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Triangle of Sadness: a hipocrisia contemporânea e a sede pelo poder

Depois de sucessos como Force Majeure e de vencer a sua primeira Palma de Ouro com The Square, Ruben Östlund arrecada novamente o grande prémio do festival de Cannes com o recente Triangle of Sadness, filme em exibição nas salas de cinema portuguesas. O realizador sueco, que era já conhecido por fazer filmes com um marcado cunho político e social (é brilhante a forma como os seus filmes conseguem deixar o espectador desconfortável e a questionar os seus valores morais) embarca numa vertente mais cómica da crítica, num filme de chorar a rir do princípio ao fim. Triangle of Sadness apresenta-se, assim, como uma sátira ao capitalismo e aos jogos de poder.

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

Composto por três atos, o filme divide-se entre a vida de um casal de modelos influencers, um cruzeiro e uma ilha aparentemente deserta. Estes dois últimos décors são escolhidos a dedo e têm também grande significado na narrativa. O cruzeiro, local de grande luxo e ostentação, é símbolo do capitalismo e da clara hierarquia de poderes. A divisão upstairs/downstairs é muito clara quando vemos os passageiros ricos a apanhar banhos de sol no andar de cima, os empregados brancos entusiasmados com a ideia de belas gorjetas, e os empregados não brancos no último andar a quem ninguém parece ver ou prestar contas. Esta marcada hierarquia relembra a distribuição de andares na casa de Parasite, de Bong Joon-ho. 

A ilha deserta, por outro lado, cenário comum de reality shows e de filmes como The Lord Of The Flies, deixa-se encaixar neste tipo de papel, estimulando a luta pela sobrevivência e pelo poder das personagens que se conseguiram manter vivas depois do naufrágio. O instinto de sobrevivência rapidamente se revela num desejo e uma busca pelo poder, e aqueles que antes se encontravam no fim da hierarquia são aqueles que agora dominam. O estatuto, na ilha, não advém da riqueza mas da capacidade de sobrevivência, e uma das empregadas não brancas do cruzeiro mostra ter aptidões que os outros não apresentam, invertendo-se, assim, os papéis. Contudo, quando uma hipótese de salvamento parece estar em vista, esta sede de poder parece corromper os valores morais até daqueles que viveram uma vida de pobreza e humildade. O instinto humano é querer mais e mais, mostra-nos o realizador. Östlund faz-nos assim questionar os nossos próprios valores e códigos morais mostrando-nos como as diferentes pessoas acabam por agir todas da mesma forma quando colocadas naquela situação, a ambição sobrepõe-se ao carácter. O seu cinema não é um cinema de fé, pelo contrário, é um cinema de completa descrença na humanidade, um cinema de escrutínio moral da condição humana. Naquele lugar, seríamos também nós corrompidos pela ambição? É a questão que está implícita quando abandonamos a sala de cinema.

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

A verdade é que o cinema europeu tem vindo a focar-se, cada vez mais, nesta questão da corrupção dos valores morais e da hipocrisia da sociedade. No entanto, Östlund não critica só os ricos e poderosos, e isso é talvez o mais interessante de ver nos seus filmes. Ele critica também os mais pobres e aqueles que impulsionam os ideais de esquerda e depois não parecem fazer nada para os levar efetivamente avante (como a personagem do comandante interpretada por Woody Harrelson). Trata-se de uma esquerda que prega mas nada faz. O cinema de Östlund é amargo, desconfortável, ainda que dê ao espectador uma enorme vontade de rir, o facto é que é impossível deixá-lo indiferente. Todavia, Triangle of Sadness dividiu a crítica. A quantidade de cenas visualmente exageradas (envolvendo fluidos corporais) fez com que alguns críticos achassem que o realizador se estaria só a desviar do seu objetivo primordial para impressionar o espectador. Há, sem dúvida, um foco maior nos temas que nas personagens, mas isso talvez seja um trunfo e não um defeito. Estas personagens estão lá para nos obrigar a entender os temas e não para criarmos empatia e conhecermos as suas histórias, uma vez que o objetivo é não perdermos o foco nos temas que são trazidos à discussão.

Triangle of Sadness é consistente na dura crítica que faz, mas talvez falhe quando tenta atingir demasiados alvos ao mesmo tempo: há demasiados focos e demasiadas pessoas a serem julgadas. Desde o oligarca russo, representado pelo brilhante Zlatko Burić, à empregada filipina Abigail (Dolly de Leon), que conduz muito bem a segunda metade do filme; desde o casal de modelos em constante conflito ao casal apaixonado que vê na produção de armamento um hino ao seu amor. A superficialidade destas pessoas descreve-se muito bem com uma das falas mais repetidas do filme: “In Den Wolken”, que quer dizer “nas nuvens”, onde todas elas parecem estar alheias à realidade. O “jantar do comandante” é o culminar do nonsense, deixando o espectador fisicamente enjoado com toda a sua agressividade visual. 

Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion

Todo este corrupio de críticas e inside jokes pode ser avassalador para um filme só, ainda assim as duas horas e meia parecem passar a correr. E Triangles of Sadness revela-se uma sólida chamada de atenção ao capitalismo crescente e à sociedade do consumo. Navegando pelos temas dos estereótipos de género, principalmente no seu primeiro ato, Östlund faz um estudo de como até nas relações o dominante é esta ideia de poder, a ideia de uma troca de favores (relações que poderíamos descrever como transacionais), mostrando-nos que estas pessoas não são mais pessoas mas, sim, produtos quase robóticos deste consumismo brutal e de uma grande hipocrisia.

Inês Moreira

[Foto em destaque: Triangle of Sadness, de Ruben Östlund – © Plattform Produktion]

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