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Entrevista com Ico Costa

Ico Costa: “Eu acho que o filme [O Ouro e o Mundo (2024)] contém uma dimensão muito realista e a razão para isso acontecer é porque tenho de dar espaço para o real entrar. […] Não controlares tudo, obviamente, complica-te bastante. Mas, ao mesmo tempo, traz verdade. Isso para mim é muito importante.”

Numa homenagem à busca por melhores condições de vida nas regiões moçambicanas, o último filme de Ico Costa é uma daquelas molduras de fotografia dupla. De um lado, temos um retrato de responsabilidade e aquiescência. Do outro, uma imagem do inconformismo jovem perante uma mão-de-obra injustiçada.

Ico Costa realizou O Ouro e o Mundo, concedendo-lhe autonomia e privilegiando o real. Criou um rio que deixou ir sem controlo, representando um mundo que, não só é de ferro em vez de ouro, como desconhece onde vai desaguar. 

O Ouro e o Mundo foi premiado na qualidade de melhor longa-metragem portuguesa do Festival Indielisboa, na Secção Competição Nacional.

SME: Antes de mais, parabéns. Sei que o teu filme [O Ouro e o Mundo (2024)] ganhou na Competição Nacional de longa-metragem, o que é excelente. Vejo que os temas do quotidiano são abordados nos teus filmes e que em O Ouro e o Mundo o fazes muito com diálogos. Por exemplo, numa das primeiras cenas, em que o Domingos conversa com os companheiros de trabalho sobre os salários pobres e as gorjetas que não existem, há esta constante e inerente insatisfação humana. No entanto, aqui sentimo-la legítima, porque eles são injustiçados na contrapartida do trabalho, são jovens e têm planos que querem concretizar. Posso pedir-te que fales um bocadinho sobre isto? O que é que quiseste transmitir?

IC: Sim, a questão social sempre esteve lá desde o início, desde que tive a primeira ideia para o guião. Partiu muito da minha vivência em Moçambique. Eu já vou a Moçambique desde 2009 e passei lá um ano, entre 2009 e 2010, e depois vou voltando. Já no meu filme Nyo Vweta Nafta (2017) que fiz lá, fui sem guião, sem nada, fui ouvir as pessoas e havia muito isto de elas quererem sair para procurar uma vida melhor. Então, a ideia de sair para procurar algo noutro lugar é algo muito presente na sociedade moçambicana, até porque eles migram muito internamente. Não há oportunidades de emprego, vão para outras cidades, eventualmente vão para a África do Sul trabalhar. Mas mesmo internamente, sempre que eu voltava lá, procurávamos os amigos «Ah, esse foi para Manica, esse foi para Cabo Delgado, este foi para Maputo…» Então, havia sempre isto, sempre a busca de trabalho. Eu acho que é algo mais do que insatisfação – que realmente existe em relação aos trabalhos que eles tinham -, mas é também uma necessidade de sobrevivência.

Eu tive muitas dificuldades em começar a rodagem, porque cheguei lá com um guião escrito, com que concorri ao ICA. Depois quando comecei a ensaiar – e isso começou já em 2019 -, eu não conseguia meter nas bocas das pessoas as palavras que estavam no guião, porque elas falam de outra maneira, têm experiências que, apesar de eu as conhecer, são sempre diferentes. E acabei por ter uma abordagem mais documental, em que criei as situações para elas falarem sobre certos temas. E as coisas aconteceram naturalmente, ou seja, muitos diálogos que existem no filme são diálogos que não partem, de todo, de mim. Ou seja, só partem no que respeita à ideia do que é a cena.

SME: Há muitos diálogos improvisados?

IC: Sim, há muitos diálogos e são quase todos improvisados.

SME: E é um filme que, em certa medida, esbarra um pouco com o documentário. Eles são muito naturais e, de facto, essa improvisação de que tu agora falas, gera, na perfeição, o resultado obtido. 

IC: Eu estava a trabalhar com actores não profissionais. A ideia de trabalhar com actores profissionais, em Inhambane, não existe. Por isso, trazer actores profissionais de Maputo – que são sempre pessoas privilegiadas – para fazer de pobres e lavadores de carros em Inhambane, nunca se colocou. Eu estou nos antípodas disso. Mas também não era possível eles dizerem os meus diálogos. Por isso, não há nenhum diálogo que não seja sentido pelas pessoas. Mesmo quando há algumas linhas de diálogo que são específicas da acção, fazem parte de coisas que eles viveram. Mesmo com linhas de diálogo que eram pontos-chave para a narrativa, isso foi sempre algo que já lhes tinha acontecido, era algo muito próximo deles. Ou seja, os actores estão todos muito bem, porque eles são aquilo. Mesmo que o Domingos não tenha emigrado para Manica para trabalhar nas minas, ele, na verdade, esteve lá e trabalhou na preparação e um bocado na rodagem, e conviveu com eles, e esteve em todo aquele mundo do que é viver naquele lugar.

SME: Há um momento em que o Domingos é questionado sobre o motivo pelo qual vai trabalhar para as minas, uma vez que ele não percebe do ofício. E dizem-lhe: «és livre para fazeres o que quiseres». E ele responde algo do género: uma coisa é escravatura, outra coisa é trabalho, mas tu vais ter sempre trabalhar. Segundo o que eu percebi, a ideia dele é a de que, afinal, nunca somos totalmente livres, a não ser que compremos a nossa liberdade. É um pouco esse o objectivo dele, ser um boss, ter o seu negócio, fazer a sua vida. Como é que a personagem Domingos entende o conceito de liberdade?

IC: É um bocado complicado, porque o Domingos é a personagem e o actor. Mas realmente há uma personagem. Eu acho que, de certa forma, toda a gente que lá esteve com experiências de vida semelhantes à deles, e que vêm dos mesmos contextos, têm noção clara que não têm a mesma liberdade que eu para fazerem o quiserem, não é? Ou seja, estão sempre a correr atrás do prejuízo. A maior parte das pessoas não recebe um salário ao fim do mês e gere esse dinheiro ao longo do mês. 

SME: É uma busca e um esforço constantes.

IC: Exacto. Cada dia vão à procura de dinheiro para comer. Isso é bastante claro nas minas, mas mesmo em Inhambane, que é a cidade onde se passa o início e o fim do filme, isso é uma realidade. Pode não haver escravatura, podes não ser obrigado a trabalhar, mas também se não trabalhares, não terás forma de te sustentar. E é bastante importante que as pessoas percebam que o sustento lá não é a mesma coisa que cá. Ou seja, não se trata de comprar ou não uma máquina de lavar. Trata-se efectivamente de ter dinheiro para comer. Ou para comprar electricidade.

SME: Na cena em que Neusia está na escola, numa aula de Biologia, o ensinamento da professora aparece como uma espécie de metáfora. Como é, na tua escrita, este processo de associação de temas? Surge-te naturalmente? É calculado?

IC: É muito engraçado, porque já alguém falou sobre essa cena, o seu conteúdo e a metáfora. E nós queríamos filmar naquele dia, àquela hora. Essa aula de Biologia foi completamente ao acaso. E a aula não foi minimamente controlada por nós. Nós queríamos fazer um plano da professora a falar e da Neusia meio abstraída a ouvir. A montagem já foi há algum tempo, eu não estou recordado por que razão o montador, o Clément, escolheu à partida esse momento. Mas também não filmámos muito, filmámos um, dois takes. Sinceramente não me recordo se a escolha para esse momento foi propositada, ou se era um bom momento por outras razões. Tenho imensa pena de não me recordar disso. Mas eu não escolhi, nunca iria tão longe. De certeza que há pessoas muito controladoras daquilo que se passa no filme, mas eu sou muito aberto ao imprevisto. Ao improviso, mas ao imprevisto também. Houve muitas coisas que eu não controlei no filme. Ou seja, conversas, movimentos dos actores. Eu acho que o filme contém uma dimensão muito realista e a razão para isso acontecer é porque tenho de dar espaço para o real entrar. Isso traz muitos problemas. Não controlares tudo, obviamente, complica-te bastante. Mas, ao mesmo tempo, traz verdade. Isso para mim é muito importante.

SME: Achas que a procura por uma vida melhor por jovens como Domingos é uma busca eterna? Ou há um momento em que se conseguem realizar sonhos? Fugir à exploração?

IC: Eu acho que é uma busca eterna. Mas não posso falar pelas outras pessoas. Há pessoas que, a partir do momento em que têm as coisas básicas, ficam felizes.

O que se passa, e isso é bastante claro, é que as pessoas, quando saem das suas cidades para irem à procura de uma vida melhor, não querem regressar de mãos a abanar, não é? Não querem regressar como uns falhados. Daí ele [Domingos] não querer regressar assim, sem ter conseguido alcançar algo. Nessa perspectiva, ele não se conforma. Mas ao mesmo tempo, o filme não é muito esperançoso. É e não é. Será o espectador a dizer isso. Acho que [Domingos] é uma pessoa que sabe não ter muitas ilusões, mas tem forças para continuar a batalhar.

SME: A relação de Neusia e Domingos revela cumplicidade e carinho. E isto está muito presente na primeira cena do filme. Aliás, na primeira parte do filme, nota-se que eles são cúmplices, que estão juntos. À medida que avançamos, há um certo decaimento na personagem masculina, no que respeita à sua entrega, e um desalento do lado de Neusia. Muito embora não se coloque em causa a responsabilidade de Domingos, a sua auto-imposição de não faltar com dinheiro para a subsistência da família, qual é a verdadeira razão para ele ficar com o Ouro e não com o Mundo?

IC: Não querer voltar de mãos a abanar, como referi anteriormente. Apesar de ser o realizador deste filme, houve muitas coisas que não controlei. Eu gosto de ver filmes onde percebes que, de alguma forma, o realizador não teve mão em tudo. E o produto final tomou o seu próprio caminho. O diálogo da cena final não foi escrito por mim. São conversas, foi natural. Para muitas pessoas, é muito difícil entender isto, porque na Europa têm uma vida diferente. Já tive feedbacks de julgamento face à personagem de Domingos. As pessoas, muitas vezes, não conseguem perceber como as coisas funcionam lá. É muito comum o homem sair, ir à procura de algo fora, e a mulher ficar em casa a guardar o espaço. Não há um abandono, há uma necessidade de procurar melhores condições para voltar. Mas no meio disto tudo, acontecem sempre coisas que o desviam, porque a experiência de trabalho nas minas é muito dura e aquilo que lhe acontece lá, acontece a todas as pessoas, não é? É um mundo em que as pessoas estão condenadas. Lá é que é uma metáfora para a vida em geral. As pessoas estão num ciclo em que trabalham, e o dinheiro que têm é usado para comer e não há nada para fazer. Então, as pessoas entregam-se ao álcool e à prostituição. Quando dão por si, não pouparam dinheiro, porque o dinheiro é muito pouco. Mas também se não tiverem essas pequenas coisas, não têm nada. São pessoas completamente desterradas, sem família. Homens cuidados por outras pessoas. Algumas senhoras têm umas barracas de comida. Eles precisam muito de carinho, estão muito sós…

Até porque, há certas oportunidades de emprego em que não dá para ir um casal, as mulheres não vão. As mulheres que são de lá são as prostitutas que têm um trabalho também tão duro como os garimpeiros. Em relação à Neusia, eu gosto muito da última parte do filme, porque fui atrás dela, de alguma forma. Ela está mais conformada do que o Domingos, efectivamente, porque, apesar de tudo isto, a vida pode ser muito dura para os homens, mas é mais aberta. Ou seja, as possibilidades do que um homem pode fazer lá são maiores do que as das mulheres. E isso é muito duro. 

Sofia de Melo Esteves

* O presente texto encontra-se escrito ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico.

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