Categorias
Cinema Português Críticas Estreias

No Taxi do Jack transporta-se a burocracia do desemprego em Portugal

O seu nome é Jack e o carro negro é o seu local de trabalho. Juntos seguimos No Taxi do Jack, o documentário de Susana Nobre que ficciona histórias de desemprego tão comuns a milhares de portugueses.

Chega agora às salas de cinema o documentário ficcionado e assinado por Susana Nobre que se mostrou ao mundo no festival de Berlim, há já mais de um ano. Portanto, ainda em plena pandemia. No Táxi do Jack foi apresentado na secção Fórum dedicada aos projectos de natureza mais avant garde. E foi também nessa altura – na edição do festival apenas realizada online – que falamos com a autora (via Skype) sobre este projecto muito pessoal. De recordar que O Taxi do Jack foi ainda o vencedor da melhor longa metragem nacional do IndieLisboa do ano passado.

Sim, No Táxi do Jack as coisas tratam-se pelos seus nomes. Sim, é um filme sobre os problemas do trabalho, o desemprego ou a chamada ‘uberização’ do trabalho, que acaba por ser a outra face do mesmo problema. 

Bem vistas as coisas, este filme de Susana Nobre até se poderia chamar Eu, Joaquim Calçada, pois existem paralelismos evidentes entre o Joaquim Calçada, de 63 anos, protagonista de O Taxi de Jack, de Vila Franca de Xira, e Daniel Blake, de 59, o operário de Newcastle que conhecemos do filme de Ken Loach, Eu, Daniel Blake, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2016.  

Tal como no filme britânico, também aqui o português tem de fazer a ‘corrida dos carimbos’ para receber o seu subsídio de desemprego. No entanto, as semelhanças acabam um pouco por aqui. Não só pela gestação do projecto português ser bastante anterior, mas sobretudo pela diferença do gesto de cinema.

Para concretizar No Taxi do Jack, Susana Nobre investiu vários anos da sua vida a ouvir em primeira mão as histórias de muitas centenas de desempregados. Precisamente entre 2007 e 2011, durante o tempo que esteve empregada como Profissional de Reconhecimento e Validação no Programa de Novas Oportunidades, que viria a originar diferentes documentários: Vida Activa, em 2013, presente no Doclisboa, por sua vez dando origem a um vasto arquivo, e, em 2016, Provas, Exorcismos, a concurso em Cannes na Quinzena dos Realizadores. 

Este seria um programa lançado para fazer face ao baixo índice de escolaridade dos portugueses – “’um milhão de inscritos’ era o bastião do Partido Socialista que governava na altura”, lê-se nas notas de produção do filme. Foi no contexto de desemprego que Susana conheceu Joaquim Calçada, “há mais de dez anos”, como nos confirmou. Aliás esse momento é devidamente documentado no plano inicial do filme, no qual Susana prepara a sua câmara para encenar o momento. Ou quando desliza a câmara para mostrar em estúdio o plano que simulava Jack a conduzir na noite de Nova Iorque. É tudo muito claro, trata-se de uma encenação. Quase se poderia dizer o mesmo de Jack, com os seus anéis, a calça à boca de sino e, sobretudo, uma cabeleira negra e pastosa a emular um candidato a lookalike de Elvis Presley. 

A associação nem é forçada, já que Calçada chegou à América no início dos anos 70, “com 300 dólares no bolso”. E foi aí que durante muitos anos ao volante de um táxi e limusinas viu muitas quedas da bolsa de Nova Iorque. A crise de 2008, já em Portugal, depois de muitos anos a trabalhar na O.G.M.A., não era novidade para ele. Até porque se sabia que ele não iria voltar mais à vida activa laboral, pois desejava reformar-se. Teve então de cumprir aquela ‘corrida dos carimbos’ do centro de emprego para poder receber o subsídio de desemprego. “Conheci-o nessa situação porque ali havia a obrigatoriedade para quem tivesse no subsídio de desemprego e menos do 9º ano de escolaridade tinha de estar inscrito no Centro de Novas Oportunidades.

Imagem Skype fevereiro 2021

Este documentário ficcionado abre mesmo com Susana a emular o momento em que preparou a câmara para escutar Joaquim Calçada, 63 anos, taxista desempregado. “É um filme que parte muito da minha relação com o Joaquim, das conversas que tivemos ao longos dos anos”, explicou a realizadora e produtora da Terratreme. “Passou muito por ouvir as histórias dele e as imagens que ia projectando um certo imaginário. Desde os seus tempos de miúdo até à sua experiência de ir para a América, quase ao desconhecido. É também um pouco a história de todos os portugueses na América.”

No fundo, a ideia era “fazer um filme que ligasse a zona de Vila Franca de Xira, que caracteriza o ambiente em que ele nasceu, na zona rural ao pé do rio”. Por sinal uma zona que já tinha descoberto em Provas, Exorcismos. Até porque é uma região em que se consegue traçar um paralelismo próximo da zona laboral americana. “A ideia era manter esse contexto do território com a América e tornar isto tudo numa espécie de atlas, guiado pela sua própria história de vida que vai sendo narrada. Esse trabalho pôs-me num lugar de escuta e inquisição das histórias destas pessoas, a ajudá-las a escrever a história da sua vida. O Jack acaba por ser um pouco o que fica das fantasmagorias dessas pessoas todas, portanto não só da vida dele.”

Interessante mesmo é verificar como Nobre se preocupa com o seu cinema, em mostrar o gesto de o fazer. Algo que se prende com a vasta experiência da realizadora nos destinos de produção de Terratreme em terras de Alhandra e Vila Franca de Xira, um pouco como sucedeu no excelente e premiado A Fábrica de Nada (2017), de Pedro Pinho. 

Eu sabia que queria ter o táxi, uma espécie de táxi fantasmagórico com ele lá dentro. Esse foi um ponto de partida essencialmente para a memória.” De resto, foi um filme “preparado com ele”, pois “o Joaquim esteve sempre muito envolvido. Houve muitas coisas que foi ele que escreveu. Improvisava. E sabia quando as coisas corriam bem ou não.” Acaba quase por mostrar um certo estatuto discreto de estrela de cinema à americana, tendo até direito a uma cena ‘à filme’. “Ele teve quase uma postura de actor”, confirma-nos a realizadora.

Na altura, Susana Nobre procurava um espaço de alívio sanitário que lhe permitisse avançar para a fase decisiva de Cidade Rabat, o seu próximo filme. “O argumento está escrito e bastante avançado”, garantiu-nos, na altura. “Neste caso, é o movimento contrário, tenho de encontrar a pessoa certa para o filme. Na segunda parte deste ano (o ano é 2021) espero já estar disponível para mergulhar no projecto.”

[Foto em destaque:  No Táxi do Jack – ©Terratreme]

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *