A entrada de Handling the Undead (2024) presenteia-nos, desde logo, com uma aura de peso atípico. São os sujeitos destruídos, os objectos negligenciados, as acções praticadas com enfado, mas também o Deixa Dizer dinâmico de Cláudya a denunciar o que lhes vai no peito. Desde o início que os próprios vivos já estão mortos. Tudo caminha para o decaimento.
“Deixa, deixa, deixa
Eu dizer o que penso dessa vida
Preciso demais desabafar
Suportei meu sofrimento
De face mostrada e riso inteiro
Se hoje canto meu lamento
Coração cantou primeiro
E você não tem direito
De calar a minha boca
Afinal me dói no peito
Uma dor que não é pouca
Tem dó”
Handling the Undead sai também vitorioso no título. Ao percorrermos o caminho das personagens, de cada individualidade, as ideias em que se suportam, o animus que molda os seus comportamentos, aglomeramos, dentro de nós, os três quadros de gestão do inimaginável. Com efeito, a comunhão entre as três histórias filmadas por Thea Hvistendahl, baseadas no argumento do sueco John Ajvide Lindqvist (Let the Right One in, 2004), nasce dessa reacção ao impensável, à resistência de contestação perante o regresso à vida daqueles que partiram.
Morrer e voltar à vida é o contexto familiar que, de forma tripartida, nos é apresentado por Hvistendahl. Handling the Undead é a suspensão ou a negação do luto. Terá sido um dia de extremo calor em Oslo a suscitar o inexplicável? Ou terão sido os vivos que não se resignam e, com as vontades unidas, reclamaram o acontecimento? Nunca se confirmará. Aliás, a obra, movimentando-se lentamente, não elege o diálogo exacerbado, antes opta pela invasão do espectador através de uma estranha reminiscência, já que, inevitavelmente, as perdas do próprio espectador são ressuscitadas.
Relembrando Becker, o medo da morte é “(…) um medo ao qual ninguém está imune, qualquer que seja o seu disfarce”1. Ora, esta afirmação torna menos complexa a articulação dos eventos em análise. Um avô que se recusa a perder o neto ou uma família cuja mãe já está morta e não encerra o capítulo, procuram prolongar o tempo, ainda que a alternativa seja a decadência mascarada de vida. Em rigor, todos eles negam um final incontestável: os que não se conformam com a sua nova morada, e os que os viram desaparecer para sempre.
Em constante batalha com o desejo de imortalidade, existe a percepção de que uma mera sobrevivência não é solução. Os rostos de desespero e angústia povoam os planos, e a gradual interiorização de que a finitude é inultrapassável manifesta-se na frase de Kian no elevador – “A mãe está morta” – e no desfecho protagonizado por Anna (Renate Reinsve2). Há momentos que não se podem resgatar, como a oportunidade perdida de dar atenção à mãe antes do decesso; há tentativas de reanimação numa dança ao som do apropriado Ne Me Quitte Pas (símbolo da ausência de encerramento e do prolongamento do instante). E há, acima de tudo, uma incerteza no próximo passo a dar.
A temática zombie, ao adoptar uma linha mais dramática do que aterradora, é acompanhada pela sepulcral banda sonora composta por Peter Raeburn (The Dry, Robert Connolly, 2020) e sustentada pela ponderação, configurando-se em pleno contraste com aquilo a que estamos habituados. Perde, assim, a sua roupagem de stress, fuga e mecanismos de defesa. Mantém, não obstante, o carácter de bestialidade associado à natureza daqueles que já não pertencem ao mundo terreno. Handling the Undead é alimentado pelas leis de Romero, absorve a confrontação e o choque emocional de A Ghost Story (David Lowery, 2017) e chama, de forma ténue, o gore de Let the Right One In (Thomas Alfredson, 2008).
* O presente texto encontra-se escrito ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico.
Sofia de Melo Esteves