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Freud’s Last Session: Associação Livre de Ideias  

Em diálogo profundo, Sigmund Freud expõe-se a C.S. Lewis e C.S. Lewis expõe-se a Sigmund Freud. Não estamos certos se foi assim fora do argumento cinematográfico, mas os temas debatidos são, inegavelmente, os que moveram os pensamentos do pai da psicanálise.

Deste lado, não atingimos as duas horas de confronto entre as duas personagens (o tempo da conversa no filme vai bem para além disto) e sucedem-se os conceitos: memória, interpretação, sexualidade, religião, fé e dúvida, sonho, trauma, patologias, controlo. As teorias, essas, são afloradas à superfície (afinal, trata-se de uma obra do cinema, não de uma tese académica): o nosso medo terrível perante a finitude, os desejos que nunca são satisfeitos, a imaturidade e imperfeição do ser humano.

Numa análise recíproca em que se manifestam crenças, admitem falhas nas construções intelectuais, deduzem acusações e confessam vulnerabilidades, nesse confronto aceso entre Freud (Hopkins) e Lewis (Goode), vai-se entranhando, delicada e quase imperceptivelmente, uma convergência de emoções e mútua aceitação, não obstante a conflitualidade colocada a nu.

O início desta história mostra-se, desde logo, comprometido com o campo da feminilidade, uma vez que a sala que ambos os eruditos ocuparão durante a maior parte da obra, recebe, na primeira cena, o corpo de Anna Freud (Liv Fries). Ao longo da história, a essa imagem corporal são adicionadas outras camadas: a contribuição académica (o desenvolvimento da psicanálise infantil), o transtorno de apego ou a obediência patológica, e a sua orientação sexual. E, na verdade, é impossível desconectar estes elementos, na medida em que o filme nos dá a conhecer uma mulher cuja posição de autoridade no meio científico (e no contexto da época, no que ao género respeita) cede rapidamente perante a fragilidade dos estados mentais de pai e filha. A debilidade de um monstro parental (um pai ciente do mundo a que pertence, ainda que tão confuso nas emoções quanto o Hopkins de Florian Zeller1), psicológica e fisicamente subordinado ao referente feminino, orienta o arco (também ele submisso) de Anna. O que decide ela? Do que se despoja? Para onde se dirige? Que vicissitudes a atrasam? Leiam-se também aqui vicissitudes (ou contrariedades, frustrações) como o princípio da realidade2 causador da procrastinação amorosa de Anna e Dorothy. E, afinal, quem melhor representa, neste tema, o adiamento do prazer senão o pai da psicanálise?

Freud’s Last Session, de Matt Brown © Sony Pictures Classics

Paralelamente, imersos em reflexões sobre Deus e os homens, surgem-nos dois catedráticos: Freud, em clara defesa da inexistência do Pai (que, a ser real, destruiria sem piedade a raça humana) e C.S. Lewis, apologista da religião Cristã, embora sem fundamentalismos e monumentais contra-ataques na argumentação. Com efeito, assistimos a um tolerante e empático Lewis que, talvez encarando o seu interlocutor como mais uma personagem alegórica de The Pilgrim’s Regress (1933), reage à revolta de Freud sem exasperação. Respeita-o no pior do seu ateísmo e alia-se ao combate do seu sofrimento, provocado pela doença dos últimos séculos. E entre sonho e memória, acusações e expressões sarcásticas, aguarda-se por notícias de uma guerra que, por vontade de Deus ou imaturidade do Homem, terminaria seis anos depois.

De Freud’s Last Session (2023), apesar das diferenças e desvios psiquiátricos, resulta a sobrevivência dos valores. Sob o manto do intelectualismo, a empatia pelo Outro é comum a ambos os doutrinários. Em lume brando, cozinha-se uma observação bilateral onde ficam visíveis as fraquezas inerentes ao género humano – “I’m inherently flawed” (Freud). Ao professor Lewis descobrem-se um evento traumático e suas sequelas, as objecções na fé e uma relação íntima confessada a medo. Numa inversão de papéis, agora com o psicanalista no lugar do paciente, surge o cepticismo, a negação, as contradições3 e a necessidade de controlo (da filha e da própria morte – If you want to endure life, prepare yourself for death 4).  

Freud’s Last Session não é arrebatador – já o subvalorizado Freud (1962, John Huston) é uma obra com maior profundidade -, e os recursos a alguns simbolismos a acompanhar a viagem de Lewis não abraçam o carácter intuitivo que se pretende para alcançar o espectador. As referências conceptuais afiguram-se, por vezes, ligeiramente impostas ao discurso. É de realçar, no entanto, a inclusão de flashbacks e estados oníricos aptos a engrandecer o que se conhece sobre Freud. Ainda assim, o dispositivo só seduz aqueles que se dedicam ao estudo da vida e obra do génio e, após o visionamento, têm o desejo de, no divã, navegar pela temática.

* O presente texto encontra-se escrito ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico.

Sofia de Melo Esteves

[Foto em destaque: Freud’s Last Session, de Matt Brown © Sony Pictures Classics]

  1. The Father, 2020. ↩︎
  2. Freud, S. (1911) Formulations on the Two Principles of Mental Functioning. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud 12:213-226. ↩︎
  3. É o mesmo homem o que teoriza a natureza sexual da criança e, simultaneamente, se refere a Anna (com mais de quarenta anos), como sendo demasiado jovem para ter sentimentos sexuais? ↩︎
  4. Freud, Sigmund. Reflections on War and Death. Tradução de A. A. Brill e Alfred B. Kuttner. New York: Moffat, Yard & Co., 1918. ↩︎

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