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19º IndieLisboa Críticas Festivais de Cinema Indielisboa

Jorge Jácome sobre Super Natural: “O filme está sempre a querer ser outra coisa”

Foi em Berlim (em fevereiro passado) que falámos com o jovem nascido em Viana do Castelo há 34 anos – a poucas horas de vencer o prémio da crítica internacional (FIPRESCI). Integra agora no IndieLisboa um dos nove filmes portugueses presentes na competição nacional. Foi ao rever Super Natural que sentimos também a abertura para o pensamento de Georges Didi-Huberman. É o corpo do cinema, em que vemos e somos vistos.

Super Natural passa no IndieLisboa, na sala da Culturgest, no dia 3 (terça-feira), às 21,45.

O cinema português está bem e recomenda-se. Veja-se o notável conjunto de nove filmes presentes na Competição Nacional do IndieLisboa (a maior de sempre). Depois das propostas aliciantes e originais, como as curtas Flores Past Perfect, respectivamente de 2017 e 2019, Jorge Jácome entrega-se na sua primeira longa-metragem a propor novos limites ao cinema, ao mesmo tempo que as enquadra num humanismo pleno. Até porque se convoca a experiência do espectador na sala num momento quase terapêutico. Como se uma entidade representada pela tela de cinema nos olhasse. É neste encontro do olhar com a arte que sentimos a proximidade com a experiência do olhar defendida pelo historiador de arte Didi Huberman (em particular na obra O que nós vemos, o que nos olha – Porto: Dafne Editora, 2010 -1992). 

Há um olhar em desassossego em Super Natural assim que entramos neste território paradoxal em que a imagem e o seu significado permanecem em aberto. Um pouco como defende Huberman ao sublinhar que as imagens que são desencadeadas durante a experiência entre sujeito e objecto passam a incorporar esse próprio objecto, permitindo inscrever novos significados. No fundo, aquilo que o autor designa por “tornar carne o nosso olhar”, permitindo que essa “visualidade absoluta” facilite uma apreensão “mais vasta”. Assim se presta este filme. Sobretudo na revisitação que fizemos já depois de Berlim. Algo que nos permitiu repensar o seu efeito e, sobretudo, a encarar os múltiplos significados propostos na escrita do argumento a cargo de André Teodósio e José Maria Vieira Mendes e pela edição da imagem de Jácome. O conjunto acabou por originar “um filme performativo” como defendeu o próprio argumentista na apresentação do filme na sala da Culturgest.

Preparados para a experiência?, poder-se-ia inquirir. Porque é, de facto, uma experiência totalmente sensorial que nos serve Super Natural. Depois de Flores filmado nos Açores, Super Natural mantém o mesmo tom púrpura das hortênsias na Madeira, a partir de um fruto que parece ganhar vida. Este apenas a sugerir uma das múltiplas dimensões que nos interpelam a diversos níveis. Desde logo, a partir de uma mensagem que não é de mera percepção natural, mas que se reflecte no nosso próprio interior. Porque não a sugerir uma proximidade ao filme Memoria de Apichatpong Weerasethakul e ao tal cinema que se passa mais numa dimensão interna e mental. Quase como um filme terapêutico, como um convite a ‘dar o salto’, a experimentar o transcendente.

São sinais estáticos que nos interpelam com pequenas legendas: “estás aí?”, para mais adiante segredar “deixa-te relaxar na poltrona”, “estamos a influenciar-nos em conjunto”. Ou até “porque não fizemos isto mais cedo”. A liberdade cinematográfica é total, até mesmo para ‘brincar’ com as legendas. Mas até pode interpelar-nos: “não está a ver a ideia?” “queres que se faça um desenho?” Sim, somos visados, implicados, como diria Huberman.

A sugestão é clara, precisa Jácome: “Aquela voz estática (que não é humana) é como se pudesse ser a própria tela de cinema a tentar comunicar com o espetador. E as legendas que existem é para que os espectadores humanos na sala de cinema a consigam perceber e entender o que ela está a tentar comunicar.” A ideia resulta numa experiência nova.

O filme fez parte de uma residência na Madeira, em 2020, num projecto do Teatro Praga em colaboração com os intérpretes de uma companhia de dança madeirense. “A Dançando com a Diferença”, refere, “é uma companhia sediada no Funchal que integra pessoas com e sem deficiências. Eles já desenvolvem este trabalho há mais de quinze anos. É uma companhia profissional, com intérpretes profissionais de dança que estão constantemente a chamar outros criadores nacionais e internacionais para trabalharem com os membros da companhia.” São eles os protagonistas ‘super naturais’ desta experiência performativa que nos sugerem a ver um pouco além das aparências. Do visível.

Contudo, a versão final só surgiu após um longo processo de edição, em que texto e imagem comunicaram entre si acabando também por gerar novas cambiantes. “Apesar de eu estar sozinho a montar o projecto, ao mesmo tempo, o André Teodósio e o José Maria Vieira Mendes estavam também eles sozinhos a escrever, a reescrever, a reescrever a reescrita. E eu a montar. Ou seja, íamos trocando sucessivamente as diferentes linguagens. Foi um processo constante de reenquadramento e de reimaginar o que é que o projecto e o que é que o filme ia ser.”

Na verdade, é justamente o campo da performance que é aqui explorado, numa atitude de comunicação interior com o espectador, invocando todos os sentidos. É como se escuta a certa altura: “eu sou uma história que começa quando as outras acabam”.

Foi mesmo essa frase que motivou uma explicação de Jácome ao referir que “pode parecer que está a falar do próprio filme, por estar a querer contar uma nova narrativa, uma nova forma de se experienciar o filme, mas também pode estar a falar da sequência que está a dar, aquela que está a começar porque todas as outras acabaram. O filme está constantemente a querer ser uma nova coisa. Tem essa estrutura quase de showreel, de diferentes filmes, de diferentes perspetivas.” É isso que sucede quando a dimensão da performance se sobrepõe à narrativa estática (com as legendas) e nos liberta para diferentes ideias de cinema. 

“Quando aparece essa frase é porque o filme também está a mudar. Se o filme começa de uma forma mais exuberante, onde a natureza tem este lado mais vibrante, mais explosivo, quando aparece essa frase, essa natureza começa a desaparecer e a construção humana – que também é parte da natureza, pois é super natural – começa a aparecer. Então existe um lado em que o humano transformou esta natureza virgem (neste caso da ilha da Madeira) e que a própria ilha passa a ser uma outra coisa. Como também o filme passa a ser uma outra coisa.”

É por aqui que terminamos. Com as ideias de cinema. Com a ideia do que se forma durante a sua exposição e a performance dos corpos. “A ideia do filme era confirmar que não existe uma melhor maneira do que outra de se fazer cinema. Ou seja, filmar em Super 8, filmar em 4K, filmar com uma Mini DV, filmar com o telemóvel, tudo é uma possibilidade para que uma ideia de cinema possa continuar a existir.”  Do corpo do cinema e das suas múltiplas possibilidades, em que “cada câmara é também uma narrativa diferente. O filme está constantemente a falar de diferentes corpos. Por isso, quando estamos a ver o filme também estamos a pensar como é o próprio corpo da imagem que estamos a ver. E o filme faz isso. Diz-nos quando é em Super 8, diz-nos quando é no telemóvel, diz-nos quando é em 4K. Para perceber como é o próprio corpo da imagem que está a ser gravada.”

[Foto em destaque: © Ukbar Filmes – Super Natural]

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