A obra de Carla Simón, que a 30ª edição do Curtas Vila do Conde dá a ver naquela que será possivelmente a primeira exibição de toda a obra de Carla Simón em Portugal, começa com Mujeres (2009) e com mulheres, acerca de mulheres, pelo olhar de uma mulher se distingue e cria uma mundividência própria. Um olhar que serve de mediação entre o pessoal e político, inscrevendo o primeiro no último através das diferentes faces do seu cinema. As múltiplas formas dessa inscrição, que a cada filme conhecem uma nova história, uma nova exploração imagética, têm em comum a família, como força gravitacional do movimento vital das mulheres que Simón filma, lembra, imagina, preserva, ama.
Entre a ficção e o cinema de cariz experimental, a realizadora deixa sempre entrever algo da sua história pessoal, algo do seu ser mulher no mundo, em relação com o mundo e com outras mulheres, que entrelaça com o seu conhecimento da história do cinema, das possibilidades da linguagem cinematográfica e dos infinitos significados que com ela se pode gerar. Mujeres é o nascimento de um corpo cinematográfico que vai começar pelo solo, como se do corpo da mulher nele deitada nascesse o mundo e o (seu) cinema. A expressar uma ideia de começo, a montagem e a estética do filme fazem lembrar as primeiras vanguardas cinematográficas. Simón irá repetir o exercício experimental em Llacunes (2016) e, mais tarde, em Correspondencia (2020). Llacunes concretiza o pressuposto do cinema como uma possibilidade de materialização da memória, recuperando imagens da mãe biológica, Carla Simón repete as suas viagens lendo as cartas que ela escreveu. Como se o filme pudesse transformar a ausência da mãe numa voz, numa imagem e ocupar a lacuna entre a vida e a morte, unindo-as, aproximando-as, ao som de um saxofone, talvez a única presença tangível do filme. Também dotado de um cunho pessoal é Correspondencia, um objecto de partilha entre Carla Simón e a realizadora chilena Dominga Sottomayor, construído em torno do que contam uma à outra de si próprias, das suas famílias e do ofício de ambas, o cinema. De longe a mais madura das suas curtas-metragens, Correspondencia dá continuidade ao tema mais presente na obra de Simón, a ausência que a morte impõe, ausência essa que assume sempre o rosto da mãe, que voltamos a rever nas mesmas imagens de vídeo inaugurais de Llacunes. No quotidiano que mostram uma à outra e que o filme nos mostra, a dimensão pessoal da sua conversa confronta-se com a situação política do Chile experienciada por Dominga Sottomayor. Neste momento, o filme sofre uma fractura profunda e a harmonia que pautava o início da conversa entre elas transforma-se numa distância intransponível entre a vida e a obra de cada uma. Das imagens de arquivo das suas famílias, das suas casas, das histórias de amor passadas e presentes, só retemos na memória a sua beleza. Mas dos protestos no Chile, com os quais o filme termina, ainda permanece a violência, que nos atira para a consciência da impossibilidade de separar o que é pessoal do que é político, sob o risco de desvincularmos o outro da construção e da expressão da nossa subjetividade.
Do lado da ficção, Simón realizou, antes de Estiu 1993 e Alcarràs, duas longas-metragens também ficcionais, Batom (2013) e Las Pequeñas Cosas (2014). De Batom pouco ou nada há a dizer, para lá daquilo que o filme não excede ou ultrapassa, o estatuto de filme de escola, mesmo que nele a presença da ausência perante a vulnerabilidade da infância, que tanto fascina a realizadora, vá ganhando densidade. Las Pequeñas Cosas, por sua vez, é a primeira das curtas a introduzir o contexto familiar no núcleo do filme, que se irá desenvolver em torno da difícil relação entre uma mãe e filha. A espera de um terceiro filho, cuja notícia da vinda desencadeia um processo de preparação da casa onde ambas vivem para o receber, é o mote narrativo do filme, a partir do qual cresce um jogo de aproximações e distanciamentos entre mãe e filha, à medida que a amargura que cada uma sente em relação à outra se torna evidente. Sem catarse, a interminável espera acaba por culminar numa resignação não só das duas mulheres, mas do próprio filme, algo que se irá repetir no final de Alcarrás (2022). O construir de tensões no qual assenta o desenvolvimento da narrativa do filme parece não conseguir completar-se, como se mais não se pudesse fazer do que assumir que o filme é isto e não pode ser mais nada.
A infelicidade dos finais de Las Pequeñas Cosas e de Alcarrás, a falta de graça e maturidade das primeiras curtas-metragens, Mujeres e Llacunes, demasiado condicionadas por códigos de género ou regras de estilo da tradição cinematográfica em que se inserem, tornam o conjunto de curtas-metragens de Carla Simón, à excepção de Correspondencia, não por acaso uma co-realização, pouco impressionante. O mesmo não acontece com as suas longas-metragens, que expandem, sobretudo Alcarràs, para terrenos mais férteis, o que até então ainda não tinha conseguido florir – um olhar feminino e feminista que Carla Simón subtilmente e com a medida certa de sensibilidade mostra numa teia de relações nas quais esse olhar ainda é invisível.
A última sessão do Curtas Vila do Conde dedicada à realizadora acontece no Domingo, às 16H00, com a exibição de Estiu 1993.
Cátia Rodrigues
[Foto em destaque: Correspondencia, de Carla Simón © Direitos Reservados]