Passages (2023), o mais recente filme do norte-americano Ira Sachs, germinou de três desejos do realizador. O primeiro, o de recuperar a intimidade num contexto de pandemia. O segundo, o desejo de filmar o ator alemão Franz Rogowski, depois de o ter visto na cena inesquecível de karaoke em Happy End (Michael Haneke, 2017). O terceiro surge quando Ira Sachs, já tendo iniciado o processo de escrita de Passages, assiste ao último filme de Visconti, L’innocente (1976). No encontro com a obra italiana, além de descobrir o poder dos triângulos amorosos, Sachs, um homem gay, sente-se atraído pela atriz Laura Antonelli — o que o faz repensar os limites da atração e da sexualidade.
Engana-se quem pensa que este cocktail libidinal tem um sabor fresco e doce. Passages é um filme com um ligeiro travo frutado, mas o aftertaste é certamente amargo. Se Sachs se projeta na personagem principal, um jovem realizador chamado Tomas (Rogowski), fá-lo criando a pior versão de si mesmo, que habita o pesadelo de uma triangulação queer.
Começamos no set do filme-dentro-do-filme, que também se chama Passages. Uma longa de época pouco promissora, onde Tomas, excêntrico e inconsequente, dá ordens a um elenco aterrorizado. Logo nos primeiros minutos ficamos com a impressão de que o protagonista é uma pessoa — usando uma palavra querida da contemporaneidade — tóxica. Dir-se-ia um casamento feliz entre ator e personagem, já que a presença translúcida de Franz Rogowski costuma trazer consigo uma certa inocência e fragilidade.
Na festa que celebra o fim da rodagem, Tomas encontra-se com o seu companheiro, Martin (Ben Whishaw), um jovem artista gráfico, recatado e elegante. Martin está cansado e não quer dançar, mas Agathe (Adèle Exarchopoulos) satisfaz a vontade de Tomas. Algum tempo depois, os seus corpos abandonam a pista e continuam a “dançar” em privado. Na manhã seguinte, de regresso ao apartamento parisiense onde vive com Martin, Tomas diz ao companheiro: “Tive relações sexuais com uma mulher. Posso falar-te disso, por favor?”. Não é claro se o casal tem uma relação aberta, mas a abordagem de Tomas é desprovida de qualquer empatia. E acrescenta: “senti algo que não sentia há muito tempo”. Surpreso, mas cansado, Martin acaba por dizer que “está tudo bem, a sério” e que vão superar isso juntos.
O que se segue é uma análise atenta e sem julgamentos de um ménage à trois condenado. À honestidade fassbinderiana com que Sachs retrata as fraquezas da carne e do coração, soma-se um olhar observacional. O enredo económico cede espaço à extraordinária vulnerabilidade dos atores. O realizador está interessado em documentar o trabalho (invisível) de um elenco de luxo, daí que Passages seja um filme sobre o presente, com poucos momentos ensaiados. Na cena em que vemos Agathe na cama a cantar para Tomas, não é só a personagem de Adele a cantar aquela música pela primeira vez, como a própria atriz.
Em vários momentos, a cinematografia de Josée Deshaies intensifica com subtileza e precisão o trabalho dos atores, como aquando dos grandes planos em que Tomas e Agathe se abraçam. Há que destacar também o momento em que o protagonista anuncia ao companheiro o desejo de ter outra relação. Essa partilha acontece encapsulada num quadro frio e atrofiante: Tomas ocupa o primeiro plano, enquanto Martin praticamente desaparece na cama, colocado ao fundo e parcialmente oculto pelo corpo de Tomas. Dramaturgicamente, a gramática do plano catalisa a dinâmica emocional do casal, amplificando a tensão entre o desejo avassalador de Tomas e a anulação emocional de Martin.
A crueza observacional do filme é ainda mais evidente, quando Sachs deixa a câmara participar desta triangulação tempestuosa, filmando longas sequências de sexo entre Tomas e Martin, bem como entre Tomas e Agathe. O olhar explícito das cenas de sexo serve a narrativa de forma ainda mais explícita, refutando as polémicas em torno da gratuitidade do filme. A fluidez com que Tomas e Martin se tocam diz-nos tudo o que precisamos de saber sobre os anos que passaram juntos. Já os primeiros momentos de intimidade entre Tomas e Agathe fazem-nos acreditar na descoberta fulgurante que estão a viver.
De facto, as cenas de sexo são alguns dos momentos de maior intensidade dramática em Passages, funcionando como um subterfúgio para as personagens e o espectador. Mas, quando os corpos deixam de se entender pelo toque, voltamos sempre à maneira angustiante com que Tomas, infantil e manipulador, navega as suas Passagens, de uma relação para a outra, entre Martin e Agathe. Um vilão bissexual cujas ações são guiadas por impulsos egoístas e destrutivos, que violentam as fronteiras éticas do desejo. De que maneira as leis do desejo se relacionam com a ideia de transgressão? De que formas se pode viver uma sexualidade fluida, como um nómada que é ecológico em cada interação? O filme não responde; apenas perturba. (Alguém que ofereça ao Tomas o livro The Ethical Slut: A Practical Guide to Polyamory, Open Relationships & Other Adventures).
As cenas finais entre Tomas e Martin são marcantes pela profundidade da atuação de Whishaw, que imprime no ecrã uma vulnerabilidade extrema, expressando o sofrimento contido e a decepção acumulada de anos em poucas palavras e olhares carregados de mágoa. Cada gesto e silêncio comunicam mais do que o próprio diálogo. É igualmente comovente o encontro entre Martin e Agathe, que permite um raro momento de conexão humana no filme. Este encontro surge como um intervalo onde, pela primeira vez, testemunhamos empatia entre dois personagens que se encontram no sofrimento um do outro; um vislumbre de solidariedade que contrasta com o egoísmo que permeia a restante história.
Importa ainda mencionar a última cena. Depois de finalmente se aperceber que destruiu a vida dos seus amantes e que está sozinho, Tomas surge a pedalar noite adentro pelas ruas de Paris. As suas expressões são milimetricamente ambíguas: às vezes quase sorri, outras quase chora. No instante final, o seu rosto em grande plano pinta-se do vermelho de um semáforo. Finalmente pára. O seu olhar ergue-se para a luz e o movimento congela num freeze frame, suspendendo a sua fuga. A imagem suspensa faz com que o movimento do filme continue na especulação dos espectadores: será que esta paragem perpetuará para sempre a má índole de Tomas, ou será que a travou e existirá a possibilidade de uma redenção? Este instante lembra, claro, o desfecho icónico de Les quatre cents coups (François Truffaut, 1959), onde o jovem Doinel, alcançando o mar, também é capturado num momento de indefinição e incerteza. No cinema e na vida, duas crianças à procura de uma saída, aprisionadas pela sua própria narrativa.
Those who run seem to have all the fun
I’m caught up, I don’t know what to do
Hung Up, Madonna
João Garcia Neto
[Foto em destaque: Passages, Ira Sachs © Direitos Reservados]