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MIXING MEMORY WITH DESIRE | FILMES DE JOÃO MARIA GUSMÃO E PEDRO PAIVA | APROPRIAÇÃO, MANIPULAÇÃO

Onde está o barulho levemente ensurdecedor do ruminar das máquinas analógicas? Esses brinquedos de um cinema do passado. Objetos curiosos que nos fazem questionar para onde devemos olhar. Assumimos as projeções enquanto imagens bidimensionais ou instalações de cariz escultórico? Todo aquele aparato revela uma ligação ao real, inerente ao médium, que contraditoriamente nos procura mostrar movimentos e formas talvez imperceptíveis a olho nu, nas quais apenas reconhecemos as origens. As máquinas que nos dão a ver este teatro do absurdo – e digo teatro porque tudo é encenado pela dupla – escondem também a apurada técnica que o torna possível. Mas nem as máquinas nem o barulho que projetam estão, neste caso, ao nosso alcance. Esta é uma experiência diferente

Estamos na Cinemateca, local onde a dupla – que iniciou a sua colaboração em 2001 e a terminou há pouquíssimo tempo – mostrou, a 30 de agosto, os seus filmes pela primeira vez. Foram nove filmes inseridos na primeira parte de uma sessão no âmbito do ciclo Do outro lado do espelho dedicado precisamente aos espelhos no cinema. A segunda parte, intitulada Apropriação, Manipulação apresenta um conjunto de filmes dedicados a práticas experimentais. 

Dream of a Ray Fish, João Maria Gusmão e Pedro Paiva © MUBI

João Maria Gusmão e Pedro Paiva dão a ver os seus filmes no seu suporte original em película de 16mm. A confusão, essa vertigem incessante que as caóticas instalações por norma nos proporcionam, não têm um lugar central: Somos voyeurs. Observamos de fora e em silêncio, numa escuridão quase total em que certos filmes nos mergulham. O ruminar é substituído pela mudez; um certo incómodo instala-se. Não estamos rodeados de imagens que aparecem não sabemos de onde, com filmes que passam em simultâneo, que apanhamos a meio – se é que existe aqui um início e um fim – e esperamos que o Loop se repita. Estamos fora desse universo. 

Vemos os filmes um a um. Toda a sala procura uma compreensão racional destas “ficções poético-filosóficas”. Não se trata de uma experiência imersiva, não se suprime, como é habitual, o pensamento no momento da sua aparência.

 Onde se perde a veemência da experiência sensorial acrescenta-se um apelo à reflexão, apenas contrariado por não estarmos a falar da mesma experiência temporal. Só se repetem os filmes uma vez e quando cada um termina a plateia espreita a folha de sala para saber o que acabou de ver ou informar-se sobre o que a espera.

É, no entanto, inegável que nos são apresentados novos mundos, primeiros olhares, onde a gravidade não tem tanta importância, onde os reflexos são protagonistas e o absurdo se torna familiar. Como? Através de reflexos solares – talvez estilhaços – que se projetam sobre uma tela e unidos quase a destroem; reflexos de água; metáforas implícitas; “truques” técnicos; e situações mais ou menos quotidianas que encontram aqui uma experiência sensorial diferente. 

Georgetown Loop, Ken Jacobs © MUBI

A segunda parte mantém a tendência do privilégio da imagem bidimensional, apropriando-se de imagens captadas do real para nos apresentarem novas visões só possíveis através do cinema, e, tal como o título diz, manipuladas. Ambas as secções desta sessão parecem prestar homenagem a um cinema que ainda não se tinha deixado encantar pela poética da narrativa, encontrando a sua própria poética no movimento das formas e nas reflexões que propõe.

Tiago Leonardo

[Foto em destaque: 3 suns, João Maria Gusmão e Pedro Paiva © MUBI]

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