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Opening Night e a realidade que conseguimos moldar

“I seem to have lost the reality of the… reality”, confessa a certo ponto a incomparável Gena Rowland na pele de Myrtle Gordon em Opening Night (1977), de John Cassavetes. Mas quem diz o que constitui a realidade, numa existência construída às camadas? Bastidores, palco, audiência. À distância, parecem simples etapas no sistema de comunicação que é o teatro. Sob um olhar mais próximo, contudo, revelam-se autênticos campos de batalha, onde o que está em causa é algo muito para além das cortinas. É ruído identitário, que simultaneamente sussurra e grita, questionando o que está a ser representado. Quando se torna demasiado intenso para o suportar, o resultado é a erupção singular que caracteriza o décimo filme de John Cassavetes. 

Na posição temática central está o trabalho de ator, camaleão de profissão, cuja personificação aqui é a já referida Myrtle Gordon. Atriz famosa e respeitada, protagoniza a mais recente peça da sua carreira, The Second Woman, antecipando a sua grande estreia em Nova-Iorque. Contudo, quando testemunha o atropelamento e súbita morte de uma fã adolescente à saída de uma das suas atuações, o acontecimento impacta-a de tal modo que começa a duvidar da personagem envelhecida que interpreta, à medida que, assombrada por visões da defunta admiradora que acredita representar a sua juventude, é forçada a encarar a sua própria mortalidade, pessoal e profissional.

Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes

Este problema insolucionável, é, no seu âmago, um que todos partilhamos, sem escolha, nem palavra a acrescentar. Tal como ela, colocamos os nossos véus de estilo fúnebre todas as noites, caminhando o mesmo percurso, em rumo ao mesmo destino. Gradualmente, as marcas da vida vincam-se no rosto e, na nossa imagem, somos enfrentados com a efemeridade da vida. Myrtle, contudo, não o quer fazer, afirmando com toda a certeza: “Age isn’t interesting. Age is depressing. Age is dull.” No fundo, procura uma maneira para que os anos que passou na Terra não sejam necessários para a existência e posição da personagem que assume na peça. Mas isso é impossível, pois a dramaturga, mulher umas décadas mais velha, não quer mais nada do que a submeter aos números e à sua narrativa.

Presa entre duas gerações distintas, entre a que a provoca com nostalgia e superioridade do valor jovem e a que quer escrever o seu futuro condescendentemente, Myrtle cai numa espiral de decadência, onde a máscara que usa sempre, tal como muitas em personagens cassavetianas, se começa a desintegrar. Procurando exorcizar os demónios e reencontrar os seus passos na transformação do guião, descobre na improvisação uma mão amiga. Quer encontrar algo com coração, esperança, algo que contradiga aquilo que os espelhos refletem e a fatalidade lhe dita pelo ex-amante e ator secundário Maurice, interpretado pelo realizador. “You’re not a woman to me anymore.” Portanto, muda as falas, os movimentos e tudo o que tem à sua disposição, provando que para ela um papel não é algo a ser apenas lido, mas sentido e vivido, criado também pela sua mão. 

Afinal, quem detém a autoria das personagens, o seu cunho? É uma questão que Cassavetes parece explorar não só aqui, mas em toda a sua filmografia, no característico costume de partilhar o espaço à frente da câmara e no gosto assumido pela improvisação enquanto exercício. É gerado o hábito de fazer com que os seus atores respirem as figuras que representam, concedendo-lhes o espaço que o permite, fluindo com uma câmara deambulatória, que se aproxima nos momentos certos, nas expressões e nos detalhes. Coincidentemente, estes elementos nunca estiveram tão presentes quanto em Opening Night, que transpira este tal ar de ambiguidade. 

Uma imagem com pessoa, interior, em pé

Descrição gerada automaticamente
John Cassavetes e Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes

No que toca a The Second Woman, contudo, essa qualidade é rejeitada e os esforços análogos da protagonista alienados tanto quanto possível. Há incompreensão e revolta, mas o mote do mundo do espetáculo nunca é esquecido. Deve continuar, acima de tudo. Mesmo quando, conscientemente, a própria obra teatral é desfragmentada, dificultando a distinção entre o que é do que é suposto ser. Renovando-se todas as noites, em cada atuação, alegra uns e desagrada outros, mas é sempre esplendorosa pela sua surpresa. É o agora e o controlável, a realidade que Myrtle consegue moldar e a sua oportunidade para responder às expectativas que o contar do relógio traz. No palco, com ela, o tempo pára e fuma um cigarro.

Margarida Nabais

[Foto em destaque: Ben Gazzara, John Cassavetes e Gena Rowlands em OPENING NIGHT, de John Cassavetes – © Leopardo Filmes]

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