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23ª MONSTRA (2024) Festivais de Cinema MONSTRA

A esperança num mundo melhor em Quatro Almas do Coiote

O húngaro Áron Gauder regressa à competição de longas-metragens do Festival MONSTRA com o filme Quatro Almas do Coiote (já tendo participado na edição de 2005 com o seu aclamado filme O Distrito). 

Quatro Almas do Coiote é informado pelos mitos e lendas de várias tribos nativo-americanas. O realizador teve a oportunidade de justificar a sua ligação a estes numa sessão de perguntas e respostas após o final da sessão. Gauder explicou que, na Hungria comunista, participou em acampamentos que procuravam promover uma comunhão com a natureza num ambiente de liberdade. Estes acampamentos eram organizados pelo músico Támas Cseh, estudioso das culturas nativo-americanas e autor de um livro para crianças que reúne vários mitos nativo-americanos. Ora, foi, precisamente, a partir deste livro que surgiu a Gauder a ideia de realizar um filme de animação, condensando elementos de várias lendas protagonizadas pela personagem titular do filme (o realizador mencionou, inclusive, que estas lendas são recorrentes em tribos nativo-americanas do Canadá ao México, tal é a sua transversalidade). Esta “condensação” também levanta questões, mas Gauder fez questão de frisar que consultou várias tribos nativo-americanas e procurou o apoio de produtoras norte-americanas e canadianas, que rejeitaram o filme considerando-o “demasiado sensível”. É relevante mencionar ainda que a dobragem em inglês foi feita por vozes nativo-americanas e que grande parte da banda sonora foi composta por músicos nativo-americanos.

Quatro Almas do Coiote, de Áron Gauder © Direitos reservados

O respeito do realizador por esta temática está presente a partir do primeiro momento da narrativa, onde se dá um protesto contra a construção de oleodutos que arrasaria toda uma floresta. Este momento (inspirado por protestos reais no Dakota do Norte em 2016) é um pretexto para a narração do mito da criação com base nas várias lendas nativo-americanas, centradas à volta de duas figuras essenciais: o Velhote (“Oldman”) e o Coiote. É nesta parte que vemos como a animação é especialmente adequada à representação deste tipo de narrativas, sendo capaz de criar imagens belíssimas repletas de cores, quase caleidoscópicas, duma criatividade imensa. A construção destas imagens sugere já uma visão holística do mundo, na qual todos os seus elementos se encontram numa singular e mágica harmonia. A animação presente no resto do filme procura meramente assegurar a inteligibilidade das peripécias da narrativa, sem ter a oportunidade de mergulhar novamente numa certa abstração. O desenho não deixa de ser prazeroso ao olhar (sobretudo no que toca às imagens da paisagem), mas não consegue alcançar a criatividade presente no início. 

Quatro Almas do Coiote, de Áron Gauder © Direitos reservados

A paisagem acaba por ser a fonte de toda a afecção, enquanto espaço de harmonia entre todos os animais (incluindo a pessoa humana) num estado de horizontalidade que vai sofrendo sucessivas disrupções promovidas pelo divertidamente perverso Coiote. A conexão com a paisagem e com o mundo determina a filosofia de vida das tribos nativo-americanas e o filme consegue incluir-nos nessa relação porque todos pertencemos à Natureza. 

A mensagem é direta e clara porque precisa de o ser. Gauder recorre à concepção de mundo das tribos nativo-americanas para a colocar como modelo ideal de relação com a Natureza, essencial à própria sobrevivência da Humanidade. Daí que o filme comece e termine com o protesto contra a construção dos oleodutos, num apelo ao diálogo e à conciliação, pois estamos todos na mesma posição. Neste sentido, estamos perante um objeto mais poderoso na sua dimensão política do que fílmica.

Nuno Gaio e Silva

[Foto em destaque: Quatro Almas do Coiote, de Áron Gauder © Direitos reservados]

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