Será entre um crescendo de tensões que a Berlinale terá lugar este ano. No ano corrido desde a última edição, o instável clima político apenas se tem tornado mais tempestuoso, sobretudo depois da ofensiva israelita sobre Gaza, que contribuiu para um ainda maior extremar de posições na Alemanha. O festival, em setenta e quatro anos de história, nunca se inibiu de afirmar a dimensão política que um evento destas dimensões comporta por inerência. Pelo contrário, as suas vozes sempre fizeram da defesa dos valores democráticos, do respeito pelos direitos humanos e atenção às questões sociais as principais bandeiras que o distinguem de outros festivais de cinema.
Esse compromisso, reiterado este ano pelos diretores cessantes Mariette Rissenbaek e Carlo Chatrian, impede que o festival seja indiferente aos tantos problemas que o rodeiam. Foi nessa linha que a dupla tomou a decisão de “desconvidar” cinco membros do partido de extrema-direita alemão AfD. O convite a estes políticos foi feito por razões protocolares, no âmbito de um convite formal a todos os deputados, de todos os partidos, do estado de Berlim. Porém, recentemente, vieram à luz revelações da existência de reuniões do partido AfD com grupos neo-nazis, bem como de um plano para deportações em massa, caso o partido chegue ao poder. Isto levou a um conjunto de manifestações contra a extrema-direita por toda a Alemanha, às quais o festival não ficou alheio. Face a essas pressões, foi então tomada a decisão de rescindir os convites a deputados desse partido. “Especialmente à luz das revelações que foram feitas nas últimas semanas sobre posições explicitamente anti-democráticas e políticos individuais do AfD, é importante para nós – como Berlinale e como equipa – tomar uma posição inequívoca a favor de uma democracia aberta”, afirmaram os diretores em comunicado à imprensa.
Antes desta questão, já o festival defendera a liberdade de expressão e movimento para os realizadores iranianos Maryam Moghaddam & Behtash Sanaeeha. O seu filme, My Favourite Cake, foi selecionado para a secção Competição, mas os realizadores encontram-se proibidos de viajar e são alvo de um processo judicial pelo seu trabalho enquanto cineastas. As dificuldades no diálogo com o Irão têm sido um tema recorrente, não sendo a primeira vez que cineastas iranianos são proibidos de participar no festival. Lembramos os casos de Jafar Panahi e Mohammad Rasoulof, vencedores do Urso de Ouro em 2015 e 2020, respetivamente.
Mais recentemente, no dia 13 de fevereiro, a dois dias da abertura, o festival foi impelido por uma carta aberta, escrita por trinta colaboradores, entre programadores e moderadores das várias secções, a tomar uma posição mais clara no que toca à ofensiva israelita sobre Gaza. “Enquanto o mundo assiste a uma perda inconcebível de vidas civis em Gaza – incluindo as de jornalistas, artistas e trabalhadores do cinema – bem como à destruição de um património cultural único – precisamos de posições institucionais mais fortes”, é possível ler na carta. Esta considera insuficiente a declaração de solidariedade para com as vítimas das crises humanitárias divulgada pelos diretores em meados de janeiro, aliada ao projeto “Tiny Space”. Este projeto consistirá no estabelecimento de um pequeno espaço, próximo da passadeira vermelha, destinado especificamente a um diálogo mais pessoal sobre o conflito entre Israel e Palestina, entre os dias 17 e 19. De reconhecer ainda que será exibido, na secção Panorama, o filme No Other Land (realizado pelos ativistas Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor), um documentário sobre um jovem ativista palestiniano e a sua improvável aliança com um jornalista israelita na resistência à ação destruidora do exército israelita. Até ao momento da escrita deste artigo, não houve resposta do festival à carta aberta.
Num plano ainda mais contestatório, dois realizadores, Ayo Tsalithaba e Suneil Sanzgiri, retiraram os seus filmes (Atmospheric Arrivals e Two Refusals, respetivamente) da secção Forum Expanded em solidariedade com a Strike Germany, uma petição online de origem anónima que defende o boicote de todas as instituições culturais apoiadas pelo estado alemão devido à posição pró-Israel deste último, nas quais se inclui a Berlinale.
Nuno Gaio e Silva