A meio de uma brincadeira com Cléo (Louise Mauroy-Panzani), uma criança francesa de seis anos, a babá cabo-verdiana Glória (a soberba Ilça Moreno) recebe por telefone a notícia da morte de sua mãe. A miúda não percebe a princípio, mas a informação é também um alerta: é hora de Glória voltar para casa e, mais especificamente, para os filhos que deixou por lá. Percebendo a dor da filha frente a ausência da amada funcionária, o pai da menina (Arnaud Rebotini) organiza para que elas passem um verão juntas em Cabo Verde antes da inevitável cisão.
A Ama de Cabo Verde, da realizadora francesa Marie Amachoukeli, foi apresentado na Semaine de La Critique do Festival de Cannes e chegou aos cinemas portugueses no passado dia 11 de julho. No cerne da narrativa autobiográfica está uma história de amor e perda que ressoa particularmente com países de passado escravista, assim como o mexicano Roma (2018), de Alfonso Cuarón, e o brasileiro Que horas ela volta? (2016), assinado por Anna Muylaert.
Nessa paisagem que se descortina aos olhos de uma criança, a água do mar é cristalina, o pôr do sol compõe as tardes de brincadeira ao ar livre, e as sensações saltam aos olhos e ouvidos sem que as palavras careçam de tradução. Além disso, animações mudas e em aquarela fazem a transição dos momentos-chave, arrefecendo situações de risco e perigo (em referência confessa ao clássico Mary Poppins (1964) do americano Robert Stevenson).
A chegada de um novo personagem altera esse registo. Cléo deixa de ocupar o centro das atenções e vagueia pela periferia dos espaços, numa posição análoga à dos filhos que Glória tangenciou para poder criá-la. É nessa guinada sentimental, onde a perda da inocência toma frente ao deslumbramento, que Mauroy-Panzini se confirma como força da natureza em cena. Cabendo também uma menção a Fredy Gomes Tavares, intérprete do arredio filho caçula da babá, com quem ela tem seus melhores momentos na longa.
É possível dizer que o cinema de afetos que perpassa as escolhas de encenação constitui ao mesmo tempo uma qualidade e um defeito, furtando o espectador de uma investigação mais profunda sobre a herança colonial. Por mais que, na altura da escrita desse texto, seja difícil cimentar o tanto que A Ama de Cabo Verde irá perdurar na memória, fica o registo de uma sessão de cinema cativante, fluída e – talvez seja esse o diferencial, afinal de contas – essencialmente humana.
*O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.
Alexandre Bispo
[Foto em destaque: A Ama de Cabo Verde, de Marie Amachoukeli © Direitos Reservados]