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Naquele Dia em Lisboa: Um músculo no braço de ferro contra o esquecimento

Em 1940, chegavam a Portugal milhares de refugiados europeus, maioritariamente judeus, com a esperança de fugir ao terror nazi que na época se alastrava pelo continente. O nosso país, no limite da Europa, representava um temporário porto seguro, uma paragem crucial no caminho do seu verdadeiro destino, na América. Mais de 50 anos depois, umas películas dessa mesma altura acumulavam pó num canto do ANIM, até Daniel Blaufuks pegar nelas para o seu mais recente filme, Naquele Dia em Lisboa, programado numa das sessões especiais do 20º IndieLisboa. 

As imagens, já tendo passado pelo processo de catalogação e registo, não foram, por isso, recuperadas pelo realizador, mas sim redescobertas. A sua origem é turva e pouco se sabe delas além do ano e o seu autor, o diretor de fotografia e vencedor de um Óscar, Eugen Schüfftan. Apesar desse galardão, é mais conhecido pela técnica de efeitos especiais que aperfeiçoou e popularizou em Metropolis (1927), de Fritz Lang, permitindo, com o uso de um espelho, inserir os atores em cenários minúsculos, criando, a partir desses elementos distintos, uma imagem coesa. É interessante, portanto, pensar nessa mesma pessoa a gravar as multidões numa Lisboa demasiado pequena e adversa para as comportar. Podia ser ilusão, mas é a incredulidade que a guerra traz. 

À vista disto, o filme torna-se desde logo importante pelo mero facto de tornar o arquivo acessível ao público. A gravidade que se veio a acumular com o cair dos anos torna-o num monumento histórico, elemento da nossa memória coletiva e, porventura, até individual. Assim, tratando a matéria-prima enquanto músculo essencial no braço de ferro contra o esquecimento, Daniel Blaufuks trabalha-a ainda mais.

Naquele Dia em Lisboa © Direitos Reservados

A voz de Bruno Ganz surge enquanto fio das imagens, numa narração que coloca o espectador português num lugar estranho ao seu. Ao passo da força visual, ouvimos descrições sobre os nossos costumes, as nossas paisagens e, mais importante, sobre uma realidade que não nos foi familiar. Da nossa posição isolada, seja esta geográfica, ideológica ou social, não fomos submetidos à necessidade de fugir à Guerra, nem a vivemos da mesma forma que o resto do continente. 

O mais interessante, contudo, encontra-se na velocidade das próprias imagens, manipuladas ao ponto de se arrastarem no tempo. Desacelerando, encontra-se a contemplação, a possibilidade de olhar para vários pontos distintos e pensá-los de formas diferentes. Parecem figuras assombradas, sobressaltadas pelo conhecimento que temos hoje, movendo-se, parecendo, fotograma por fotograma, num turbilhão inidentificável. Portugueses, refugiados, pontos no tempo.  O produto é tão melancólico e desconcertante como o piano que o acompanha, sublinhado também pela ocasional coloração das imagens, ora azul, cor-de-rosa ou até semi-realística, cujo impacto nos transporta a um ponto ainda mais longínquo da história das imagens em movimento. 

Esta manipulação (expressão totalmente desprovida de qualquer conotação negativa)  é uma predileção do artista, no âmbito de explorar os interstícios da imagem e do vídeo, levando-o por isso até a distanciar os seus filmes da própria ideia de cinema. Pelo menos a que assume muitos espectadores terem. Isto é, motivado, em grande parte, por uma narrativa. Por isso, agrada-lhe a categorização do “experimental”, não propriamente da sua perspetiva enquanto cineasta, mas sim numa possível experiência para o espectador, que se deixará levar pelo desafio à atenção, ao foco e à imaginação de uma realidade distante. Quem eram aquelas caras a passar naquele dia em Lisboa?

Margarida Nabais

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