Susana Nobre: “Não tenho uma visão determinada, ideologicamente, mas terei tendência a fazer filmes com finais felizes.”

O tiquetaquear dos relógios relembram a passagem irrevogável do tempo, a memória daquilo que não volta mais, mas também a muito humana capacidade de reinventar a vida. Susana Nobre projeta essa capacidade através de Helena (Raquel Castro), autêntico espelho com quem esbate as fronteiras da realidade, da ficção e da memória pessoal e coletiva, não obstante Cidade Rabat (presente na secção Fórum da Berlinale) ser a sua primeira ficção apoiada num argumento escrito.

A autora dos recentes No Táxi de Jack (2021) e Tempo Comum (2018), títulos que também observam aqueles que tomam as rédeas do seu destino, propõe, desta vez, uma viagem conduzida pela interioridade de Helena, mulher que se vê forçada a lidar com as particularidades do luto da mãe. A realizadora filma com calma, ternura e generosidade, escapando, também na direção dos seus modelos, a qualquer sentimentalismo ou condescendência televisiva.

Como Susana Nobre, também Helena trabalha em cinema, cuidando de relações intercedidas por horários, dinheiro e outras ficções, motivando assim a observação sobre várias redes de relações de pessoas. Pelas aparições que se sucedem, não será descabido vermos Cidade Rabat também como uma carta de amor às pessoas e princípios da Terratreme, produtora de que Susana Nobre é uma das fundadoras.

A certa altura, quando Helena faz serviço comunitário no Clube Desportivo da Reboleira e Damaia, vários espelhos se refletem ao infinito – Helena, que víramos inicialmente a organizar figurantes para uma rodagem, aponta a câmara de filmar para a sua própria imagem, como que se redescobrindo protagonista, alguém que decide a vida que acontece a cada instante.

No rescaldo do visionamento de Cidade Rabat, seguiu-se uma entrevista a Susana Nobre conduzida pelos autores do Cineblog Kenia Pollheim, Flávio Gonçalves e Ricardo Fangueiro:

Ricardo Fangueiro: Cidade Rabat parece ser construído em torno da ideia de família e comunidade. Percebemos que é filmado com muitas pessoas que trabalham na produtora Terratreme, muitas caras conhecidas. Havia essa vontade de se focar na importância dos vários coletivos e comunidades onde nos inserimos?

Susana Nobre

Susana Nobre: Não, como intenção, penso que não. O filme tem alguns aspectos autobiográficos e em relação ao projeto, a escrita é focada em alguns aspectos da minha vida, que surgiu principalmente como ponto de partida, uma janela para a escrita do projeto. A sequência inicial da descrição do prédio existiu quase como uma espécie de filme autónomo que eu já queria ter feito, uma curta-metragem, uma memória descritiva do prédio da minha infância. Era exatamente capaz de me lembrar de cada pessoa que lá vivia, sabia descrever a casa delas, os nomes… Queria fazer esse exercício como filme.

Depois, também já tinha filmado algumas coisas no Clube Desportivo, mesmo ao lado do bairro da Reboleira, onde o Basil da Cunha costuma fazer os filmes dele, e onde eu também estive, efetivamente, a fazer trabalho comunitário. Eram coisas que eu já tinha até explorado com a câmara, tanto o prédio como a Reboleira. São coisas que eu depois acrescentei à história principal – da morte da mãe – e centravam na ideia do ritual da morte, da partida, a partir da minha experiência. [Juntei] estas coisas de uma maneira um pouco imprevisível, sem saber muito bem onde é que me iam levar em termos de narrativa e de correspondência entre as coisas. Acho que [a comunidade e o coletivo] estão lá, mas não através de intenções completamente dirigidas, nem controladas.

Kenia Pollheim: A Susana falou de um trabalho autónomo sobre as portas e histórias, e é assim que começa este filme. Achei interessante vermos as memórias da personagem principal com as portas e o rasgo dessa memória no papel da mãe. Pode falar-nos um pouco desse acto, do rasgo físico da memória? Parece-nos que as lembranças não têm o mesmo valor para a mãe e para a filha…

SN: Não sinto que os movimentos no filme estejam tão sublinhados, mas existe de facto esse movimento contraditório entre a mãe que quer apagar o rastro dela, e a Helena, que tenta resgatar alguma coisa da sua própria vida. Penso que a personagem projeta-se já na vida da mãe, num lugar que sabe que em breve ocupará. Não são conceitos que tenha trabalhado de uma maneira muito direta mas que existem, de facto, no filme.

Flávio Gonçalves: A personagem trabalha em cinema como produtora, cuida dos horários e vê-se uma ligação com os relógios que vão aparecendo no filme: o tempo, a morte… Quando aparece o trabalho comunitário no Clube Desportivo, há uma ligação da montagem do ponto de vista da realização com a personagem, até chegarmos ao momento em que a personagem se filma ao espelho. Acha que a Helena é uma personagem que se esquece de si própria, demasiado atenta em organizar a vida dos outros, mas que se vai esquecendo?

SN: Sim, penso que esta personagem, quando a encontramos, é uma pessoa que aparece sempre em reação às coisas, a resolver problemas numa certa cadeia produtiva do quotidiano. Penso que, quando aceita o trabalho comunitário, existe esse desejo de fazer qualquer coisa que está fora dessa cadeia [e acho que é isso] que a leva a aceitar, ainda de uma forma um pouco incerta, o trabalho comunitário, para ter esse espaço de atenção. Ela esteve naquele bairro a trabalhar como produtora, com relações muito mediadas pelo dinheiro, e o bairro aparecia como décor. Depois volta com um outro olhar sobre aquela comunidade. Isso também era uma coisa que eu queria ter destacado no filme.

Em relação aos relógios, isso sim foi uma coisa muito de argumento. A ideia de que, quando entramos em casa da mãe, estamos sempre a ouvir o relógio, o tempo, cada minuto é importante. Assim, quando chegamos ao fim do filme, o tempo parou, o relógio está tombado. Já são coisas que têm mesmo a ver com a estrutura do filme.

KN: Essa questão de que a vida continua… No Tempo Comum (2018), há o nascimento de uma criança e nós vemos os passos da reinserção dos novos pais na vida social, numa pequena casa em Lisboa, com os amigos e família… Não sei se é propositada ou não, mas há a contraposição do nascimento desse filme com a morte em Cidade Rabat, mas principalmente a ideia de que há muito mais para além do que nos acontece. A vida continua e as coisas vão-se desenvolvendo sem o nosso controlo e isso é enfrentado neste filme de uma maneira muito contida. Vemos a Helena muito tensa, mas sem muita preocupação com o que vai fazendo. As coisas parecem até um pouco [desajeitadas] quando finalmente explodem como na cena da dança ou nos momentos informais com a sua equipa de produção.

Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes

SN: É a ideia desta mulher que esteve num ambiente de doença, de morte, que teve uma necessidade enorme de viver outras experiências, e é isso que a leva a ter uma série de impulsos que a põem numa espécie de euforia, de querer viver a alegria do mundo. Ela quer sair daquele universo mórbido. Quer, de certa maneira, acreditar na vida. A ideia de alguém que viu a morte de perto e que precisa de voltar a acreditar. Acho que ela tem essa euforia e, por um lado, acho que há uma ligeira evolução na sua vida e, quando chegamos ao final do filme, não é que tenha havido uma grande evolução, mas sabemos que ela talvez esteja já preparada para viver qualquer coisa de novo, mesmo que não saibamos o quê.

FG: Talvez através do cinema?

SN: Não sei… Ela faz cinema, mas podia fazer outra coisa… Podia escrever, por exemplo. É mais essa ideia de fazer qualquer coisa que tenha a ver com uma vida mais contemplativa.

KN: Isso nota-se já no trabalho com a comunidade no ato de filmar o Clube Desportivo em si.

FG: E há, no filme, uma visão do mundo acolhedora. Não há grande hostilidade entre as pessoas. Talvez esse acreditar na vida possa vir através dos outros, no dar atenção aos outros como já acontecia com a mãe? Os modelos que usou também fazem parte da vida da realizadora, está tudo muito unido, certo?

SN: Sim, há uma composição. É um filme de ficção, é tudo sempre ficcional, mas as coisas partem de experiências da vida que são, depois, muito elaboradas.

FG: E faz-lhe sentido isso de ser acolhedor? Quando se faz um filme, está a criar-se uma certa visão do mundo, um ideal. Neste filme só me lembro de um momento em que se sente uma falta de segurança, um mundo não tão ideal… Ou isto é simplesmente uma coincidência das pessoas que a rodeiam?

SN: Não tenho uma visão muito determinada, ideologicamente, no filme. Não estou a defender nada, estou a juntar as peças e ver o que comunicam entre si. Terei uma tendência, talvez, em fazer filmes com final feliz, apesar de atravessarem depois coisas muito duras. Mas isso talvez já venha da minha personalidade.

FG: Quando se olha ao espelho, há uma certa calma. O filme pode ser intranquilo, mas revela um modo de estar no mundo… Essa ideia de se esquecer de si mesma também estava presente no argumento, na ideia para a personagem?

SN: Sim, acho que há um apontamento auto-reflexivo, mas podem fazer vocês a psicanálise. [Risos]

RF: O filme marca o ritmo do quotidiano, como foi esse trabalho na montagem? A Susana esteve muito presente, foi importante para intensificar esse ritmo?

SN: Estive muito presente. Foi uma montagem bastante feliz. [Cidade Rabat] foi um filme de argumento, montámos a partir do argumento. Não houve um arranjo em termos de ritmo para dar nuances diferentes. Foi mais um trabalho de economia, retirar o que pudesse interromper o filme, foi mais essa a orientação.

KN: Quanto ao trabalho da Raquel Castro, a relação que se criou entre realizadora e atriz e a forma como ela encarna esta personagem, de uma pessoa que está numa espécie de pausa na vida, é bastante intensa. Há também uma contraposição com os outros filmes, sendo o primeiro com argumento escrito, era algo de que sentia falta?

SN: Foi muito interessante, eu não vi mais ninguém. Foi um casting único, foi o André Silva Santos, assistente de realização do filme, que me sugeriu a Raquel depois de ter visto um vídeo com ela e eu achei que sim. O André já conhecia o argumento e achou que a Raquel seria interessante. Encontrámo-nos, conversámos, e havia algumas coisas da sua história de vida que me deram alguma garantia que havia um background bom para se trabalhar a personagem. O facto de ter sido enfermeira, de ser mãe… A partir daí tive uma confiança de que conseguiríamos fazer o trabalho juntas e avançarmos. Fiquei bastante satisfeita, acho complicado lançar expectativas com atores naqueles castings enormes, que são importantes, mas foi bom não ter de entrar nesse domínio. Fui muito feliz porque fez mais sentido assim, e fortaleceu a confiança da Raquel no trabalho.

O processo da Raquel com a personagem foi bastante vivo, não houve uma receita imediata do argumento que se impôs desde o início para ser executada na rodagem. Estava sempre qualquer coisa a funcionar, ela ia fazendo as suas tentativas. Nós rodámos dois meses, e a partir do meio da rodagem ela estava já quase completamente autónoma.

FG: E já está a ser pensado um próximo filme…?

SN: Sim, já há uma ideia. Gostava muito de continuar do trabalho com a Raquel, ainda neste trilho da vida de uma mulher…

Flávio Gonçalves, Kenia Pollheim Nunes e Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Cidade Rabat, de Susana Nobre © Paulo Menezes]

Filme de João Canijo, Viver Mal, entre os destaques da secção Encounters na 73.ª Berlinale

O Festival Internacional de Cinema de Berlim, a acontecer entre 16 e 26 de fevereiro, já tem a sua programação disponível. Ano após ano, as nove secções do Festival espalham-se por mais de 20 espaços icónicos da capital Alemã, e o primeiro ano sem restrições pós-pandemia promete o regresso da Berlinale a todo o gás, incluindo a estreia de um díptico de João Canijo.

A programação inclui mais de 400 filmes ao longo de dez dias de Festival. Entre eles, 16 filmes fazem parte da secção competitiva Encounters, estabelecida em 2020 como contraponto da Competição Oficial. Dedicada a “novas visões cinematográficas, esta dá destaque a autores inovadores, cujos filmes se diferenciam na estética e estrutura.  Ficção e documentário partilham espaço nesta secção que pretende “ser um espelho dos diferentes modos de produção (…) e refletir a energia vibrante do século XXI”.

Entre primeiros filmes de novos realizadores – Adentro mío estoy bailando, de Leandro Koch, Paloma Schachmann; Kletka ishet ptitsu, de Malika Musaeva; Mummola, de Tia Kouvo; Orlando, ma biographie politique, de Paulo B. Preciado; Xue yun, de Wu Lang – e obras de autores já consagrados como o coreano Hong Sangsoo, bem como o americano Dustin Guy Defa ou a germano-curda Ayşe Polat, a secção abrange, ainda,  filmes advindos da Europa, das Américas e Ásia.

Mummola, de Tia Kouvo © Sami Kuokkanen / Aamu Filmcompany

Destaca-se, ainda nesta secção, o cinema português com uma dose dupla de João Canijo, a primeira desde que Alain Resnais levou o díptico Smoking/No Smoking ao Festival em 1994. Desta feita, o realizador português concorre ao Urso de Ouro com Mal Viver e traz à Encounters o seu contracampo, Viver Mal. O filme foca-se em três grupos de hóspedes do mesmo hotel de Mal Viver, arrastando as mulheres que o gerem para uma teia de conflitos protagonizados por grandes nomes do cinema português como Nuno Lopes e Filipa Areosa; Leonor Silveira, Rafael Morais e Lia Carvalho; Beatriz Batarda, Leonor Vasconcelos e Carolina Amaral.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Viver Mal, de João Canijo © Midas Filmes]

Lobo e Cão, do mar e do “entre”

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão, estreou a 8 de dezembro, em solo português. À boleia da tempestade, a realizadora portuense foi apresentar à sala esgotada do Cinema Ideal o filme que recebeu o prémio principal da secção Giornate degli Autori, paralela ao Festival de Veneza. “Hipnotizante” e “importante” foram as palavras que o júri, presidido por Céline Sciamma, convocaram para o descrever.

Do latim insula veio a italiana isola – lugar de exílio, ermo, cortiço… ou ilha.  Ana e Luís são dois adolescentes que vivem num pedaço de terra cercado, por todos os lados, pelo Oceano Atlântico. As suas dinâmicas sociais e familiares são exploradas com vagar em São Miguel que se revela, em Lobo e Cão, uma ilha de tradições marcadas, de cultos inexoráveis e de um isolamento que faz questionar se o acto de querer será, também, pecado. 

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

Lobo e Cão manifesta-se na desconstrução do binarismo e na (con)fusão de dicotomias num coming-of-age que, de facto, hipnotiza. Cláudia Varejão descreveu-o como um “filme-coral”, que nos parece acertado: na base do coral, Ana, a nossa personagem principal que carrega no seu âmago uma introspecção determinada que só a adolescência permite; nos “tentáculos”, cada um dos pedaços de vida que vamos, aos poucos, explorando. 

Assim, chegam-nos em mosaicos a lassidão de ser-se filha do meio, entre dois irmãos rapazes, e a relação ora maternal, ora vulnerável – algo tão simples como pedir ajuda para se abrir um cadeado pode ser um statement de remissão. A amizade com Luís abre portas para conhecermos um mundo subterrâneo de afeto e camaradagem entre a comunidade queer que Lobo e Cão resgata do apagamento a que é fadada, mostrando que, mesmo nestas isolas, a existência de um lugar seguro é alcançável. A chegada de Cléo, amiga emigrada no Canadá, que traz nas mechas de cabelo rosa o vendaval de uma juventude despudorada, desperta em Ana um querer tão forte que a desprende do embaraço.

Cláudia Varejão cede, num argumento que é mais forte em motif que trama, uma história preciosa de afirmação juvenil – em Ana, a dualidade contraditória entre querer e fazer, que lhe é desmontada pelo padre hippie que lidera as comunhões (“querer é fazer acontecer”); em Luís, a libertação em poder ser quem é e vestir o que quiser junto dos amigos e da mãe, e, ao mesmo tempo, a repressão da tradição em que continua a participar, mesmo sem caber nos seus moldes. Num dos momentos de maior tensão, Luís encontra-se na caminhada tradicional dos Romeiros, de que faz parte com o seu pai, cuja cara soturna e marcada é sinónimo de um trabalho árduo e viril, antónimo da sua.

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

A cinematografia é exímia, os planos aproximados e enquadramentos invulgares contribuem para a sensação de claustrofobia que a ilha pode causar. O Oceano pontua a ação, sendo personagem presente em todos os momentos importantes – começa repressivo e acaba libertador; é ele que dá e ele que tira, é entreposto, ponto de crime e de fuga, manifestação omnisciente que observa. O trabalho de sonoplastia insigne também se destaca: reproduz o que escutamos no mergulho e emite, em vários pontos da trama, um pranto misterioso e medonho que só poderia vir do fundo do mar.

A técnica está lá também nas atuações dos não-atores que permeiam a película: há um minimalismo inerente nas atuações que se revelam autênticas. O trabalho da procura destes atores, que Varejão descreve como “extenuante”, certamente compensou, sobretudo com a escolha de Ana Cabral, cujo silêncio tímido conquista desde a primeira cena, segurando algumas das pontas que o ritmo vagaroso do filme acaba por deixar esvoaçar.

Este esvoaçar, no entanto, não é pejorativo. Lobo e Cão encontra a sua potência no não-dito: entre o selvagem e o domesticado, entre o feminino e masculino, entre a tradição e a modernidade… é no vazio entre cada um dos binómios que se encontra o espaço necessário para crescer e afirmar a identidade, para a experimentação. Se a adolescência é um limbo desajeitado onde o bem, o mal, o desejo e o indizível são peças do mosaico, é no “entre” que principiam todas as possibilidades. 

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados]

As ilhas em que habitamos – Lobo e Cão de Cláudia Varejão

Ao longo das nossas vidas, vestimos diferentes papéis sociais, criamos as nossas ficções e expressamo-nos com a liberdade e diversidade a que o nosso desejo nos impele. Cada um de nós, vive e sobrevive com os respectivos medos e vontades, muitas vezes limitadas pelos preconceitos instalados na conduta humana e nas relações com os outros. Todas estas questões são convocadas no mais recente filme de Cláudia Varejão.

Tudo começou em 2016, quando a realizadora foi convidada para uma residência artística nos Açores, mais propriamente na zona alta de Rabo de Peixe em São Miguel. A localidade açoriana, conhecida por ser uma das mais pobres da Europa, foi o lugar onde Varejão encontrou a imagem improvável que serviu de mote para o filme: ao descer à vila piscatória, enquanto observava os pescadores que ali trabalhavam, viu aproximar-se daqueles, um grupo de raparigas transsexuais. Virilidade e vulnerabilidade, o que entendemos por masculino e feminino, cruzavam-se perante o olhar da realizadora que viu nesse cenário o conflito a explorar no filme. Desse encontro com os jovens da ilha, nasceu o impulso para a realização de Lobo e Cão (2022), título que já aponta para essa dicotomia que o filme procura perceber e desconstruir.

Daqui se denota toda a carga social que o filme carrega e que também o ultrapassa. Deste projecto, nasceu uma associação de apoio aos jovens LGBT da ilha e às suas famílias. Com um conjunto de psicólogos foram desenvolvidos psicodramas que ajudaram estas pessoas a perceber melhor o lugar do outro e a pensar a multiplicidade de formas existentes em cada um, servindo também de base para a escrita do argumento. Após este trabalho, partindo das histórias pessoais daqueles jovens e ainda das próprias vivências e memórias da realizadora, esta começou a escrever a narrativa que nos havia de guiar por este período fugaz da vida destes jovens.

Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados

Ana e Luís, protagonistas deste filme, poderiam ser o lobo e o cão, numa troca e mistura de papéis sociais e normas para o que é entendido ser uma pessoa do sexo feminino e do sexo masculino. Ana talvez não seja cão, mas antes o lobo que procura ser selvagem e Luís talvez não seja o lobo que querem que ele seja, mas talvez o cão que precisa de afecto e do abraço materno. E talvez tudo se troque, tudo se confunda e nenhum deles seja lobo nem cão.

No meio do oceano atlântico, o mar surge como horizonte metafórico de fuga e liberdade. Ana é a filha do meio de três irmãos e lida com a opressão que sente aos seus desejos e à sua liberdade. Lida com os códigos que lhe são impostos, diz não saber o que significa pecar, nem o que é o bem e o mal. Luís expressa-se da forma que o faz sentir mais livre e lida com as consequências da moral conservadora da sua família e amigos.

O filme de Cláudia Varejão é claro naquilo que pretende mostrar. Dois jovens são obrigados a viver segundo os padrões normativos da sociedade, sentindo-se oprimidos num código moral com que não se identificam. Infelizes e não conseguindo viver a sua identidade em pleno, procuram vivê-la da forma possível e o filme, criando a distância que nos permite o pensamento sobre as particularidades de cada género, torna-se uma viagem que possibilita ao espectador acompanhar essas descobertas. Notamos na vivacidade das cores da fotografia do filme, o desejo inerente e contido que “não cabe na ilha”, mas que Luís e Ana transportam consigo. 

Contudo, e apesar de algumas ideias visuais interessantes, sente-se falta de alguma subtileza e engenho para evitar que o filme se torne disperso na construção narrativa de algumas personagens (algo que se poderá dever a escolhas de montagem ou da própria rodagem), e que fizesse o filme transcender mais as suas temáticas. Ainda assim, Lobo e Cão é um retrato comovente e importante daquela comunidade e que nos põe a questionar as limitações que são impostas à nossa identidade.

Ricardo Fangueiro

Entrevista a Cláudia Varejão

9 de Dezembro, Lisboa

© Direitos Reservados

O filme tem um peso social muito grande, pelas temáticas de que se aproxima e pelo trabalho feito junto da comunidade da ilha de São Miguel, em particular dos jovens queer/LGBT e das suas famílias. Como é que se articula essa vontade em ajudar aquelas pessoas com a criação de um objecto artístico como é um filme?

O filme parte de uma curiosidade. Neste caso de uma curiosidade observacional. Eu venho mais do documentário, trabalho com pessoas e aquele território interessou-me muito, porque é um território, diria, muito português. Portanto, com heranças judaico cristãs muito presentes no quotidiano e na sociedade, mas ao mesmo tempo um território onde o momento histórico e a vida contemporânea também está presente. As novas gerações trazem isso: uma liberdade de expressão, de expressão de género que aqui é muito importante. Esta questão: o que é o género? O feminino e o masculino e todos os outros géneros que cada vez nós nos permitimos mais a explorar, a validar, a integrar na sociedade… todos estes elementos estavam presentes na ilha, logo desde início. 

Portanto interessou-me muito este território isolado no mar, que tinha todos estes elementos que todos conhecemos. Só que ali era possível circunscrever a um espaço geográfico e depois de eu ver aquela cena na doca piscatória dos pescadores a falarem com miúdas transsexuais e todo esse universo polarizado, levantou-me muita curiosidade. Eu acho que a curiosidade é o motor da criação, de querer conhecer, de querer saber mais, ir à procura de respostas, e quanto mais respostas temos mais perguntas temos, não tem fim… Eu não utilizaria a palavra “ajudar”, mas “participar” na construção de melhores vidas para a comunidade. A partir do momento em que eu queria trabalhar com eles, com pessoas de lá e não levar actores, percebi que não podia não me envolver na vida real destas pessoas e a vida destes jovens é ainda uma vida cheia de sofrimento, cheia de medo… Ser adolescente é isso, mas ser adolescente queer ainda mais. É redobrado o receio de ser diferente, o receio de não pertencer, de exclusão. Quando eu fui percebendo que isto era muito latente e que causava muito sofrimento na população, foi aí que me comecei a envolver num lado mais activista. Tentei ajudar a criar este primeiro centro de apoio a pessoas LGBT e às famílias, mas este lado de trabalhar socialmente com as pessoas não foi o ponto de partida. Foi uma necessidade que apareceu durante o processo e que eu integrei. 

Agora sem dúvida que o cinema e a arte em geral têm uma participação activa na vida das pessoas. Claro que os filmes podem ajudar, desde logo a que as pessoas se sintam representadas, validadas, entendidas, e isso pode empoderar a vida das pessoas, pode dar chão, pode dar afecto. Isto acontece com um filme como pode acontecer com uma fotografia numa exposição, com a música que nós ouvimos e que tem uma letra que parece que foi feita para nós. Isso é o lado que não tem valor. A arte não tem valor nesse sentido. É um valor enorme, um valor humano, de vida, que transcende o valor financeiro, a urgência financeira, o financiamento para a cultura, enfim…

A arte pode ser vista como um espelho da realidade e parece-me que o cinema ajuda a criar a distância necessária para perceber coisas que nem sempre são fáceis de perceber para quem sempre viveu com certas narrativas instaladas. Acreditas que o cinema/os filmes/a arte têm essa capacidade de nos ajudar a ver melhor a realidade?

O cinema é um exercício fabuloso que nos permite uma certa distância, como ponto de partida. Nós estamos distantes do ecrã, distantes do filme e portanto vemos de fora. Mas depois há um espelhamento da vida e somos convocados para dentro. Estes dois movimentos opostos têm uma força enorme, uma força de reflexão, de pensamento e de sentir. Nós sentimos muito quando vemos, quando vemos em silêncio e quando vemos de fora. E depois há momentos de clarividência neste processo de observação. E isto é também aquilo que eu vivo quando estou a fazer, eu estou a olhar para algo, de alguma forma estou de fora, mas estou implicada nessa realidade. Tenho um olhar de relação com a realidade. Eu tenho esta experiência ao fazer que depois também acaba por se sentir nos filmes. Eu não imagino a vida sem estas ferramentas dos filmes, dos livros, da música, porque são momentos de encontro, quase como ir à igreja. São momentos de encontros espirituais, filosóficos, psicológicos em que nós nos permitimos sentir e estar em contacto com o nosso mundo interior, porque a vida é absurda. A vida é absurda. Nós estamos sempre em movimento e a cumprir papéis sociais e a cumprir tarefas, vidas académicas e vidas profissionais. E isto é para quê? Para sobreviver, para fazer parte. E a arte permite-nos reflectir um bocadinho neste absurdo da vida e o cinema, eu sou suspeita, diria que é a forma mais rica de criação, porque a vida é muito real dentro dos filmes. E isso é incrível, é uma ferramenta, é uma arma e uma arma política também, porque é uma arma de transformação. O nosso olhar enquanto vê um filme transforma-se, reencontra-se, conecta-se e depois trazemos isto tudo cá para fora, para a vida. Nós saímos tocados dos filmes, uns mais, outros menos. Mas mesmo aqueles nos quais nós não nos encontramos, validam aquilo que nós não queremos. Portanto é sempre um lugar de encontro e construção da nossa própria identidade.

Trabalhas junto da comunidade com não-actores ou actores não profissionais. Poderias ter feito este filme com actores profissionais? Até que ponto é realmente necessário essa proximidade das pessoas filmadas ao papel que representam?

Era possível, mas não era eu certamente. Tudo é possível no cinema, não existem impossíveis. Existem infinitas formas para o ofício, para se fazer…

Esta pergunta tem uma ramificação, que é perceber que cuidados é preciso ter para que o método não seja demasiado invasivo da intimidade destas pessoas? Pelo que contavas na sessão de ontem eles próprios já se confundiam com a personagem que interpretavam.

Acho que é preciso um cuidado extra, porque não existe a proteção nem o treino que os actores têm. Os actores têm treino para entrar numa personagem e saber sair dela. Isto é um trabalho impressionante. Um actor não profissional não tem estas defesas, por isso eu acho que redobra o cuidado não só do realizador, mas de toda a equipa, de proteção, de ajudar as pessoas a entrar e a sair, de ajudá-las a ir para casa depois. O que levas para casa é a experiência que tiveste, mas não levas a personagem. É preciso outra atenção e nesse sentido eu tive muita ajuda. Eu tive ajuda de psicólogos, ajuda de uma equipa que é muito experiente. Quase todas as pessoas que me estavam a acompanhar já tinham feito muitos filmes, portanto havia muita atenção a isso. Falamos todos sobre isso, de como era importante estar atento às pessoas e protege-las da dinâmica do cinema. Às vezes no plateau somos muito agressivos, brutos, temos uma série de coisas adquiridas que as pessoas não entendem. Tem que haver outra atenção e outro cuidado.

Apesar de tudo, o filme parece-me bastante positivo, luminoso, colorido…

Sim, porque isso estava lá na ilha. Estava nestas pessoas.

 …mas gostava de falar de duas cenas em particular que me parecem ser as mais violentas do filme: a cena da romaria em que o pai ataca Luís e o insulta e a cena em que a gente da ilha parece tentar converter Luís através de todo aquele ritual divino.

Quão difícil é representar a homofobia e como é feito esse trabalho com não actores? E de que forma é que isso ajuda a exorcizar preconceitos? 

É uma pergunta muito interessante, porque eu também tinha muito essa dúvida. Como é que eu vou fazer estas cenas sem ser a trabalhar com pessoas que são realmente homofóbicas? É o movimento oposto. É trabalhar com as pessoas que têm o olhar de integração da diversidade, mas com a consciência de que existe a agressão, que existe o fechamento, o conservadorismo, existe a violência. Foi a partir de um lugar bom, de pessoas boas para representar aquilo que nós não desejamos, mas que sabemos que existe e que já vimos ou sentimos. E estas pessoas, estes adultos trouxeram isso. Este pai do Luís tem isso. O pai do Luís é um homem bom. 

…Acho que também se nota isso na sua interpretação. A dificuldade que ele tem a exercer aquela violência…

Sim, ele faz aquilo como as próprias pessoas fóbicas. Elas fazem por embrutecimento da vida e parece que vemos uma humanidade lá dentro. No gesto da violência – isto é um paradoxo – vemos uma inversão da humanidade. Portanto, ela está lá. Não dá para representar uma coisa sem representar o seu oposto. Este foi o processo de trabalhar com estas pessoas. Essa luz está sempre lá, mas as pessoas estão revoltadas pelo medo, pelo medo da não pertença.

Já tiveste reações mais negativas ao filme por parte de pessoas mais preconceituosas ou homofóbicas?

            Não. Agora saímos desta sessão com escolas e, nas partes de mais intimidade entre as miúdas, sente-se o comentário, o riso nervoso, um silêncio envergonhado… Que não deixam de ser preconceitos, um lugar de pré-conceito da nossa educação, ainda de estranheza daquilo que sai da norma, deste lado mais hétero normativo da sociedade e sinto esse desconforto nos olhares, mas não de uma forma agressiva e espero não vivê-la.

Vês a própria ilha como algo simbólico da condição em que se encontram estes jovens? Essa vontade de sair da ilha e alcançar outra liberdade longe daquela bolha.

Claro. Acho que a ilha é uma metáfora para as ilhas em que todos vivemos, não só as pessoas queer. Nós todos nos sentimos em ilhas. Agora nesta sessão perguntou-se a certa altura “quem é que aqui se sente numa ilha?” e os braços levantados eram da maioria das pessoas na sala. Nós todos, de alguma forma, nos sentimos sós. Talvez seja esta a condição do ser humano. Nascemos e morremos sozinhos. E há um enorme sentido de solidão nesta ideia de ilha. Nós somos a ilha. E eu acho que o filme é muito aberto nesse sentido. Não é um filme queer. É muito mais sobre a condição humana de sermos todos tão diversos e termos tanto receio de não conseguir pertencer no dia-a-dia, à sociedade, a este teatro todo que é construído. Isto é um grande teatro. Os papéis sociais, as profissões, os papéis familiares… Isto é uma grande encenação e nós fomos educados logo de início.

Estamos sempre em ficção…

Estamos e já que é para estar em ficção, então que sejamos mais livres na ficção. Acho que é isso que o filme convoca. Já que é para ser um teatro a vida toda, então vamos experimentar vários papéis. E o ser humano permite-se pouco a experimentar diferentes máscaras e isso é que acho que provoca grande sofrimento na vida. Somos educados a ser uma coisa e a escolher ser uma coisa. E nós somos muitas coisas diferentes ao longo da vida. Estamos sempre a mudar, mas estamos sempre com medo de experimentar ser diferentes do que éramos ontem, como se isto fosse incoerente… e não é, porque nós somos uma multiplicidade de coisas. E por isso é que é muito interessante trabalhar com não-actores, porque as pessoas são muito mais autênticas. Como não têm este jogo profissional, descobrem dentro delas várias vozes e isto é um processo infinito de encontro com os mundos interiores.

Como é que vês a questão da identidade de cada um e a diversidade de que somos feitos? Porquê que achas que ainda existe a necessidade da dicotomia masculino/feminino?

Acho que é um perigo para a sociedade sairmos de um jogo que está tão profundamente instalado. Isto destrói todas as nossas convicções. Isto dá muito medo, sobretudo ao poder. Se de repente passamos todos a ser queer, ser gays, trans, diversos… isto questiona todo este sistema. O poder vem de cima, não vem de dentro. Isto é a grande luta social. Acho que é daí que vem o preconceito e acho que vem bastante da religião, porque é uma narrativa muito vincada: o homem, a mulher, a procriação. Isto questiona tudo, tudo aquilo que nos foi ensinado. Questiona esta ideia de família mais fechada, do pai, da mãe e dos filhos… questiona muita coisa, não só a própria identidade, como a própria ideia de desejo e orientação sexual. Levanta tantas perguntas, põe tanto em causa que é um perigo. É um perigo e depois permitimo-nos muito pouco. Acho que temos todos muito medo do que acontece se não correspondermos ao esperado. O que me vai acontecer? Será que vou ter lugar na sociedade? Será que vou ter trabalho? Será que vou saber quem sou? Vou-me perder? E depois como é que me volto a encontrar? Isto levanta muitos medos.

Como no texto da Clarice Lispector que leste…

“Se eu fosse eu?” Se a gente pensar seriamente sobre isto, percebe que nós não sabemos e que nunca nos permitimos. Ficamos assustados com o que temos andado a fazer, mas eu acho que é um bom exercício fazermos mais vezes esta pergunta: se eu fosse eu o que diria nesta situação? Se eu fosse realmente eu, o que eu sinto, o que respondia? A maior parte das vezes ficamos pelo pensamento, mas se experimentássemos ser, que rico que seria…

De um ponto de vista formal, tens vontade de manter este método de fazer cinema no futuro ou vais procurar experimentar novas formas de construir narrativas, novas formas de mostrar aquilo que pretendes? Tens vontade de continuar a trabalhar perto de comunidades/grupos de pessoas?

            Eu acho que já estava a trabalhar bastante neste sentido de trabalhar a realidade, mas com ideias formais que construo com as pessoas. Sem dúvida, o meu grande prazer são as pessoas. Eu sinto-me uma amadora. O tempo passa e eu tenho cada vez menos certezas. Tenho muitas dúvidas e gosto muito de experimentar e sinto-me mais segura a experimentar com as pessoas do que com actores, porque estes trazem-me sempre tantas seguranças e convicções que eu fico assustada, sinto-me diminuída. Gosto muito da liberdade deste lugar de experimentação a partir do real.

Entrevista a Cláudia Varejão conduzida por Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Lobo e Cão (2022), de Cláudia Varejão © Direitos Reservados]

Alma Viva: Entrevista com Cristèle Alves Meira

Por altura da estreia de Alma Viva, o mais recente trabalho de Cristèle Alves Meira, tivemos a oportunidade de falar um pouco com a realizadora. Alma Viva é um regresso às origens da realizadora, filha de emigrantes portugueses em França, e mostra-nos, num registo assombroso e místico, a relação espiritual entre Salomé e a sua avó, no momento em que esta se aproxima da morte.

A herança mística que é transmitida de avó para neta é o motor da acção, aquilo que põe Salomé em movimento e que a faz entrar em conflito com o seu universo íntimo e familiar. Alma Viva toca no tema da emigração, dos rituais tradicionais, das tensões entre a população da aldeia, e faz-nos olhar para uma realidade ficcionada, para uma terra que nos parece próxima e familiar (o filme foi filmado numa aldeia em Trás-os-montes, terra da mãe da realizadora), mas que é fruto de sonhos, memórias e matéria do inconsciente. 

No equilíbrio entre o realismo da mise-en-scène e o lado fantástico e ascético que envolve a história, reside parte do encanto deste filme que faz encarnar na pequena Salomé, não só a alma da avó, como uma energia sobrenatural que nos mostra o lado mais enigmático da paisagem transmontana.

Alma Viva é um olhar fresco sobre o interior do país, sobretudo, porque não tem ambições antropológicas e serve-se de um imaginário criado pela autora para atingir camadas mais profundas da realidade.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Entrevista com Cristèle Alves Meira

Cristèle Alves Meira

De onde surge o impulso para fazer este filme? Calculo que tenha um lado autobiográfico e que tenha origem num desejo de voltar a olhar para estas pessoas e estes lugares, para onde voltava todos os verões com a sua família.

É engraçado, porque muitas vezes dizem que é autobiográfico, mas o filme é uma ficção pura. Há um lado autobiográfico por conhecer aqueles décors, estar envolvida de forma mais íntima com as pessoas que aparecem na imagem e com as histórias que vou contar, mas o filme é uma ficção pura. É um filme de género quase fantástico, mas o que dá aquele ar autobiográfico é a minha opção de tornar as coisas muito realistas na forma de filmar, na forma de falar… e para mim é muito interessante, porque o público agarra no filme como se este fosse antropológico, mas na verdade essa aldeia não existe e essas pessoas não existem. Isso tudo é ficção do cinema e cada quadro, cada rosto foi exposto a uma sublimação de luz, de enquadramento e de pensamento de encenação. Aquela aldeia não existe, aqueles céus estrelados não existem, a câmara não consegue filmar aqueles céus estrelados, aqueles sons… Quando filmamos não havia nenhum insecto, não havia nenhum animal e tivemos que criar aquele ambiente sonoro, que tem que ver também com a minha vontade de criar um ambiente um pouco mágico, sobrenatural, com a presença de animais particulares que podem criar essa tensão dramática.

Quando falava em lado autobiográfico referia-me mais a essa vontade de replicar certas memórias, aspectos e vivências.

Sim, tem uma parte autobiográfica, mas é limitado pensar que é só isso, porque demorei muito tempo a encontrar a história. Sabia que queria contar a história de uma avó e de uma neta, mas a neta durante muito tempo era uma adolescente. Salomé, a protagonista, voltou a ser criança no final da escrita do argumento e depois também demorei bastante tempo a perceber qual era o equilíbrio entre as crises familiares. Queria contar as crises dessa família, a forma como vivem o luto, o momento das partilhas e essas famílias divididas entre aqueles que partiram e regressam com um poder económico muito grande e aqueles que ficaram e que sentem um complexo de inferioridade. Queria contar a família, mas não sabia no argumento o que era mais importante. Quando soube que o mais importante era a relação entre uma avó e uma neta e uma transmissão mística de um saber esotérico, aí é que comecei mesmo a tocar no assunto do filme. Mas não foi fácil, porque estava confrontada com dois tabus, o da morte e o da bruxaria, e no início ficava a tremer perante a palavra “bruxa”. Será que podia falar sobre isso?  Pesquisei muito, de forma quase antropológica. Fui ler livros sobre bruxaria em Portugal e também fui ler coisas em França, porque há uma parte em França onde há muita bruxaria. Houve um rapaz muito importante que se chama Jorge Dias, um jovem imigrante, estudante de mestrado na universidade em Lyon que fez a tese sobre a avó dele que é bruxa. Esse foi um encontro muito importante para mim, porque ele inscreveu na tese a relação que ele tinha com a avó quando regressava no verão e a via ter capacidades de médium. Foi quando li a tese dele que pensei que também poderia assumir esse tipo de temática. Havia uma vontade de falar da relação dos vivos com os mortos e da transmissão entre uma avó e uma neta. Mas, depois, para chegar lá foi um processo bastante grande de escrita da narrativa.

Esse lado espiritual descobriste com o filme? Ou já tinhas essas memórias associadas àquele local?

Já nasci numa família onde o oculto estava presente… era normal curar-se com plantas… e desde criança sempre ouvi os adultos falar sobre histórias muito estranhas de bruxas, maldades, mau olhado … e isso lembro-me que me fascinava e ao mesmo tempo aterrorizava-me. E acho que o filme está a tentar transmitir essa contradição que esse tipo de história pode criar em nós. Fascínio e terror. O que acho bastante singular é que o demónio nessa história é uma pessoa que amamos. Porque muitas vezes nos filmes de terror há muitas histórias de pessoas que são possuídas pelo demónio, que são temáticas clássicas do género fantástico, mas aqui a particularidade é que se trata da avó amada, a querida avó. Isso é que cria ali uma confusão entre amor e sofrimento, luz e obscuridade, e também a forma realista de tratar do assunto, porque, muitas vezes, nos filmes americanos ou nos teenage movies são temáticas que vemos sempre. Só que neste filme estamos num lado muito realista e muito envolvido numa comunidade. Se analisarmos bem, os rituais no filme foram completamente inventados, porque reparei também nas minhas pesquisas que cada praticante ou bruxo/a, ou curador, médium, (eles têm vários nomes), cada um tem a sua própria prática e vão buscar símbolos a várias culturas. Não há nenhum livro que diga que a magia vai ser assim e vai ser assim que vamos proceder, cada um vai ali fazer a sua receita e eu pensei a mesma coisa. Qual seria a receita do nosso filme? Então fui buscar São Jorge, fui buscar os cigarros, que é uma prática mais do xamanismo. Em Portugal nunca vi bruxos nenhuns usar cigarros, mas é uma mistura de rituais para criar uma realidade que é uma realidade de ficção para esse filme.

Acaba por ser um universo construído a partir das tuas vivências e referências. Contudo, de que forma é que a realidade que encontraste invadiu a narrativa inicial?

O que mais transforma a escrita é a encarnação dos actores. Quando comecei mesmo a escolher os actores, a personagem transforma-se num corpo, numa voz, numa pessoa concreta que vai entrar naquele papel. Isso transforma a escrita e cada vez que acontece vou também buscar muito da realidade do actor que escolhi, para pôr nas cenas e na personagem. Por exemplo, a personagem da avó era, no argumento, uma avó muito mais austera, menos excêntrica e colorida, e a Ester Catalão foi um encontro incrível, porque ela tem essa liberdade, sensualidade, essa luz que transformou o papel da avó. E isso aconteceu com várias personagens, como com a protagonista, a Lua Michel. Quando escrevi, a personagem tinha onze anos e quando filmei ela só tinha oito. Então isso transformou a personagem. Por exemplo, o facto de conhecer o Duarte Pina de O Invisível Herói (2019), a outra curta que fiz com ele, e de saber que ele tinha capacidades de cantar, pensei: “vou pôr um grupo de músicos no meu argumento”. Então, foi o facto de conhecer esse actor e as suas capacidades instrumentais que fez nascer esse lado na personagem.

A única coisa que tento é guardar uma espontaneidade, por isso não ensaio muito com os actores, e os actores não profissionais não vão ler o texto, ter o argumento na mão, para não estarem ali a fingir. Passo muito tempo a falar com eles a explicar qual vai ser a história, a situação, mais ou menos o que eles têm de dizer… e depois eles dizem com as palavras deles, mas quase sempre é parecido com o que eu escrevi, porque escrevi a pensar neles. A metodologia é observar e conhecer muito bem as pessoas com quem vou trabalhar. Por exemplo a Marta Quina, a personagem da Gracinda, eu já sabia como ela falava, porque já a conheço. Dizia-lhe: “Oh marta, a marta vai subir as escadas, mas está muito zangada, porque os cães estiveram a dar cabo dos tomates” e já sabia que ela tinha aquela capacidade, porque na vida real ela tem essa energia. Era só dizer acção. E é bastante realista, porque sei que ela é assim. Depois com a Ester Catalão já era outra metodologia. Trabalhamos com um auricular porque muitas vezes ela esquecia-se de coisas… na verdade cada pessoa tem uma metodologia diferente.

Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes

Ao ver a Lua Michel no filme, parece ter sido um casting certeiro. No entanto, ela sempre esteve ali ao teu lado. Foi uma escolha óbvia?

Cometi o erro de a ter filmado noutros filmes, mas cortei-a sempre na montagem. Ela entrou no Sol Branco (2015) como um bebé, depois entrou no Campo de Víboras (2016) tinha três anos e no Invisível Herói tinha 5 ou 6. E a cada vez foi cortada na montagem. Quando chegou aos seis anos ela disse: “Mamã, estás sempre a cortar-me” (risos). Foi outra amiga minha que a revelou num filme, porque ela estava à procura de uma criança para o filme dela e disse-lhe: “Se calhar vou-te mandar a Lua em casting, porque sempre a cortei na montagem e desta vez é um papel principal, por isso se gostares dela, já vai ter um papel onde não está cortada”. Depois desse filme, ela foi muito felicitada em festivais, ganhou prémios com essa curta e aí apercebi-me que tinha uma actriz ao meu lado e pensei porque não seria ela. Decidi então que o papel ficasse mais jovem, mas ela tem uma maturidade que nem percebemos bem a idade dela.

O filme conta com poucos actores profissionais e foca-se mais no trabalho feito com a população da aldeia. Como é que foi feita essa articulação no trabalho das personagens?

Os actores profissionais são muito importantes, mesmo que minoritários. Temos a Ana Padrão, a Jacqueline Corado, Catherine Salée, Valdemar Santos, Pedro Lacerda e o Nuno Gil.  A Ana Padrão é originária de uma aldeia ali perto e aceitou rememorar e lidar de novo com as suas origens. Isso foi muito importante, porque ela foi buscar lembranças das tias, da avó e ajudou-me a enriquecer os diálogos com palavras mesmo locais. Durante os ensaios, dias antes, ela ficou a dormir na casa da avó, porque é numa aldeia perto e perguntava: “Como é que dirias aquela palavra? Quando chove, como é que dirias?”. Fez esse trabalho para voltar a essa forma de falar e todo um trabalho do corpo, da fisicalidade, porque o seu papel é mesmo de uma pessoa de aldeia, que trabalha a terra e encarna uma masculinidade que foi buscar e que não tem nada que ver com os papéis que a Ana faz normalmente. Fico muito emocionada com a generosidade com que ela se envolveu neste projecto. É uma enorme actriz. Já tínhamos tido uma experiência juntas, fizemos o Campo de Víboras juntas, que já era um papel similar nas mesmas aldeias e isso ajudou a desenvolver a confiança. Mas nesse filme ela trabalhava uma parte mais feminina, enquanto neste ressalta um lado mais masculino.

Apesar de assombroso e fantasmagórico, o filme conserva um lado cómico. Era importante para ti realçar esse aspecto?

Sim, muito importante. A comédia, o lado mais cómico, quase burlesco, estava presente desde as primeiras linhas, porque é a forma que tenho de mostrar o carinho que tenho por estas situações extremas do ser humano, crises, guerras entre vizinhos… aquilo é tão excessivo que dá para rir e o cinema permite essa mise-en-scène, esse tom mais cómico. E não foi fácil no momento do financiamento do filme, porque apontavam esse aspecto aparentemente incoerente de, numa mesma cena, tão dramática, chegar aquele momento em que se torna tragicomédia. O desafio era enorme. Diziam que não era possível criar lágrimas e ao mesmo tempo mostrar aquela situação quase absurda. Mas sabia que na vida isso acontece. E a comédia permite uma certa crítica simpática sobre o lado materialista da emigração. Então aproveitei essa tonalidade mais cómica para dizer: “Bom, não acham que às vezes é um bocado absurdo quererem exibir as vossas riquezas?” (risos), como nas cenas em que trazem prendas, porque é um sinal de sucesso da vida lá fora. É uma forma de os infantilizar e apontar coisas mais subtis da realidade da vida dos emigrantes.

A tua formação foi toda feita em França?

Nunca vivi em Portugal. A minha formação foi para actriz. Antes de fazer cinema fiz teatro durante dez anos e depois tirei o mestrado em teatro. Nunca fiz escola de cinema, mas para escrever o Alma Viva tive um ano na escola La Fémis, para escrever o argumento. Sozinha teria sido impossível. Agora também escrevo para outras pessoas…

Pergunto isto, porque reparei no ritmo particular do filme. Estava à espera de mais densidade e mistério em algumas cenas. Como o filme tem um lado fantasmagórico, estava à espera de sentir outra densidade no tempo, na atmosfera, no som das cenas… Qual é a tua relação com o cinema português?

Na verdade, para este filme não tenho referências portuguesas. Claro que vejo cinema português, mas não foi a ele que fui buscar as referências para fazer o Alma Viva. Tem mais que ver com o cinema italiano, neo-realismo, Ettore Scola, cinema espanhol, Carlos Saura… o Cria Cuervos (1976) foi o filme que mais me acompanhou. E nos filmes mais contemporâneos foi a Alice Rohrwacher ou o La Cienaga (2001) da Lucrecia Martel, muito pela forma de filmar um grupo, uma família num lugar fechado e a Lucrecia é uma rainha, um génio da encenação. Na duração dos planos, sinto, fazendo aqui uma confissão, que às vezes cortei um pouco cedo. Às vezes são 3 ou 4 segundos que acho que devia ter a mais… mas é assim, estou a aprender. Ao mesmo tempo, aquela brutalidade com cortes mais abruptos tem que ver também com a energia das personagens. Eu gosto de mudar de ritmo.  Enquanto espectadora, também sinto que, em alguns planos que se demoram mais,  muitas vezes são os realizadores a olharem para si próprios. 

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Alma Viva, Cristèle Alves Meira © Midas Filmes]

Wetsuit e Aos Dezasseis no Curtas Vila do Conde

Wetsuit, de João Salgado, é, para todos os efeitos, um excelente filme de escola. Tendo sido realizado num contexto de produção exterior a Portugal, para (ou pela) London Film School, o receio de um filme desvirtuado ou “pouco português” era grande, no entanto, e felizmente, verifica-se o contrário. Talvez sejam as saudades do bom ar e mar português.

O filme apresenta não só uma grande capacidade técnica, mas também um grande, ainda que por vezes desagradável, domínio narrativo. Um dos principais erros de Wetsuit é precisamente a grande certeza e segurança que demonstra em todos os planos do filme, até aqueles que porventura não a pedem. A adolescência passa naturalmente por cometer erros, por hesitações e inconsequências, o que acaba por vezes a saber a pouco quando filtrada por uma estética que lhe é tão oposta. A rudeza, infantilidade e, até violência, é-nos ainda assim transmitida, ainda que de outros modos, principalmente através  de  alguns mecanismos narrativos – que se revelam em momentos como o do “pastel-de-rata”, ou do grupo de rapazes a urinar para cima do fato do rapaz, ou, no final  do filme, com o rapaz a  desaparecer em direção ao mar de prancha na mão. O filme estabelece que algo de mau está ou vai acontecer, no entanto, isso não é suficiente, o incómodo não reside na insinuação, reside no confronto. Com efeito, é nestes três momentos de acção-reação que o filme se foca – três histórias, três rapazes, três fases diferentes da adolescência, três respostas ao confronto. A identidade fílmica gira em torno dessa adolescência surfista, do wetsuit (embora isso sirva mais como cenário/ambiente do que como motor da história, ainda que também o seja, quer isto dizer que o filme funcionaria noutro contexto). Por ser curto e divido em três, os desperdícios são minimizados, não há cenas a mais, nem momentos desnecessários (como a carrinha a arder em Punkada), talvez até se justificassem mais momentos, mais filme – como por exemplo na 3ª parte, quando o rapaz, com dificuldade, veste o fato, momento que talvez justificasse mais demora no plano, para figurar uma maior frustração, mais física e determinada e menos simbólica. O mar joga, obviamente, um grande papel na curta, não só como lugar paisagístico, mas sobretudo como lugar afetivo – uma permanência e uma imanência. Um caos organizado que medeia sempre um antes e um depois, que primeiro separa para depois voltar a juntar.

Aos Dezasseis

Aos Dezasseis, de Carlos Lobo © Olhar de Ulisses

Aos Dezasseis, curta-metragem de Carlos Lobo, vencedora do prémio de Melhor Realizador Kino Sound Studio, acompanha Sara, uma adolescente que busca o seu lugar de pertença na comunidade. O filme inicia-se com um plano expectante e cheio de potencial, que subtilmente transmite o conflito do filme – enquanto um grupo de jovens dança, Sara observa, isolada. Se, no entanto, o filme começa com um excelente plano (que o júri do Curtas revelou ser dos melhores planos de abertura vistos no festival), o restante filme desilude, ficando preso na repetição já estabelecida no primeiro plano, com pouco ou nenhum desenvolvimento narrativo. Engraçado será notar que este não é um filme que se foque na acção, focando-se antes na observação da acção – Sara não age nem reage, apenas observa – embora numa perspectiva teórica esta possa ser uma subversão cheia de potencial. O filme parece nunca chegar a cumprir o seu destino, criando portanto uma personagem à mercê da tirania da realização, para sempre presa num impasse, não por falta de capacidades, mas por falta de tempo. Com efeito, o filme é demasiado curto para nos mostrar uma imagem clara de Sara e do “seu” ambiente, revelando antes um universo insípido e desinteressante, não devido a uma escolha estética com o objectivo de transmitir o desinteresse do mundo em si, mas por aparente negligência cinematográfica. Sara é uma protagonista desinteressante por dois motivos: primeiro, por ser uma personagem passiva, que apenas observa silenciosamente; em segundo lugar, por ser completamente unidimensional, quer isto dizer que Sara parece apenas sentir uma única emoção, a de des-pertença, acompanhada por uma única resposta, ir. A protagonista acaba onde começou, calada no seu canto, no entanto, este não parece ser um problema causado por si, mas antes por uma narrativa fechada a sete chaves, apesar do seu final aberto. Ainda que essa abertura seja ilusória pois não são dados elementos suficientes para o espectador imaginar o que poderá acontecer para lá do filme, encerrando então a narrativa diegética e extradiageticamente. Aos Dezasseis, tal como Wetsuit, também se divide em três, neste caso três cenas de um mesmo dia: a escola, o parque de skates e o concerto. Uma progressão que nos leva desde o início do dia, até ao seu fim, sem que nada mude, sem acasos, sem eventos, sem nada a não ser Sara a observar. Sem subversões de estilos, quer de narrativa, realização, montagem, etc, Aos Dezasseis é um filme que, apesar de um bom inicio, cai por terra.

Diogo Albarran

[Foto em destaque:  Wetsuit, de João Salgado © Direitos Reservados]

Fogo-Fátuo: Fantasia e Sátira para Abalar Mitos

Era um dos momentos mais aguardados do festival e Fogo-Fátuo não desiludiu na hora da sua estreia nacional no encerramento do 30º Curtas Vila do Conde. Como comédia que se assume, o filme cumpre eficazmente o seu propósito se o barómetro são as gargalhadas ouvidas na sala. Arrojado em todos os sentidos, Fogo-Fátuo é mais um passo na vontade de João Pedro Rodrigues avançar naquele que é o cinema em que acredita: um cinema despojado de barreiras e fórmulas gastas, selvagem, lascivo e arriscado.

Esta “fantasia musical” do realizador de Fantasma (2000), Morrer Como um Homem (2009) ou O Ornitólogo (2016), conta a história de um rei no seu leito de morte, no longínquo e, quiçá, erótico ano de 2069, onde aquele recorda a sua juventude, época em que se voluntariou para ser bombeiro e conheceu Afonso. Memórias essas que são desencadeadas por um carrinho de bombeiros esquecido com que o seu sobrinho-neto brincava no quarto.

Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme Filmes, House On Fire, Filmes Fantasma

Divertido e docemente satírico, a leveza do filme deve-se, não à ligeireza da sua narrativa, mas à forma descomprometida com que olha as várias temáticas que apresenta. Seja o lado monárquico da família de Alfredo; os traumas da história colonial; a classe, cor e sexualidade dos protagonistas; ou os mitos fundadores da portugalidade e todos os preconceitos inerentes, o filme aborda tudo isso com um humor agridoce, limitando-se a expor as singularidades da cultura portuguesa. Sem medo de pôr o dedo na ferida, fá-lo (passe o trocadilho) de forma suficientemente subtil e satírica para o fazer adquirir essa delicadeza. Para além do riso provocado, que numa comédia deverá ser o elemento central à experiência do espectador, há esse subtexto sobre toda a relação que temos com a nossa cultura e as nossas referências. 

É num momento cerimonioso de refeição, perante os elementos da sua família vergada à ideologia monárquica, que Alfredo, com as notícias dos incêndios em Portugal a ouvir-se na televisão, partilha a sua vontade de ser bombeiro, levando à gargalhada desenfreada da sua mãe. Contudo, o príncipe leva a sua decisão a sério e já no quartel mostra toda a sua ingenuidade na entrevista com a comandante que acaba por lhe apresentar Afonso. É este que o leva até aos balneários dos bombeiros onde, desnudados depois do serviço, interpretam e reconstituem pinturas, supostamente famosas, para testar o conhecimento de Alfredo, também estudante de história de arte, numa sequência de planos eróticos em que os corpos masculinos se entrelaçam em poses sexuais e viris. De grande efeito cómico pelo absurdo daquele jogo, a cena prepara-nos para a diversão descomprometida, mas comovente da história daquele casal. O desejo e a liberdade dos dois bombeiros contrastam com a pose empedernida da burguesia representada no filme.

Ao longo do filme, João Pedro Rodrigues vai cruzando uma série de músicas do imaginário português e apresenta-as em sequências vincadamente cómicas, como é o caso da música Uma Árvore, Um Amigo de Carlos Paião interpretada por Joel Branco (que interpreta o rei em fim de vida) onde se sublinha a preocupação com os incêndios que invadem o país e todos os problemas associados às alterações climáticas, sendo que é essa preocupação que está na origem da vontade de Alfredo ser bombeiro. A dada altura, o príncipe encarna mesmo Greta Thunberg e cita o seu famoso discurso na Conferência das Nações Unidas.

Outra das músicas presentes no filme é o fado de Amália Mané Chiné que ouvimos durante a cena em que as duas personagens principais se envolvem sexualmente. Sequência marcante, tanto pela dança que a câmara faz em redor dos corpos nus como pelo arrojo das representações e humor presente no diálogo. Apesar de neste contexto a música de Amália ganhar uma certa leveza e comicidade tendo em conta as particularidades da sequência, a letra tem tanto de cómico como de problemático. A juntar-se a estas, há ainda ctrl + C ctrl + V dos Ermo na virtuosa coreografia no quartel e um fado final interpretado por Paulo Bragança no funeral do rei.

Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme Filmes, House On Fire, Filmes Fantasma

Nas danças, na música, na aproximação à caricatura, na fuga ao verosímil nos cenários de 2069 e sob a fotografia de Rui Poças e a direção de arte de João Rui Guerra da Mata, Fogo-Fátuo oferece-nos cenas e diálogos com potencial para se inscreverem na história do cinema português, tornando-o um divertimento ao nível do mais engraçado que o cinema português nos vem dando desde João César Monteiro, Miguel Gomes ou Gabriel Abrantes. Ainda assim, e apesar de se louvar a tentativa de encontrar novas metragens e desconstruir formas, talvez seja inevitável sentir no filme uma certa fragilidade por não ser nem uma curta-metragem nem uma longa consistente e suficientemente densa, deixando a sensação que o filme tinha potencial narrativo para mais. 

Tocando com ironia nos traumas da portugalidade, expondo a sexualidade e o erotismo sem tabus, o filme faz-nos olhar para temas decisivos da atualidade usando a comédia à maneira de Lubitsch: subtil e incisiva. Fogo-Fátuo leva-nos a desejar mais e a pedir que João Pedro Rodrigues volte rapidamente a presentear-nos com o seu cinema.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Fogo-Fátuo, João Pedro Rodrigues © Terratreme Filmes, House On Fire, Filmes Fantasma]

Vieirarpad ou uma simbiose mais que imensa

Um dos mais recentes filmes de João Mário Grilo, a par de Campo de Sangue, é Vieirarpad – documentário sobre Maria Helena Vieira da Silva e Arpard Szenes, nomes fundamentais na história da arte portuguesa. O casal, para além de partilhar a intimidade, partilhava a profissão – eram amantes tanto um do outro como da pintura, e é impossível que tal não transpareça em qualquer filme que sobre eles se faça. A virtude de Vieirarpad está em entrelaçar habilmente as diferentes dimensões das suas vidas, oferecendo-nos um retrato individual de cada um dos artistas, as suas diferentes personalidades e visões, e não se resumindo a tratá-los como um só. É certo que a sua união era notoriamente forte, genuína e, sobretudo, saudável, baseada no respeito e admiração mútuos. Diz-se no filme que essa é dinâmica rara entre artistas, que a tendência é para comportamentos excessivos e destrutivos, para paixões arrebatadoras que geram histórias documentais em nada reconfortantes como Vierarpad. Não será essa uma dinâmica rara de observar em qualquer grupo social? A estabilidade do vínculo de Vieira da Silva e Arpard surpreenderia qualquer pessoa. Cada um parecia ter encontrado no outro o descanso de um companheiro fiel, uma presença cúmplice que deseja crescimento em conjunto, mais do que exige retorno de carinho. O seu amor era ternurento assim: um dedicando a vida ao outro e os dois à pintura, influenciando-se mutuamente, incentivando-se sempre a criar, cada um na sua própria pesquisa.

A body of water with trees around it and mountains in the back

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VIEIRARPAD, de João Mário Grilo © Direitos Reservados

Vieirarpad viaja pelas cidades por onde o casal passou, levando-nos às ruas por eles conhecidas de Paris, Rio de Janeiro, Lisboa e outras, enquanto nos lê a correspondência que trocaram. A matéria fundamental do filme está precisamente nas palavras que escreviam nos breves períodos em que estavam afastados. Partindo de Escrita Íntima, edição da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, onde se apresentam compiladas as cartas enviadas entre 1932 e 1961, o documentário cruza a sua cumplicidade com os acontecimentos da época que os afetaram pessoalmente – nomeadamente a 2ª Guerra Mundial que os forçou ao exílio no Brasil – e ainda com as suas obras plásticas. João Mário Grilo presenteia-nos com as pinturas dos artistas projetadas do tamanho do ecrã. Aumentadas ao pormenor, a sua riqueza iconográfica é evidenciada. Os dois eram não apenas talentosos, mas realmente empenhados e consistentes na sua dedicação à pintura, tendo deixado um corpo de trabalho admirável. 

VIEIRARPAD, de João Mário Grilo © Direitos Reservados

O documentário recorre também a sequências de imagens de Ma femme chamada Bicho, filme que o casal gravou em 1978 e no qual se dão a conhecer, um através do outro, como habitual. Rever interações suas quotidianas, guardadas para sempre nessas gravações, confirma-nos que Vieirarpad é um filme de fantasmas. Já a primeira cena nos mostrara a sua campa conjunta, remetendo antes de tudo para as suas mortes, e só depois para as suas vidas, que apenas o cinema consegue de alguma forma recuperar. Os depoimentos que o documentário reúne ajudam na construção do imaginário da existência desses seres. Maria Helena e Arpad aparecem-nos como fantasmas amorosos, felizes na simplicidade, em nada pequena, de se terem um ao outro e à sua arte. Vieirarpad é sem dúvida um retrato carinhoso destes artistas inseparáveis que se apelidavam de “bichinho” e que desenvolveram expressões próprias para demonstrar o afeto gigante que sentiam um pelo outro. Numa das cartas Vieira da Silva escreve: “Sempre que dou uma dentada em coisas boas penso em ti.” Será difícil terminar este filme sem uma sensação de encantamento perante as bonitas vidas que nos apresenta.

Vera Barquero

[Foto em destaque: VIEIRARPAD, de João Mário Grilo © Direitos Reservados]

Alma Viva é quebranto cinematográfico e a metafísica familiar

Há quem traga um santinho no bolso e quem saiba de cor a oração. Na primeira longa-metragem de Cristèle Alves Meira, Alma Viva, mergulhamos numa espécie de submundo pouco explorado na cinematografia portuguesa: o quebranto e a bruxaria. A aldeia da Junqueira, na região do Vimioso, é o pano de fundo de uma intriga simples na teoria. É verão, cheira a Agosto, e os emigrantes retornam à terra-natal. Um deles é a jovem Salomé, que passa os meses mais quentes em casa de uma avó que nos serões canta a São Jorge junto de velas e maços de cigarros – monta-se, assim, a estaminé do ritual, que lança o mote para o desenrolar desta trama.

Alma Viva vem reacender a chama do terror folclórico português enraizado no credo popular que clama os santos e desconfia dos vizinhos. Conto moderno de caça às bruxas, o filme vem trazer ao ecrã luso os agoiros e superstições desta família emigrada, cujo fado é revirado por um peixe envenenado por nada mais que malquerer. 

Cristèle Alves Meira nega o realismo mágico de Alma Viva, mas a facilidade com que a realizadora esfumaça realidade e fantasia é notória. Os elementos que poderiam ser macabros – o altar a São Jorge, cujo ritual se inicia com a pequena Salomé a acender um cigarro; engolir uma cabeça de galinha para espantar o quebranto – acabam por se configurar numa naturalidade exímia, fazendo do espectador uma espécie de voyeur que espreita pelos cantos da casa da avó de Salomé. E, por outro lado, os momentos realmente arrepiantes são-no apenas por este realismo característico. Sobressai, em Alma Viva, a intuição: o modo como as interações de Salomé são filmadas estão carregadas de pressentimento. Paira no ar um desconforto indescritível quando esta vai até à casa da velha Gracinda, velha de aparência inofensiva mas cuja aura aponta para a desgraça iminente. 

Até esta visita, o ritmo de Alma Viva vai traçando-se devagar. Acompanhamos Salomé nos seus passeios pela vila e a ausência de amigos da sua idade – a sua companheira de brincadeiras é a Avó, cuja ternura sente-se desde o primeiro momento. Conhecemos a aldeia, as suas belezas e desacatos e as personagens autênticas que a compõem; é Salomé que nos pinta Trás-os-Montes e as idiossincrasias de quem os habita. O carinho que a pequena nutre pela Avó e pela família disfuncional é cultivado também por nós, através de diálogos autênticos e discussões intensas que se tornam quase cómicas.

A morte da Avó de Salomé, encomendada por Gracinda, custa muito. O seu pré-mortem é visceral, passa uma noite moribunda, sempre ao lado de Salomé. É, no entanto, necessária, pois acaba por marcar o passo do resto da trama. É na morte da Avó que Alma Viva encontra o seu trunfo. O folclore permanece, mas entra uma nova componente que já vislumbrávamos à distância: a dinâmica familiar descompensada entre os cinco filhos que experienciam o luto.

Alma Viva, de Cristèle Alves Meira © Direitos Reservados

Essa mãe que parte permanece, no entanto, sempre presente, através da força dos objectos. O seu altar mantém-se intocável, recebendo de novo a presença de Salomé que repete o “ritual”, desta vez sozinha, vestindo a camisa que a Avó trazia vestida e que enverga durante vários dias, mantendo aceso o seu espírito. Por entre as discórdias familiares, lutas a punho cerrado entre irmãs e os bitaites inesperadamente feministas de Dantas, o irmão cego, permanece Salomé. No seio da família é a apaziguadora, pedindo que não se zanguem, mas esta não é a sua única missão: pretende vingar-se de Gracinda, pelo mal que inflingiu à Avó.

Na aldeia, ouvem-se os rumores de uma jovem possuída por um espírito maligno. A dúvida nunca fica esclarecida, mas gostamos de pensar que é a própria Salomé, e não um receptáculo, que assombra os cantos da aldeia durante a noite, matando galinhas e invadindo a casa de Gracinda – é muito mais aterrador pensar na força inimaginável desta vingança tão premente no pequeno corpo da própria Salomé, que a faz esquecer-se das noites que passa a deambular à procura de uma suposta justiça. O mais extraordinário é a própria naturalidade com que a família lida com este empecilho. Sabem precisamente de que é feita a cura, qual cabeça de galinha engolida por inteiro, e compreendem que a única forma de se livrarem desta malfeita é dando finalmente paz à Avó, bruxa-mor de Alma Viva.

A paz chega, bíblica. Em romaria, os filhos (menos Joaquim, a voz acusmática que nunca se chega a revelar) levam a várias mãos o caixão da mãe até ao cemitério. É dia de incêndio, as chamas e os bombeiros invadem as ruas e as pessoas são obrigadas a deixar as suas casas. Resiste, porém, a necessidade de um descanso comum, e por isso seguem quilómetros a fio com o peso de um caixão e de uma vida. A camisa que Salomé vestia, enquanto sombra de si, desce também. E, no momento preciso, é-nos sanada qualquer dúvida. Cai a chuva. Eis o momento da redenção: “Benza-te Deus, bons olhos te vejam, e os maus quebrados sejam”.

Alma Viva ecoa o folclore português de O Crime da Aldeia Velha, de Manuel Guimarães, ou A Maldição de Marialva, de António de Macedo. Reconfigura, no entanto, os seus trópicos, tecendo os temas com uma modernidade que o faz, mais que credível, real, envolvendo dramas familiares que se repetem de geração em geração, e que qualquer pessoa que transpire Portugal possa reconhecer. Heranças, terras, emigração ou dores familiares são alguns dos temas que convivem lado a lado com a fantasia e a magia que Alma Viva exalta, tornando-as intrínsecas à metafísica do quotidiano. Recupero Minta & the Brook Trout, que de forma tão sábia cantou em ‘Family‘ aquilo que Alma Viva acaba por assinar:

“The vilest thing about family

Is that they own your heart for life

They can make it hurt and make it bleed

And they don’t even have to try”

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Alma Viva, de Cristèle Alves Meira © Direitos Reservados]

IndieLisboa: O delirante cadáver esquisito de Botelho 

Com António Costa na audiência, quase directo da Assembleia após o debate do orçamento na generalidade, viveu-se no cinema S. Jorge um momento de total liberdade (será cinema libertino?), com a apresentação de Um Filme em Forma de AssimMas atenção, Botelho vai ainda apresentar no Indie O Jovem Cunhal.

Por favor, Madame, tire as patas,

Por favor, as patas do seu cão

De cima da mesa, que a gerência

Agradece.

(Alexandre O’Neill, in Meditação na Pastelaria)

Em noite de festa e liberdade, o filme de Botelho previu a presença do Primeiro Ministro na plateia e ainda lhe mandou um piropo, quando a certa altura se lê num grafito “Ele não merece – mas vota PS”. É um detalhe, mas não deixa de ser um gesto surrealista que combina bem com o estilo mordaz que inunda a deriva surreal de Alexandre O’Neill, aqui com adaptação de Maria Antónia Oliveira, neste regresso ao poeta depois de lhe pedir emprestado o título para o seu filme Um Adeus Português, de 1986.

Um Filme em Forma de Assim, de João Botelho ©IndieLisboa

Foi um filme feito em total liberdade, garantiu João Botelho antes do início, com o palco inundado com a sua equipa técnica. O tal ‘divertimento em tempo de pandemia’. Agradecemos, por isso, as condicionantes que juntaram a trupe de Botelho e do produtor Alexandre Oliveira num hangar (que já usaram outras vezes) onde Lisboa acontece pela virtude do cinema. Pois percebe-se que foi aí, com o condicionamento de meios, que o autor se concentrou na essência (das palavras de O’Neill) para deixar que o cinema acontecesse. Algo que permite um jogo de câmara sinuoso, deleitado em longuíssimos planos sequência que nos permitem (tentar) compreender o tremendo trabalho dos actores para esses números de uma meticulosa articulação de mise-en-scène que convida o teatro e o musical.

É nessa forma que nos escapa – vá, uma forma ‘assim’ – que destapa o ‘fazer’, o crescimento do cinema. O tal cadáver esquisito. O tal filme libertário (ou libertino) com uma forma assim, digamos… Coiso.

Tremendos os actores. Alguns com apenas uma sequência ou uma cena. Temos de dizer os seus nomes. Desde logo, Pedro Lacerda, como Alexandre, o poeta, mas também Inês Castel-Branco, Cláudio da Silva, Crista Alfaiate, Luís Lima Barreto, Rita Blanco, Dinarte Branco. E todos. 

Cerimónia de Abertura do IndieLisboa

Antes fora a abertura. Sempre em Português. E como foi bom ver a sala do S. Jorge cheia e aplaudir. Muito. E foi tão bom ver e rever pessoas já sem máscara e perceber como tudo isto nos retira de um outro normal. 

A Mafalda Melo e o Carlos Ramos, da direção do Indie (e não também o Miguel Valverde que estava de baixa com covid) saudaram este regresso às salas. 

E logo com duas cópias digitais restauradas escolhidas para a abertura do festival: Albufeira, uma curta destinada a promover o Algarve, filmada nos anos 60 por António de Macedo Zéfiro, um outro filme promocional – desta vez, uma docuficção patrocinada por Lisboa Capital da Cultura 1994, assinado por José Álvaro Morais. Além do facto de serem duas encomendas, aos dois filmes une-se a ideia do mar e do rio, bem como fazerem parte do programa FILMar, promovido pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, ao abrigo do seu plano de digitalização e disseminação do património fílmico nacional.

Esta escolha torna-se ainda mais acertada para a abertura do Indie, por permitir evocar até os corvos, os verdadeiros ícones do festival. 

Paulo Portugal

[Foto em destaque: Um Filme em Forma de Assim, de João Botelho ©IndieLisboa]