Man In Black — Dentro da memória, a nudez

A 21ª edição do DocLisboa abriu oficialmente com Man in Black (2023), o mais recente filme de Wang Bing — um habitué na programação e no palmarés do festival, desde a sua 1ª edição. Neste trabalho atipicamente curto (61 minutos), o realizador chinês filma o compositor e maestro Wang Xilin, ostracizado durante a Revolução Cultural, por ter lutado pela liberdade da sua voz artística, em suposta dissonância com o poder de Mao.

Não é a primeira vez que Wang Bing realiza um “filme testemunhal” que se foca na história conturbada do país e nos efeitos perversos da utopia comunista chinesa, através do retrato de um só personagem. Lembremo-nos de Fengming: Memórias de uma Chinesa (2007), onde, à exceção de alguns planos de transição, estamos do princípio ao fim do filme confinados à imagem da Sra. Fengming que, sentada na sua sala de estar, nos narra a experiência da sua prisão num campo de trabalho durante a campanha “anti-direitista” chinesa (1957-1959). Na economia visível do filme, há espaço para que as palavras da mulher revelem uma torrente de outras imagens — invisíveis, mas maravilhosamente nítidas na sua fantasmagoria. É esta uma das grandes qualidades de Wang Bing: “caçar” personagens reais, cuja presença e discurso superam qualquer ficção imagética, de tão translúcida que é a sua aura, o seu ser.

O encontro do realizador com Wang Xilin é mais uma prova disso, ainda que desta vez Wang Bing se tenha afastado formalmente dos seus trabalhos anteriores. Não só pela redução expressiva da duração, como pela aproximação à encenação. Em Man in Black, o realizador suprime em certa medida — ou, melhor, na medida certa — a distância com que costuma filmar os seus personagens. Em várias entrevistas, Wang Bing tem chamado a este trabalho não um documentário, mas uma peça de vídeo arte. Parece que o realizador quer manter os seus restantes filmes — “verdadeiramente documentais”, pelo seu registo observacional e a sua monumentalidade duracional — num lugar imaculado. Mas, claro, não entendamos esta distinção como uma oposição estanque entre o documentário e a ficção, numa concepção binária simplista. É que mais do que um contentor limitado de convenções formais que permitem o verosímil, o documentário diz respeito a um campo aberto do cinema que possui um vínculo retórico e ético com a representação do real. Sendo que do cruzamento entre o mundo factual e a sua compreensão subjetiva podem resultar “realismos” muito estranhos — ou maravilhosamente estranhos, pela verdade íntima que carregam. Para não falar que num “filme testemunhal” como este, onde não se filma a realidade em curso, estamos sempre no domínio da imaginação e da narrativa. Continuamos próximos de uma ideia de documentário, porque ainda há algo que se documenta: o exercício da memória. Não se estranhe, então, que ao retratar as memórias de um músico, Wang Bing tenha ido além do relato oral e das imagem-documento que seguem pacientemente os personagens nos seus habitats naturais, encontrando numa quase-ficção brechtiana a possibilidade de iluminar com verdade a história de Wang Xilin.

Uma imagem com vestuário, Cara humana, microfone, pessoa

Descrição gerada automaticamente
Sessão de Abertura DocLisboa 2023 © Gonçalo Castelo Soares

Antes de entrar no filme, importa falar do que aconteceu antes, fora do ecrã. O músico de 86 anos — atualmente exilado na Alemanha — esteve presente na sessão. Wang Xilin subiu ao palco do Cinema São Jorge e, num longo e emocionado discurso, adiantou parte da sua narração no filme sobre as histórias do seu povo e da sua vida: relatos de perseguições, prisões e tortura contra os “direitistas”. A certa altura, as suas palavras são interrompidas pelo silêncio dos seus gestos. O músico afasta-se do micro, curva o tronco e lança os braços para trás, demonstrando como fora torturado num campo de trabalho. Quando esta performance ao vivo termina, Xilin abandona o palco e junta-se ao público na plateia lotada da Sala Manoel de Oliveira. A projeção do filme começa e dá-se um raccord curioso entre o espaço exterior ao ecrã e o espaço profílmico. No filme, o músico (res)surge a vaguear, precisamente, pelas cadeiras de uma sala de espetáculos, mas agora estamos no famoso teatro parisiense Bouffes du Nord, a plateia está vazia e Xilin está completamente nu. A sua deambulação pelos balcões e os corredores do teatro termina no centro do palco, onde (re)vemos num loop expressivo a coreografia que evoca os momentos em que fora torturado. Incessantemente, a câmara vai desenhando círculos em torno do seu corpo em movimento, ocupando-se de fixar as marcas da violência na sua pele, qual palimpsesto de violência e resistência. Recalcando o desenho circular do palco, a câmara também consegue transmitir o sufoco de um homem preso no trauma que ainda o cerca e, ao mesmo tempo, o ciclo da História que continua a impor o seu exílio. Durante os primeiros trinta minutos, o filme existe neste nível de abstração, sem uma única palavra. 

Eventualmente, as sinfonias de Xilin preenchem o espaço cénico. Este acrescento é um momento libertador para o espectador e, claro, a música foi a forma com que Xilin conseguiu ele próprio libertar-se da opressão do regime. Com as suas composições não quis produzir a possibilidade de um escape evasivo, mas de uma catarse política. Foi pela música que conseguiu cumprir a urgência em transmitir as imagens da violência que viveu e testemunhou. Quando Xilin abandona o palco e se senta na plateia, como um espectador de si mesmo, ocupa-se de nos traduzir por palavras o que ouvimos. Os pontos altos do seu discurso revelam a dimensão documental da sua música. Às tantas, o compositor explica como conseguiu «representar o metal das grades da prisão», ou com que «materiais» fixou um gesto de tortura. E continuamos a ouvir as suas sinfonias que, às vezes, abafam o seu discurso, completando as imagens invisíveis que já se estavam a formar no ecrã. Nestes momentos, certeiramente, a câmara vai-nos mostrando o pé suspenso e dançante do compositor que, de pernas cruzadas, parece estar sempre a conduzir uma orquestra enquanto fala. Apetece dizer: as suas palavras são música feita de notas que são imagens. Todo o filme se sustenta neste admirável jogo sinestésico.

Uma imagem com Cara humana, captura de ecrã, retrato, mandíbula

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Man in Black, Wang Bing © Direitos Reservados
Uma imagem com vestuário, pessoa, homem, edifício

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Man in Black, Wang Bing © Direitos Reservados

De regresso ao palco, Xilin continua o seu testemunho visceral tocando as suas composições  num piano de cauda, cantando a sua história e uivando a sua dor. Mas nesta performance que é um filme, há também “vazios” — não menos viscerais. O mais expressivo acontece quando o realizador decide filmar uma ida do músico à casa de banho. Acontecem outros, sempre que Xilin volta a deambular em silêncio entre as luzes (pontuais) e as sombras do teatro. Não restam dúvidas: o espaço deste objeto fílmico tem tanto de físico como mental. O teatro Bouffes du Nord é o lugar da memória de Wang Xilin, e a memória é um espaço feito de fragmentos e “vazios” — elementos que compõem o espaço de uma ruína que se tenta reanimar, ou reconstruir, no momento da lembrança. Já Cícero tinha entendido a memória como uma arquitetura real. Em Man in Black, Wang Bing dá-nos o privilégio de viajar para dentro da mente de Wang Xilin, de habitar a arquitetura da memória de um homem que nos recebe nu, vestido apenas de revolta e coragem.

João Garcia Neto

Os espíritos da luta encarnados em Fogo no Lodo

Uma noite de trovoada no meio da vegetação densa e o ressoar dos relâmpagos, fazem lembrar as rajadas de tiros na guerra. Formigas correm, atropelando-se, seguindo o ritmo do seu trabalho, qual comunidade apressada. O cenário é a Guiné-Bissau nos dias de hoje, sob  o olhar de dois cineastas portugueses, quase 50 anos depois da independência daquele país. Aos poucos, vão surgindo objectos que procuram estabelecer o olhar inevitável e protelado, sobre a guerra nas antigas colónias portuguesas, e os vestígios remanescentes dessa época. Seja na ficção ou no documentário, regressar a esse tema, torna-se de importância extrema, e voltar aos países africanos que tiveram sob domínio português para perceber a evolução pós-colonial desses territórios, tem sido centro de vários filmes estreados em Portugal ao longo dos últimos anos. É o caso deste Fogo no Lodo, de Catarina Laranjeiro (investigadora do instituto de história contemporânea da NOVA FCSH), e Daniel Barroca (artista visual), que estreou na competição portuguesa do 21º Doclisboa.

Há décadas que Portugal adia um longo debate de dimensão nacional que é essencial para a percepção que hoje se tem daquilo que foi essa guerra. Esse tempo vive como fantasma na nossa memória colectiva, através dos testemunhos daqueles que a viveram na pele. O que é proposto em Fogo no Lodo é um olhar atento e presente em Unal, uma aldeia de produtores de arroz, onde surgiram os primeiros a envolver-se na revolta armada e na luta pela libertação da Guiné-Bissau.

Fogo no Lodo, Catarina Laranjeiro, Daniel Barroca © Direitos reservados

O trabalho de Catarina e Daniel, prende-se na tentativa de perceber a espiritualidade daquele povo e de como isso os terá conduzido para a luta. Na forma como a comunidade se organiza, nas danças dos mais jovens, nos rituais dos velhos e nos cânticos das mulheres, transparece uma comunidade que se ergue para enfrentar espectros do passado. Entre o lado religioso e político, entre aqueles que lutaram na guerra e os novos que só herdaram os testemunhos e as marcas deixadas no país, registam-se as conversas sobre as memórias da guerra, rodeadas pela beleza profunda da natureza e pelos semblantes vincados pelo tempo do trabalho na produção de arroz. Todo um ciclo de trabalho colectivo, por vezes ainda longe do nosso discernimento.

No que toca à ética de trabalho de um cineasta, há sempre uma tensão que é preciso gerir, quando a voz daquelas populações é guiada por aqueles que sempre tiveram voz. Impõe-se um olhar directo, honesto, de igual para igual, que evite cair na tentação de esteticizar e criar uma imagem baseada nas nossas concepções. É preciso se prestar a ver e ouvir. O que fica notório ao ver este filme é esse lugar da câmara e, consequentemente, o lugar do espectador. Sem intertítulos explicativos ou qualquer voz a narrar, para lá da voz dos que estão representados, Fogo no Lodo é uma sequência de cenas marcadas por essa distância, puramente observacionais do trabalho na aldeia, dos relatos sobre o passado, e dos momentos de convívio ao som da música e dos dispositivos eletrónicos que, aos poucos, invadem aquela aldeia. Há um cuidado para não se deixar deslumbrar pela beleza da natureza e das pessoas daquela aldeia. Porém, talvez essas cautelas também impeçam o filme de ir mais ao encontro da temática de que parece querer aproximar-se, acabando por transmitir uma visão contida da relação da câmara com as pessoas – ou das pessoas com a câmara -, que mesmo alguns planos mais aproximados não conseguem disfarçar. Ficamos com a ideia de que era preciso mais tempo na aldeia de Unal, para que o filme se tornasse mais do que um apanhado do quotidiano dos guineenses. Recolha valiosa sim, mas pouco cinematográfica.

Fogo no Lodo, Catarina Laranjeiro, Daniel Barroca © Direitos reservados

O intuito de fazer uma recolha da cosmologia política de uma aldeia com cerca de 500 habitantes, reflecte-se aqui sob esse olhar antropológico, com uma fotografia cuidada, pouco saturada, e um desenho sonoro que ganha destaque pelo uso hábil das vozes e narrativas das pessoas. Vozes que, muitas vezes, só na montagem puderam entender, pela barreira imposta pela língua.

Tentando, ainda assim, ser terreno para levantar discussões prementes, sai-se da sala com a consciência de que se viu algo importante, feito com cuidado e atenção, fulcral para que o diálogo de lembranças perdure e nos consiga trazer mais conclusões e informação sobre uma guerra, cujas atrocidades e crimes, estão ainda longe da percepção pública. E em defesa do filme, talvez não possa ser de outra forma: como uma escuta atenta, sem floreados ou visões quiméricas, onde transparece a sensibilidade dos realizadores.

Ricardo Fangueiro