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Longlegs: Narcisismo Destrutivo

Não há terror convincente e com eficácia sem um passado que o justifique. Sem terreno fértil que lhe conceda razão de ser, limita-se a uma imagética desprovida de conteúdo emocional. Ora, na história do género, se há colheitas prósperas, outras ficam aquém do que se semeou. São as primeiras que merecem uma reflexão mais atenta.

Oz Perkins remete-nos, em Longlegs (2024), para as bonecas-veículo de um mal imparável (Annabelle, Leonetti, 2014), a criança filmada de costas pela neve e iludida do ambiente inofensivo que a circunda (The Visit, Shyamalan), códigos de linguagem (Zodiac, Fincher, 2007), e uma agenda sobrenatural a sobrepôr-se à provável doença mental (The Conjuring: The Devil Made me Do It, Chaves, 2021).

Neste tipo de construções, há por norma alguns elementos em comum, como a frequente incidência do malévolo no seio da família. A invasão do espaço íntimo por um intruso, seja ele o boogieman, uma presença feminina, ou a própria figura do diabo, é largamente explorada na história do cinema de terror:

“A história, em cada caso, também culmina com a possessão demoníaca de um dos protagonistas, que então aniquila (ou tenta aniquilar) os restantes membros da família. Ao utilizar esse ponto do plot com frequência, os filmes enfatizam que a estabilidade assumida da unidade familiar americana está sempre sob ameaça, e que os entes queridos podem ser “possuídos” por forças que querem nada mais do que causar dor e desespero.”1

Longlegs, no plano do argumento, não é inovador à primeira vista e, em boa verdade, não é de hoje que se constata ser tarefa árdua criar mundos apelativos dentro do género. Maika Monroe comprova o seu talento para personificar almas atormentadas (It Follows, Mitchell, 2014) na perseguição de um serial killer atípico, mas a sua personagem vai perdendo ajustamento à história. É humano bloquear memórias, mas será verosímil mostrar alguma apatia logo que as recordações (dilacerantes) surgem?

A particularidade reside quer no prolongamento da acção em cadeia ou mediação, quer no que Perkins (propositadamente?) não explica. A origem do mal abdica de uma intervenção direta para se servir de um autor terrífico que, por sua vez, delega no humano e no ser inanimado. O monstro em campo – um Nicholas Cage exageradamente manipulado na caracterização e que favorece uma ponderação sobre a eficácia do trabalho caso tivesse sido adoptado um registo menos invulgar – evoca o conceito de narcisismo destrutivo, tal é a assunção dos papéis de Deus e pai de família:

“O narcisismo destrutivo sinaliza o ponto em que a inveja e o narcisismo convergem. Ele ocorre quando um adulto ou uma criança, despojados das suas ilusões e incapazes de se esconder de uma realidade intolerável, cedem às forças da destruição. […] As pessoas em questão assumem uma postura de destrutividade omnipotente. Ele ou ela identificam-se totalmente com os lados sádicos do Eu e, assim, tornam-se “o Deus da Morte”.”2

Longlegs, de Oz Perkins © Neon

O encarnado escuro do decesso e os ambientes tétricos inundam-nos a mente. A expressão pessimista e visionária de Lee (Monroe) é catalisadora do medo que, convenhamos, marca presença na experiência. A estética e o poder que a mesma emana representa a conquista de Perkins:: a aposta nas wide-angle lens, que, admita-se, dentro do género, proporcionam o efeito uncanny e a sensação de desconforto que o espectador-alvo procura no visionamento.

A quase imposição (ou, em bom rigor, um saudosismo, difícil de satisfazer) de que haja um reencontro com a solidez, coerência e mestria de Silence of The Lambs (Jonathan Demme, 1991) é só aceitável no plano das expectativas. Vislumbramos em Longlegs, isso sim, uma janela aberta para considerações sobre desajustamento mental e um tributo à recuperação de memórias: só através do desbloqueio do inconsciente, Lee (Monroe) conseguirá juntar as peças. Com toda a justiça, não há cordeiros que gritem como os de Clarice.

* O presente texto encontra-se escrito ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico.

Sofia de Melo Esteves

[Foto em destaque: Longlegs, de Oz Perkins © Neon]

  1.  Murphy, B. M. “It’s Not the House That’s Haunted: Demons, Debt, and the Family in Peril Formula in Recent Horror Cinema”, Ed. Murray Leeder. Cinematic Ghosts. Haunting and Spectrality from Silent Cinema to The Digital Era, Bloomsbury Academic, 2015. Tradução livre.
    ↩︎
  2.  Rosenfeld, H., A clinical approach to the psycho-analytical theory of the life and death instincts: An investigation into the aggressive aspects of narcissism, International Journal of Psychoanalysis. 52: 169-178; republished in E. Spillius (ed.) Melanie Klein Today, Vol. 1., Routledge (1988). Tradução livre. ↩︎

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