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Críticas Festivais de Cinema MOTELX

Os Olhos de Oddity

“We do not believe in ghosts, we are haunted by them.”1

Mesmo os que, entre nós, não se deixam iludir por histórias de fantasmas ou da esfera sobrenatural, poderão estar sujeitos a assombrações. Nem mesmo aos que vestem a armadura do cepticismo, está garantida a imunidade. A ausência de receptividade ao imaterial não o torna material. Dentro do género, todas estas afirmações parecem óbvias e comprovadas em múltiplas arquitecturas intimidantes da imagem em movimento (The Omen, 1976, Richard Donner; Candyman, Bernard Rose, 1992; Haunted, Lewis Gilbert, 1995; 1408, Mikael Håfström, 2007; Insidious, James Wan, 2010). Certo é que o irlandês Damian Mc Carthy traz ao tema um vestuário renovado, na medida em que, no campo das non-believers – do céptico viúvo Ted (Gwilym Lee) até à assustadiça Yana (Caroline Menton), atravessando o cobarde Ivan (Steve Wall) – introduz, nas suas personagens mais desconfiadas e no confronto com a inquietude, graus de relutância diversos.

Há em Oddity (2024) um claro jogo entre visível e invisível, crença e negacionismo, mediunidade e ciência. A sua origem situa-se nas imagens mentais que advêm de um objecto concreto, ao evocar-se um episódio por via da comunicação espírita. A destinatária deste conteúdo sensorial, Darcy (Carolyn Bracken, com duplo papel no filme) baseia a sua percepção e pensamento no que lhe é oferecido pela imaginação ou phantasia2. Dos seis sentidos, o predominante é a visão (interior) que, paradoxalmente, não contempla, mas avista a realidade; esse olhar que nada vê mas, ainda que tardiamente, tudo adivinha.


Oddity, de Damian Mc Carthy © Direitos Reservados

A morada de Dani (Carolyn Bracken) e Ted (Gwilym Lee) é composta por pedra e madeira, materiais robustos que Mc Carthy utiliza para fazer contrastar com a permeabilidade da alma humana. Aparentemente indiferente e inerte, surge uma figura aterradora, em perfeita combinação com o espaço fechado onde progride a sequência narrativa. Será este um objecto sem conteúdo? Qual o seu propósito? 

O realizador de Caveat (2020) esmera-se numa mistura de subgéneros do terror (thriller, sobrenatural e psicológico) e supera-se no efeito suspense. Aponta-se alguma previsibilidade na estrutura ficcional, mas é compensada pelo êxtase veiculado ao espectador. Mc Carthy expulsa-nos do nosso conforto nos períodos (que se sentem eternos) em que avistamos o sobressalto; só não sabemos em que segundo este sucederá. Mc Carthy impele-nos a respirar o odor da madeira, enclausura-nos em espaços que, ora protegem, ora albergam fantasmagoria e monstruosidade. Ele convida-nos a pontuais e desconfortáveis sorrisos sem quaisquer deslizes para a comédia descontraída. Em boa verdade, Mc Carthy empurra-nos a todos para o inferno da retribuição, mas resgata-nos para nos mostrar como se filma o pânico. 

Oddity, que, no âmbito da Secção competitiva de longas-metragens europeias do MOTELX – Festival de Cinema de Terror de Lisboa, recebeu o Prémio Méliès d’argent 2024, obriga-nos a revisitar pesadelos, emergências noctívagas, os medos que nos inundam em estados de letargia. Do lado de dentro, o ser humano expectante, a circunstância antes da aflição, a ebulição em crescendo. Do outro lado, o alienígena, um olho que amedronta mas decifra, um ser inexplorado que nos quer agitar. E que espera. Entre as duas entidades, há um óculo que as separa. Abre-se a porta, convida-se a estranheza a entrar. E a indefectível união consuma-se. 

“We are connected.”3

* O presente texto encontra-se escrito ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico.

Sofia de Melo Esteves

  1. Gunning, Tom; To Scan a Ghost: The Ontology of Mediated Vision. Grey Room 2007; (26): 94–127. doi: https://doi.org/10.1162/grey.2007.1.26.94

    ↩︎
  2. Com origem em phaos (light) «… porque é impossível ver sem luz”». Aristotle, On The Soul (De Anima), in The Basic Works of Aristotle, ed. Richard McKeon (New York: Random House, 1966), 589 (429a).
    ↩︎
  3. Citação de Dani e Darcy, em Oddity. ↩︎

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