Partindo de uma partitura original de Bernardo Sassetti, os espectadores do MOTELX puderam assistir à sonorização ao vivo do filme de 1911, Os Crimes de Diogo Alves, interpretada sob a direção musical de Desidério Lázaro em plena sala Luís Miguel Cintra no Teatro São Luiz. Ingredientes apetecíveis para qualquer cinéfilo. Com um ensemble de músicos composto por Desidério Lázaro (saxofone), Moisés Fernandes (trompete), Luís Barrigas (piano), Juliana Mendonça (contrabaixo), António Carvalho (bateria), a música ao vivo, suficientemente presente, mas não invasiva, cumpriu o seu papel e deixou que o filme fizesse o seu trabalho.
Aquele que é apontado como um dos primeiros filmes de ficção português, e certamente o primeiro que se pode encaixar na categoria de Terror, conta a história do famoso facínora galego que apoquentou a cidade de Lisboa no século XIX. O filme de João Tavares, podemos afirmá-lo com convicção, é um deleite para qualquer entusiasta do cinema. A personagem de Diogo Alves, interpretada por Alfredo de Sousa, é histriónica e revestida de comédia física pelos gestos exagerados com que tenta explicar as suas ações. Tal acontece, não só pelo facto de o filme ser mudo, mas também porque neste caso não há a presença de diálogos nos intertítulos, o que torna a missão dos atores mais desafiante (em certas ocasiões o filme era mesmo exibido com os diálogos ditos por atores atrás da tela).
A obra foi um projeto de João Freire Correia, fundador da Portugália Film, que, após a suspensão de uma primeira rodagem com Lino Ferreira, contrata João Tavares para realizar a versão de 1911. A história de Diogo Alves, muito popular no final do século XIX, era a ideal para avançar com aquele que pode ser considerado o primeiro filme de terror português. Atualmente, a sua fama deve-se também muito ao facto de a sua cabeça estar, ainda hoje, preservada em formol, podendo ser vista na Faculdade de Medicina de Lisboa.
Fazendo jus ao seu título, o filme não passa disso, uma série de episódios sobre os vários crimes cometidos por Diogo Alves. Ora a roubar, ora a atirar pessoas do Aqueduto das Águas Livres, ora a roubar e a matar. O ladrão e assassino terá matado mais de 70 pessoas ao longo de poucos meses e os crimes no aqueduto começaram por ser associados a uma vaga de suicídios e só quando assassinou o médio Pedro de Andrade e a sua família é que foram, finalmente, descobertos os seus crimes. No fim do filme, a justiça é feita e Diogo Alves condenado à morte. A versão exibida na sessão rondava os 20 minutos de filme e incluía ainda uns planos não utilizados pelo realizador.
Longe de ter toques de brilhantismo, o filme é uma primeira abordagem à representação do crime no cinema português e, por isso mesmo, de valorizar. A cena mais inquietante e que facilmente se destaca do resto, é mesmo a cena em que Diogo Alves atira uma criança do aqueduto. Como é referido num dos intertítulos, esse foi o único crime de que ele se terá arrependido devido ao riso da criança no momento em que Diogo a atirava do aqueduto abaixo, que terá achado graça à brincadeira. Provavelmente um riso que o terá perseguido toda a vida, mas que nem por isso o impediu de cometer mais crimes. Até que ponto o riso da criança pode ter sido baseado na realidade ou um simples ‘erro’ na rodagem que se tentou disfarçar com a descrição no intertítulo é algo que não é conclusivo.
A sessão foi ainda composta por uma conversa final sobre a composição para cinema mudo em Portugal, moderada pela investigadora Érica Rodrigues e contou com a presença de Tó Trips, que juntamente com Pedro Gonçalves nos Dead Combo, teve várias participações na sonorização de filmes de vários realizadores portugueses como Edgar Pêra ou Rodrigo Areias; Filipe Raposo, pianista e compositor e colaborador regulador da cinemateca; Margarida Cardoso, cineasta que trabalhou com Bernardo Sassetti em A Costa dos Murmúrios; e ainda o responsável pela direção musical da sessão, Desidério Lázaro. Pelo pouco tempo que é sempre dedicado a este tipo de debate, o mesmo ficou-se por uma abordagem superficial ao tema, com meia dúzia de exemplos do trabalho de cada um e sem se perceber bem qual a direção que se pretendia dar à conversa. No fim, ficou retida a experiência única de assistir a um filme de 1911 sonorizado ao vivo numa sala que fez jus ao momento. Um filme que é sempre importante revisitar pela relevância que tem na história do cinema português e que é verdadeiramente uma preciosidade a ser vista.
Ricardo Fangueiro
[Foto em destaque: Os Crimes de Diogo Alves, João Tavares © Companhia Cinematográfica de Portugal]