um realizador intimamente ligado ao cinema clássico norte-americano, principalmente ao género do melodrama, sendo quase todos os seus filmes um comentário ou apropriação da linguagem deste género para uma sensibilidade moderna/contemporânea. O melodrama é o género mais intimamente ligado aos sentimentos, sendo a sua base as emoções fortes (no que mostram e no que incitam no espectador). O que Todd Haynes tenta atingir com esta atualização contemporânea desta linguagem é conseguir incitar nos espectadores sentimentos fortes, um grande pathos e um grande nível de identificação com a narrativa, de forma a que o espetador fique completamente imerso (sem nunca deixar cair o filme numa simples revisão histórica do melodrama, misturando linguagem contemporânea que retira o espetador também do referente absoluto desta linguagem clássica).
Mesmo face a um único objeto ou conteúdo (marionetas), o cinema consegue completamente mudar o efeito que este tem no espectador. A câmara ajuda o conteúdo a subir o vale do uncanny, ou empurra-o para a sua falésia, mas nunca é inocente. O cinema de marionetas nunca será igual ao teatro em que se baseia.
Vasco Muralha
Bibliografia
-Bell, John. Puppets, Masks and Performing Objects. Cambridge: The MIT Press 2001
-Bingham, Adam. Directory of World Cinema East Europe. Bristol: Intellect Books 2011.
-Freud, Sigmund. The Uncanny, E-book: Penguin Books Ltd 2003
-Jentsch, Ernst. Zur Psychologie des Unheimlichen: 1906
-Johnson, Keith Leslie. Contemporary Film Directors Jan Švankmajer. Illinois: University of Illinois Press 2017
-Leyda, Julia. Todd Haynes Interviews. Mississippi: The University Press of Mississippi 2014
– Švankmajer, Jan. “Decalogue” In Vertigo, Volume 3, Issue 1. London: Closeup Film Centre 2006
-White, Rob. Contemporary Film Directors Todd Haynes. Illinois: University of Illinois Press 2013
Na 20ª edição do Indielisboa, para além de muitas outras linhas temáticas, é posto em evidência o cinema das relações fraturadas e débeis através de três filmes que constam na programação: uma sátira, um thriller e um drama-comédia familiar. Os dois primeiros pertencentes à secção Boca do Inferno, a secção de filmes desconcertantes do festival, e por último aquele que encerrou o festival no passado domingo. Fala-se, portanto, da sátira norueguesa Sick of Myself (2022), de Kristoffer Borgli; da primeira longa-metragem da norte-americana Chloe Okuno, Watcher (2022); e da longa-metragem de Dustin Guy Defa, The Adults (2023).
Sick of Myself é uma comédia desconfortável na qual a sua personagem principal, Signe (Kristine Kujath Thorp), ultrapassa todos os limites para chamar a atenção, num gesto narcisista e sem escrúpulos. Watcher, por sua vez, é um thriller sobre um casal que se muda para Bucareste, na Roménia: Julia (Maika Monroe) e Francis (Karl Glusman). Ele, meio romeno, fala e entende a língua, enquanto ela acaba por se ver sozinha e sem nada para fazer num país que lhe é estranho. Para além do isolamento, Julia começa a sentir-se observada por um olhar estranho vindo do prédio em frente ao seu (num piscar de olhos ao filme Rear Window de Alfred Hitchcok). No filme escolhido para encerrar esta edição do festival, o mais intimista e melancólico dos três, Dustin Guy Defa foca-se na relação entre três irmãos que se veem reunidos devido a uma visita curta de um deles, Eric, à sua terra natal. Eric é interpretado por Michael Cera que coloca o espectador numa posição saudosa, relembrando-se do seu carisma. Em todos estes filmes, as relações humanas são postas em evidência e são, até mesmo, testadas, mostrando-se frágeis e quebradiças, o que parece culminar num isolamento e numa tendência para a autocentralidade.
De certa forma, os três filmes parecem existencialistas na sua génese, no sentido em que as suas personagens vivem dentro de si próprias e parecem muitas vezes entrar em colisão consigo próprias, seja pela forma como se veem, seja como são vistas pelos que as rodeiam. Signe (Sick of Myself) é o culminar desta autocentralidade. Uma mulher que tem um trabalho que não gosta e um namorado fútil e despreocupado, que ao ver-se num estado extremo de solidão, começa a destruir a sua vida para chamar atenção sobre si própria. O seu desejo é não cair na sombra do namorado, um artista contemporâneo que representa muito bem a artificialidade do panorama artístico dos nossos dias, e ser a “donzela em apuros” que este quer salvar. Signe é o exemplo perfeito do “main character syndrome”, e do fetiche pela vitimização cada vez mais recorrente numa sociedade da fama artificial e efémera das redes sociais. A personagem da sátira norueguesa começa a tomar uma droga russa chamada Lidexol que tem como efeito secundário uma doença de pele grave. Este masoquismo da personagem, que é, por sua vez, também uma forma de narcisismo, é o que na cabeça dela lhe vai trazer a fama e a atenção que esta sempre quis.
O vazio e a solidão parecem contribuir para este narcisismo e para esta autocentralidade de personagens solitárias que se querem de alguma forma fazer evidenciar. Signe não é a figura solitária por excelência, dado que várias vezes a vemos em festas e ambientes sociais. Contudo, as pessoas que a rodeiam revelam-se ocas e fúteis e acabam por apenas colorir um vazio que, na verdade, permanece. No caso de Julia (Watcher) o isolamento é evidente, mas este não provoca esta autocentralização, mas sim uma espécie de interiorização existencialista, distanciando-se assim de Signe. Desta forma, Julia, acaba por passar os dias muito dentro de si mesma, à falta de companhia, o que a leva a pensar que talvez esteja a ver coisas onde elas não parecem existir. Julia e Signe são quase o oposto uma da outra: a primeira anula-se viajando para um país desconhecido em prol da carreira do marido, e quando o perigo se mostra real esta tem dificuldade em validar aquilo que está à sua frente; a segunda traz o perigo para si, vitimizando-se aos olhos de todos à sua volta. No entanto, é possível encontrar-se um fio condutor nestas duas personagens: a ideia de autovitimização, seja ela real, ou imaginada. Por sua vez, Eric em The Adults, escolhe o isolamento, ficando num hotel em vez de na sua casa de família, na qual mora a sua irmã mais velha, Rachel. Eric vai, ainda, prolongando a sua estadia, que inicialmente seria curta, de modo a conseguir participar em jogos de póquer (com velhos conhecidos, com os quais não parece ter qualquer tipo de relação de intimidade) que vão ficando cada vez mais competitivos, e ao mesmo tempo convencendo as irmãs que este alongamento da estadia se deve a elas. O ego de Eric sobressai nesta intensa competitividade e importância que parece dar ao póquer, contrariamente à sua passividade sobre tudo o resto, numa espécie de exercício de escape. Desta forma aproxima-se de Signe: ambos mentem para manter aparências e parecem viver uma vida falsa e vazia, que no caso de Eric se prende numa incapacidade em comunicar com as suas irmãs.
Eric é um mistério para as suas irmãs, para ele mesmo e até mesmo para o espectador, que parece ter dificuldade em lê-lo. Os momentos em que os três irmãos estão juntos tentam de alguma forma trazer ao de cima este lado mais sentimental de Eric, com jogos teatrais enferrujados recuperados de infância distante. Porém, esta nostalgia da infância acaba por dar a entender a distância que, atualmente, afasta os irmãos. Há neles uma quase negação da vida adulta (na qual os seus pais já não estão lá para os amparar) e isto faz com que as personagens neste coming-of-age de Defa sejam profundamente existencialistas. Eric foge ao confronto emocional, Rachel está deprimida e Maggie (a mais nova dos três) deixou a faculdade e não sabe bem o que fazer com a sua vida. Os três, como acontece também com Signe e Julia nos outros dois filmes, parecem passar muito tempo perdidos nos seus próprios pensamentos e falham quando é preciso enfrentar o outro e o desconhecido, num gesto também ele autocentrado.
Em Sick of Myself, a montagem revela-se muito importante, pois as cenas do dia-a-dia são intercaladas pelas fantasias vividas na cabeça de Signe, que, por vezes, passam despercebidas e colocam o espectador a questionar-se sobre a sua veracidade. Este conjunto de cenários comprovam a autocentralidade da personagem, que vive tanto na sua cabeça que parece até ficar sem vida fora desta. O prazer de Signe está na fantasia, no desejo de ser alguém que nunca consegue alcançar, sendo o clímax desta loucura narcisista a cena de sexo que é intercalada por flashes do seu suposto funeral. Um funeral é simbolicamente o lugar onde nada é mais importante do que aquele que está morto. A idealização deste momento é em si um dos pontos máximos do narcisismo de Signe.
Em suma, nestes três filmes podemos ver ao microscópio as dinâmicas de uma (ou várias) relação humana. No caso de Sick of Myself, a futilidade de uma personagem leva-a à sua destruição, não percebendo que o problema é procurar a atenção nas pessoas erradas. A relação entre Signe e Thomas (o namorado artista) é prova disto, dado que nenhum deles parece querer realmente saber um do outro, e ambos estão constantemente em disputa. É a fragilidade que caracteriza esta relação.
Em Watcher, a distância que Julia sente de Bucareste acaba por a distanciar de um marido que nem sequer parece acreditar quando esta lhe conta que acredita estar em perigo. O enredo do filme coloca à prova esta relação que, apesar de inicialmente ser a mais forte de todas (comparativamente com os outros dois filmes analisados), vai dando de si e revelando os seus pontos menos fortes.
Em The Adults começamos por ver uma relação, que em tempos acreditamos ter sido forte, e que, no ponto inicial do filme, se mostra enferrujada, talvez num reflexo realista das relações entre irmãos e na forma como estas vão mudando à medida que o tempo passa.
A verdade é que manter uma relação com outra pessoa é cada vez mais difícil numa sociedade que se revela fútil e hipócrita. Notemos a cena da campanha inclusiva, em Sick of Myself. A estratégia de marketing da campanha seria mostrar ao público corpos com defeitos e fazer com que estes fossem aceites pela sua diferença. No entanto, quando a mesma campanha se apercebe da deterioração do estado de Signe, a inclusividade parece perder-se e a máscara parece cair. As relações inter-humanas desafiam a fragilidade, e exigem que o Eu saia de si mesmo para se colocar no lugar do outro. Thomas, Signe (Sick of Myself) e Francis (Watcher) falham. Contudo, Eric, Rachel e Maggie (The Adults) dão-nos esperança que tal seja possível mesmo que de forma morosa e estranha. O final do filme de Dustin Guy Defa acaba por aquecer uma sala de cinema que se vê sorridente nesta sessão de encerramento do Indielisboa.
Avatar 2: The Way of Water foi um sismo cultural. Qualquer espectador que se tenha sentado durante as 3 horas da sua duração em sala e que se tenha permitido ver o filme nas regras que este propõe, que tenha deixado aberto em si um intervalo livre para a possibilidade de arrebatamento, consegue corroborar este facto. Um filme que não existe. Filmado num espaço artificial com atores não reais. Mas quem se sentou na sala 4D, sentindo os borrifos de água na cara e os solavancos das cadeiras, sabe isto. O cerne do interesse de Avatar 2 é simples, mas elementar: a ligação entre artifício e realidade. Neste caso nem seria correto dizer que James Cameron está a tentar entender qual o limite extremo a que o artifício pode ser esticado de forma a ainda conter credibilidade imersiva: o que realmente é impressionante em Avatar 2 é que este está a usar o extremo do artifício, esticando-o bem para além do limiar da realidade, de forma a perfurar um cerne de verdades e narrativas emocionais eternas.
Shin Ultraman, realizado por Shinji Higuchi e escrito por Hideaki Anno (realizador do prévio Shin Godzilla e criador da obra-prima Neon Genesis Evangelion), chega agora a Portugal com um ano de atraso. É o segundo filme na trilogia Shin, reboots liderados por Anno focados em antigas propriedades de kaiju ou tokusatsu (sendo o anterior Shin Godzilla e o seguinte Shin Kamen Rider). O cerne deste filme é semelhante ao de Avatar 2, porém diverge na sua abordagem em relação à artificialidade. Enquanto Avatar 2 tenta ativar a crença do espectador ao criar um universo de extrema artificialidade que mesmo assim é percecionado como real, Shin Ultraman faz o oposto: estabelece uma artificialidade tão extrema, tão não-credível e mesmo assim desafia o espectador a conseguir estabelecer uma ligação com os seus raios laser de VERDADE ofuscante.
Higuchi aniquila qualquer mísera pepita de verossimilidade ainda existente no seu universo (algo já escasso devido à realização frenética e desconcertante em que o filme opera) com Ultraman a despenhar dos céus. Propositadamente cria uma artificialidade que é instintivamente alienante. O uso de efeitos em complô com a narrativa e realização, cria uma experiência genuinamente desconcertante. A artificialidade não é um erro (ou um acidente), até sendo utilizados os efeitos de forma a que as criaturas e heróis não pareçam o que são, mas sim pessoas a usar fatos e a representar o que são no filme (algo que não é real na narrativa, mas que vai de encontro ao referente metatextual das séries e filmes originais).
O filme, através de uma trama extremamente nietzscheana (no meio deste filme de super-heróis e monstros, as personagens começam praticamente a citar a sua obra ipsis verbis), é injetado com vitalidade incandescente. Existe uma palpável admiração pela ambição necessária para escapar a um uno primordial sem seguir falsos ídolos, que consegue mesmo assim ir de encontro a ideais de comunhão, empatia e solidariedade. Nietzsche acreditava que a filosofia tinha de aprender a dançar. O cinema também! Deste baile de mensagem pop-Nietzsche (algo em que Hideaki Anno se especializa desde Neon Genesis Evangelion) com artifício extremo, surge um filho, fruto de acasalamento divino: um recém-nascido (ou de novo nascido – Shin), Ultraman, um verdadeiro ícone da realidade emocional que destrói todos os falsos ídolos da razão lógica.