Pedágio é o segundo longa-metragem da realizadora brasileira Carolina Markowicz e fez sua estreia nacional no Indielisboa. A premissa do filme reflete de forma aguçada a crise de valores de um país cindido. No município de Cubatão, uma funcionária de portagem, Suellen (Maeve Jinkings), toma parte em um esquema de roubos a fim de pagar a terapia de conversão de seu filho homossexual Antônio (ou “Tiquinho”, representado por Kauan Alvarenga).
Um dos acertos do filme é mostrar o preconceito da protagonista como fruto do senso comum, em detrimento de um fanatismo religioso. Levando em conta um contexto histórico de pânico moral sobre as pautas identitárias, os vídeos de António nas redes sociais – nos quais vende produtos de beleza e imita divas do jazz – afrontam mais a ordem estabelecida do que a participação de Suellen em um empreendimento criminal.
O contexto industrial do filme concentra de forma pungente uma série de mazelas da sociedade contemporânea: a precarização dos vínculos de trabalho, a solidão da era digital e a crescente violência urbana. Contudo, nenhum desses problemas é tão evidenciado pela cineasta quanto as asperezas do convívio doméstico: Suellen e Tiquinho vivem uma espiral de agressividade, mas não conseguem se libertar da presença um do outro.
O núcleo da terapia de conversão lida diretamente com humor, sem perder de vista a violência de tal procedimento. Na pele do pastor que orquestra a ação, o ator português Isac Graça propõe uma representação desviante e corajosa para o líder evangélico. Os gritos e roupas conservadoras dão espaço para o palavreado baixo, a aura cool e o domínio da língua dos jovens.
A ambivalência também se faz presente na composição dos coadjuvantes. Arauto (Thomas Aquino), a nova referência masculina que Suellen traz para o seio de sua família, é um bandido de meia-tigela. Telma (Aline Marta), a conservadora colega de trabalho da protagonista, faz sexo desprotegido com estranhos em horário de expediente. Rick (Caio Macedo) participa da cura gay por vontade própria, mas usa da oportunidade para conhecer outros rapazes.
Sem essa ambiguidade, o arco dramático de Suellen – que vai de mãe solteira no limite das forças para infratora da lei – poderia ser reduzido a um discurso sobre o preço do preconceito (a alegoria do pedágio já apontava esse caminho) e os afetos que inspiram a aceitação das diferenças. No entanto, Markowicz não escolhe o caminho mais fácil, culminando em um desfecho tão belo quanto cortante.
Ainda que muito possa ser dito sobre a performance de Maeve Jinkings, que não perde o vínculo com a plateia mesmo nos momentos mais ingratos de Suellen, é Kauan Alvarenga, com seu calmo senso de dignidade e insubordinação, que injeta luzes e cores na imagem naturalista. Ao construir e frustrar reiteradamente as expectativas de catarse entre mãe e filho, Markowicz olha para o Brasil de hoje apontando um caminho do meio para dois personagens em demandas inconciliáveis.
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Entrevista com Isac Graça
Alexandre Bispo: Pedágio estreia nos cinemas portugueses em pleno Mês do Orgulho. Na sua conceção, como essa data enriquece a experiência do filme?
Isac Graça: Parece-me que é uma escolha muito ajustada e a propósito. A Carolina é uma realizadora queer, há muitos atores queer no elenco, e o filme trata de um adolescente também ele queer. A Carolina tem um bocadinho de receio de colocar a sua obra em caixas de género, mas também percebe a necessidade delas. Isso vem de uma conversa que tivemos no outro dia. Colocam-se os filmes em caixas para as pessoas poderem encontrar as temáticas mais facilmente. Mas a Carolina prefere estar desencaixada. Creio que foi uma vontade da produtora O Som e a Fúria fazer a estreia no IndieLisboa e ir para as salas durante o Mês do Orgulho.
AB: Com duas longas no currículo, Carolina Markowicz é uma realizadora que está tendo bastante projeção nacional e internacional. Qual você diria que é um toque especial dela?
IG: A Carolina tem contado histórias muito reconhecíveis para toda a gente. São coisas universais, que eu poderia mostrar à vizinha do lado, ou à minha avó, ou ao dono do talho e eles iriam perceber. Não tens de ter estudos académicos ou ser um intelectual ou um burguês para desenvolver uma relação com o filme. Ela conta histórias, de certa forma, simples. O que eu acho profundamente genial é ela ter um ponto de vista perverso, que faz tu veres a situação de um ângulo mais interessante. No caso do Pedágio, ela expõe hipocrisias e contradições. Ela tem também muita capacidade de se rodear de técnicos competentes e de atores que vão dar aquilo que ela precisa.
AB: Quando pensamos na premissa de Pedágio, a ironia dramática é absurda: uma história de amor de mãe e filho a partir da não aceitação. Mas através da simplicidade da Carolina, o público consegue acessar a ambivalência desses afetos.
IG: Eu li o comentário de um espectador na Internet que dizia que essa mãe prefere ser uma criminosa a ter um filho gay. A Carolina estende essa hipérbole que, na verdade, não é tão longe da realidade. Há muita gente, até boa gente, com esse tipo de atitude para com os filhos. Se não é com a sexualidade, é com a profissão. Se não é com a profissão, é com quem essa pessoa vai casar. Se não é com quem vai casar, é porque saiu de casa cedo ou nunca sai de casa. Os pais vão sempre embirrar com os filhos. É uma das coisas que fazem de nós humanos. E cada família tem o seu drama. Para este filme, a Carol pegou nesse choque de gerações inevitável que faz parte do progresso da humanidade.
AB: Existe algo de perturbador na figura do pastor ser interpretada por um jovem. Para si, qual é o apelo de ideais tão conservadores para alguém numa fase da vida tão marcada pelo desejo de mudança?
IG: Os adolescentes reagem muito a energia, e não tanto ao conteúdo. E aparecem role models realmente nefastos: youtubers, Ben Shapiro e essa gente que entra pela Internet com discursos mais à direita e também outros mais à esquerda, igualmente intolerantes, a meu ver. E os miúdos apaixonam-se por isso e começam a politizar-se a partir de pessoas que, tal como o pastor que faço no filme, só querem fazer dinheiro. Não se importam com a pegada que estão a deixar no mundo, e os jovens são completamente vulneráveis, porque a maior parte deles não é politizada. Há muita gente chocada com esta virada à direita dos miúdos em Portugal, mas eu acho que, com o tempo, eles vão se confrontar com a própria consciência e perceber que as decisões que tomaram antes não eram assim tão bem pensadas.
Voltando um bocadinho atrás na pergunta, não é que a Carolina estivesse à procura de uma pessoa mais velha. Era só a ideia padrão com que ela foi para a personagem. Mas assim que o Luís Urbano e a Karen Castanho pensaram em mim, ela começou a ficar interessada, depois conheceu-me e ainda ficou mais, e foi-se apaixonando por esta ideia de um rockstar jovem. O José Paiva disse no outro dia que ele parecia um guru do Silicon Valley. Deu-me imenso jeito a Carolina repensar, porque, a não ser que tivesse muitas próteses, não poderia fazer uma pessoa de 50 anos.
AB: A conceção visual do personagem imprime a ele uma áurea cool e contemporânea muito diferente da que costumamos ver na tela grande. Como a caracterização afetou o seu processo criativo?
IG: Algumas pessoas na Internet disseram que era meio Jesus Cristo. Eu estava com esse look bloqueado para um filme que só fiz este ano. Uma produção que foi adiada duas vezes. Então, eu não podia mesmo cortar. Mas a Carol gostou da ideia. E depois a roupa. Aquela coisa meio positiva da paz, daquelas pessoas que dão um bocadinho ao Budismo, um bocadinho ao Catolicismo, um bocadinho às religiões pagãs, aos rituais, aos cristais. Na verdade, sabes que misturam um bocadinho de tudo para se sentirem bem. Eu conheço muitas pessoas que vivem nesse tipo de sítio. Normalmente são burguesas que encontram nessa positividade uma maneira de deixar sua consciência mais tranquila. Portanto, esse look veio ajudar também a dar-lhe uma certa tranquilidade, uma certa sensação de dinheiro. É uma pessoa rica, mas não como no Charme Discreto da Burguesia (1972), de Luis Buñuel. É uma pessoa rica da contemporaneidade, que parece despida dos bens materiais, mas é tudo uma grande mentira. Alguém disse que ele está assim vestido, mas tem um relógio super caro e sapatos de fauno da floresta. E tudo isso para mim contribui [para a personagem]. Eu sou um ator bastante afetado por tudo o que está ao meu redor, sejam coisas mais superficiais ou não, com mais intenção ou não. O cenário muda o meu trabalho, a luz muda o meu trabalho. O tipo de atenção que os figurantes me deram – e deram imenso, eram maravilhosos – afetou o meu trabalho. Acho que todos os atores são assim. Eu só tenho consciência disso e aceito enquanto stepping stone para chegar a bom porto.
AB: O pastor Isaac tem uma grande presença em cena, mas não interage tanto com Suellen ou Tiquinho. Como se deu a relação com o restante do elenco sendo você o único português em set?
IG: A montagem é rainha. Eu acho que as cenas que ficaram no filme ou com o tamanho que têm servem completamente a narrativa. Elas criam um retrato certo do pastor e não ofuscam aquilo que é mais importante: a relação mãe e filho. A terapia de conversão é um satélite, é um motivo, não poderia ser o centro. Na verdade, as cenas eram todas maiores e, pelo que me disseram, boas. Foi mesmo uma questão de gestão da narrativa e eu tenho total confiança na montagem. Eu, na verdade, cruzei com o Kauan todos os dias. Ele é um adolescente, que vive no mundo dele. É uma pessoa querida e um ator muito presente. Já com o Caio Macedo, o ator que faz o Ricky, a comunicação fluiu muito bem, ficamos até amigos. Houve coisas muito lindas. A Maeve foi lá no primeiro dia em que eu filmei só para me ver meia horinha a trabalhar e perceber-me Ela fez uma coisa linda que foi ficar todos os dias, pois estava meio que impressionada com o modo que eu estava a lidar com as cenas. E ela ficar lá no set para me ver foi uma força enorme, daí desenvolvemos uma amizade. O Thomas Aquino era o ator que eu conhecia melhor. Sou um grande fã do Bacurau e do Deserto Particular. Acho que ele é um ator genial. À medida que o filme vai tendo o seu percurso, o processo não acaba para os atores. Todos vão tendo as suas fases de dúvidas, e fomos um elenco muito unido, mesmo à distância, nestas fases todas de pós-filme, em que tens de continuar a lutar para que ele ande para a frente.
AB: Uma pergunta para descontrair: afinal, o que era aquele suco que as personagens beberam na terapia de dessensibilização?
IG: Eu não perdi um segundo a pensar sobre isso. É tão estúpido! Uma ideia de suco a partir de fluidos sexuais. Isso não é especificado no filme. Mas percebe-se que vem de vaginas e de pénis. É uma coisa mesmo nojenta. Ele diz que é pasteurizado, mas eu não pensei bem qual era o tipo de composição química. Ele misturou aquilo com um suco de manga e um bocadinho de vodka. Não faz sentido nenhum. E tu encontras esses discursos idiotas em todo lado, seja no YouTube ou nas igrejas.
RF: Queria perguntar sobre esse lado cómico do filme. Já estava muito presente no guião ou foi algo que surgiu mais na realização?
IG: O guião ainda era mais cómico do que o filme. Depois, a montagem acabou por afunilar na relação mais dramática. Algo que é mais funcional do que a sátira nos festivais de cinema, que foi o percurso que o filme acabou por ter. Mas só seria cem por cento dramático se cortassem completamente a minha personagem e da Aline, amiga da Suellen. Porque elas são construídas no guião de forma satírica. A única dificuldade para mim e para Aline foi conduzir aquilo com seriedade e não fazer um show de comédia. A Carolina é muito clara na sua abordagem realista. Se tens uma diretora focada que sabe o que faz, que foi o caso, não é assim tao complicado.
Sobre a minha relação com o guião: primeiro li as minhas cenas na audição no Brasil, e depois li todo mal cheguei a Portugal. Já tinha o trabalho assegurado, e eu fartei-me de rir. Mas lá está, como eu já disse, a montagem é rainha e pronto. Quando se faz cinema de arte, tem de se dialogar com as necessidades dos festivais de cinema, e elas criam restrições ao processo artístico. Como acontece com as pessoas que fazem cinema comercial, têm de se relacionar com ideias do senso comum. Mas como não sou realizador, não tenho de me preocupar.
AB: Qual foi a sua reação assistindo ao filme pela primeira vez? Você estava sozinho, com a equipa e/ou com o público? Conte um pouco dessa experiência (Espectador)
IG: A mim, normalmente nunca me deixam ver o filme antes. É muito raro. Eu também gosto da experiência de ver o filme pela primeira vez na sala e também sentir o que que se passa. A primeira vez que assisti foi no festival de San Sebastián, em Espanha. A sala estava cheia de pessoas que reagiram muito bem ao filme. Ficaram comovidas com as partes dramáticas, e riram com as cenas da Aline e do pastor. A conversa com o público foi longa e divertida também. Eu estava de saia e tudo, estava mesmo a sentir-me super bem. As pessoas estavam confusas, do género: “Mas o ator não é também um homofóbico na vida real?” E eu: “Não sou, ou pelo menos tento não ser.” Mas para mim, o ato de ver o filme é frio. Vejo como um espectador. Quero ter uma opinião coesa acerca do filme todo, acerca do trabalho dos atores todos e de mim, inclusive, como se fosse outra pessoa. Eu gostei bastante do filme.
AB: Com a estreia de Pedágio, muitos portugueses vão passar a conhecer o trabalho de Markowitz. Tem algum realizador(a) português(a) que você gostaria que o público brasileiro conhecesse melhor? (Brasil/Portugal)
IG: Eu não sei muito bem qual é a relação do público brasileiro com realizadores portugueses. Sei que, por causa das coisas do ano passado e do circuito dos festivais, há uma boa fatia que conhece o João Canijo. O meu realizador português favorito é o Pedro Costa, portanto, acho que é sempre benéfico para qualquer pessoa conhecer os filmes dele. Vou dizer um com quem trabalho bastante, que é o Ivo M. Ferreira. É um realizador que fala para o mundo, não só para Portugal. Muitos realizadores estão um bocadinho a falar para a sua rua ou para os seus amigos ou para os críticos do Público. Esquecem-se que, quando crias um filme, é para o mundo todo. O mundo todo pode ver, independentemente da classe e do sítio onde está. E claro, Miguel Gomes, que acabou de ser premiado em Cannes. Além dos meus amigos Daniel Soares e Sebastião Casanova. Há montes de gente, como a Joana Peralta, que tem uma curta-metragem agora que eu adoro. Acho que há muita coisa a vir. E eu acho que sim, esta relação entre Brasil e Portugal é boa e importante.
Alexandre Bispo