Depois de Mãos no Fogo (2024), de Margarida Gil, exibido na secção Encounters, chega-nos mais um filme com mão portuguesa, desta vez exibido na secção Forum: Resonance Spiral (2024), montado pela portuguesa Filipa César e pelo artista transdisciplinar guineense Marinho de Pina (não realizado, uma distinção importante que os “montadores”, como serão considerados daqui para a frente, fazem questão de destacar). É uma co-produção portuguesa, guineense e alemã.
A obra documenta a construção do edifício Abotcha, em Malafo, uma aldeia tradicional da etnia Balanta, na Guiné-Bissau. O edifício acolhe a Mediateca Onshore desde 2023, no âmbito do projeto Luta ca caba inda, ou “A Luta ainda não acabou”. Filipa César está a trabalhar neste projeto desde 2011 (Marinho de Pina entrou mais tarde, em 2017), que partiu da iniciativa do conhecido realizador guineense Sana na N’hada e tem como principal desígnio a reconstrução da memória audiovisual do movimento de libertação da Guiné-Bissau e torná-la acessível ao público. O projeto segue também os workshops e atividades desenvolvidas nesse edifício, dirigidas à comunidade e centradas nas práticas agropoéticas da associação de mulheres agricultoras Satna Fai.
O ponto de partida é um destes workshops, mais especificamente, sobre educação militante, no qual estão presentes pessoas de todas as idades daquela comunidade. É afirmada a importância duma educação virada para a natureza, que tenha em conta a própria cultura local, por contraponto com a educação colonial, virada para a metrópole e responsável pela predominância do analfabetismo na população. Este início situa o foco no espaço, naquele espaço, como se estivéssemos perante o ponto onde começa a espiral que o título introduz. Mas também inaugura já a importância do tempo – o peso do passado, a forma como ainda se faz manifestar nos tempos de hoje.
E falando no passado, o que vemos a seguir é a construção do edifício Abotcha, que, ao acolher a Mediateca, acolhe, claro, um arquivo – acolhe um passado em permanente risco de ser perdido, que é preciso salvaguardar e com o qual é preciso contactar. Esse contacto com o passado é feito, neste momento, através de imagens de arquivo. Começamos por ver as pessoas a trabalhar; as suas mãos em grande escala, mergulhadas na lama, aproximam-nos da intensa fisicalidade do trabalho. Uma dessas pessoas fala-nos sobre o trabalho forçado de que foi vítima antes da independência. Ao mesmo tempo, começam a ser mostradas imagens de arquivo de trabalho forçado desta época, num ecrã circular sobreposto no centro da tela, numa especificidade formal que introduz o elemento basilar (e titular) deste filme – a noção de circularidade. Esta está presente não só na forma como são apresentadas as imagens de arquivo, mas também na forma como são referidos os nomes a quem é dado espaço de fala. Sobretudo, está presente na própria vivência das pessoas daquela comunidade.
Num workshop de canto a que temos acesso, vemos como as pessoas estão organizadas num círculo, próximas umas das outras. Mais tarde, vemos a mesma organização espacial enquanto mulheres ouvem uma gravação de Carmen Pereira, uma das mais importantes membros do PAIGC e essencial na luta pela independência da Guiné-Bissau, a falar sobre as dificuldades das mulheres na reconstrução do país no período pós-independência (para citar Marinho de Pina na conversa após a exibição do filme, usar o termo “pós-colonial” é “como chamar uma mulher divorciada pelo nome do seu ex-marido” e desvaloriza a luta que permitiu a independência). A circularidade possibilita a comunhão, mais do que a demonstração das pessoas desta aldeia no seu espaço.
Ao mesmo tempo, a circularidade representa uma comunhão no tempo; ou melhor, a comunhão de diferentes temporalidades, onde o passado e o presente se sobrepõem e confundem. Como já referido, as imagens de arquivo surgem em vários momentos sobrepostas, em forma de círculo, no centro da tela. É o passado a ser convocado ao presente, e os dois contagiam-se mutuamente nessa sobreposição. Essa convocação é também feita através do som, na gravação de Carmen Pereira, mas também numa gravação de Amílcar Cabral, em que este defende a igualdade entre sexos como caminho para o progresso numa Guiné-Bissau independente. Em ambos momentos, o som é emitido por uma aparelhagem que se encontra numa árvore oca, como que ressoando (o título revela-se operativo) a partir das raízes do passado e libertando-se no presente, afetando-o.
Não há qualquer referência ao futuro, pois este não importa. O foco é atuar no presente. Os montadores afirmam-no mergulhados na lama, imitando o saltador-de-lodo, símbolo da Mediateca, embrenhados de tal forma na vida desta comunidade. Porque o que está aqui em causa é, precisamente, o próprio modo de vida desta comunidade e a maneira como se relaciona com o mundo (daí que os montadores recusem o termo “realização”). A forma do filme, construída nesta contaminação circular entre passado e presente, aproxima-nos dessa relação e faz-nos sentir a temporalidade cíclica, cósmica, em sintonia com a Natureza. Desta forma, o filme constitui o mais importante dos arquivos, uma obra poética de ligação ao mundo.
Nuno Gaio e Silva