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DOC’S KINGDOM 2022: Gestos e Fragmentos

Não soube nunca onde entrava, 

mas eu quando ali me vi, 

sem saber onde parava,

grandes coisas entendi;

não direi o que senti,

que fiquei não o sabendo,

toda a ciência transcendendo.

Coplas feitas sobre um êxtase de elevada contemplação in Poesias Completas de S. João da Cruz

Só por palavras um tanto toscas, de ambição poética, mas sem os gestos de lirismo próprios ao poeta, pode um participante do Doc’s Kingdom, ou, mais precisamente, esta participante, descrever a sua experiência. Na ausência de qualquer motivo que não o do limite da expressão linguística, apropriei-me do poema de S. João da Cruz, que o acaso quis que lesse nas primeiras horas de envolvimento com a paisagem circundante ao Rio Vez.

Amarante Abramovici, co-directora artística e programadora do Doc’s Kingdom © Magdalena Kielbiowska

Gestos e Fragmentos (1982), filme de Alberto Seixas Santos, dá título à cúpula temática da edição deste ano do Doc’s Kingdom, convidando-nos ao mesmo exercício a que se propôs Seixas Santos aquando da realização do filme, lembrado por José Manuel Costa no texto de 2016 sobre o realizador, que se pode ler no jornal do seminário: “Gestos, fragmentos e grupo zero: o que este cinema dá a ver é também a sua própria matéria, sublinhando o concreto e a materialidade dos gestos tanto quanto do ato de filmá-los – sendo portanto coerente que, na altura em que o contexto pediu ao autor, como a todos, um ainda maior comprometimento social e político, este lhe tenha respondido interrogando os fundamentos e as relações éticas do acto de filmar.” Por outras palavras, à indagação sobre a natureza ontológica, que marca o cinema desde o seu nascimento e a cada momento da sua historiografia, e que parece insinuar-se mais e mais nas nossas preocupações, impôs-se, em cada um dos debates, uma outra pergunta – o que é a práxis cinematográfica? 

O que está em jogo é somente uma interrogação “dos fundamentos e das relações éticas do acto de filmar”, usando as palavras de José Manuel Costa. Contudo, quem participou naqueles debates superou pelo diálogo a rigidez da singularidade do acto de filmar, durante décadas totalitária e totalizante. O que ali se discutiu, sobretudo à luz dos filmes de Alexandra Cuesta e João Vieira Torres, foi a possibilidade de outros actos de filmar a partir dos quais se geram uma multiplicidade de outros olhares e de outros sentidos, dos quais a práxis cinematográfica e, em última instância, o próprio cinema per se, podem ser o gesto por excelência.

Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty

A propósito do centenário de Nanook of the North (1922), de Robert Flaherty, já o seminário ia no quarto dia quando o filme foi exibido na Casa das Artes de Arcos de Valdevez, um movimento inesperado que anunciou uma mudança de tom na programação despertou um outro modo de questionar a nossa relação com o cinema e, através dele, com o mundo. Deixemos de parte a discussão em torno da verosimilhança e veracidade da representação do povo Inuit no documentário de Flaherty, pois há muito se sabe que já então não viviam do modo como o filme sugeria. Mas não esqueçamos o motivo pelo qual a crença do espectador está colocada no centro do debate da representação no cinema documental desde os seus primórdios até à contemporaneidade, como a sinopse de Toré (2015) de João Vieira Torres anuncia: “Filmar um ritual de uma tribo da Amazónia aberto a forasteiros é aceitar que apenas vemos o que nos mostram e o que somos capazes de ver. Assim é Toré.” No que somos capazes de ver, reside a nossa crença e uma certa gramática do olhar. Mas pensemos, antes, naquilo que verdadeiramente continua a fazer de Nanook of the North um solo de reflexão contemporâneo sobre as possibilidades éticas do olhar e os limites da relação, ou, como foi referido durante um debate, da obsessão pelo outro.

Boris Lehman, Saguenail, José Manuel Costa, Regina Guimarães, Jacques Lemière © Magdalena Kielbiowska

Seria injusto, como bem o disse José Manuel Costa, tentar desculpar ou justificar Robert Flaherty pelo seu filme, sob pena de pretensiosamente retirar à obra a sua potencialidade expressiva e ao espectador o direito e o dever de exercer o seu pensamento para assim mobilizar o seu conhecimento a partir dela e para ela. Na medida em que existe, em todos os filmes, pelo menos os de natureza documental, uma obsessão pelo outro, também temos a presença da subjectividade daquele que, filmando o outro, se relaciona com ele numa partilha de intimidade e vivências conjuntas. Atentemos às palavras de Flaherty: “A minha necessidade de fazer Nanook vinha do modo como eu sentia esse povo, da minha admiração por ele, era isso que eu queria comunicar.” Não obstante atribuirmos a Flaherty a melhor das intenções no acto de filmar e de considerarmos, em linha com Rohmer e tantos outros, que “Nanook é o mais belo dos filmes”, não devemos esquecer-nos que, à luz dos nossos dias, esse mesmo acto de filmar assentava num modus operandi patriarcal e se concretizava por meio de um aparato técnico com motivos e efeitos colonizadores. Goradas ou não as vontades do realizador, pouco importa, Nanook of the North, cem anos depois, mais do que a aurora do documentário, pode impulsionar o início de uma discussão sobre os limites do modo como o cinema pode e deve olhar, interrogar e relacionar-se com o mundo. 

Foi num gesto de antecipação da sessão de curtas-metragens que aconteceria à noite, após a sessão de celebração do 100º aniversário do filme de Flaherty, seguido de conversa com José Manuel Costa (não fosse este um dos filmes da sua vida) que Nuno Lisboa e Amarante Abramovici, directores e programadores do Doc’s Kingdom, trouxeram o presente e o futuro do cinema para debate. Entre os filmes projectados, dois seriam de maior importância para lançar sobre Nanook of the North tantos olhares e modos de olhar quantos o tempo que os distanciava deixou pluralizar – Beirut 2.14.05 (2008), de Alexandra Cuesta, e Mal di Mare (2021), de João Vieira Torres, assim como todos os outros títulos que constam na filmografia de ambos.

João Vieira Torres e Alexandra Cuesta © Magdalena Kielbiowska

Ambos realizadores naturais da América do Sul, Alexandra Cuesta, do Equador e João Vieira Torres, do Brasil, através de filmes distintos tanto na forma como no conteúdo, reclamam para a sua obra um princípio em comum: como mostrar a subjectividade daquele que filma e daquele que é filmado se, ao contrário do que acontece com o sujeito ocidental, é o Outro no lugar do Eu? As novas perspectivas cinematográficas, e não só, sobre o sujeito e a possibilidade de nos constituirmos sujeito apresentadas nos seus filmes põem em causa o próprio conceito de subjectividade, na sua acepção ontológica ocidental, espalhando fragmentos por outros territórios, corpos, vozes, … Será através do cinema que eles ganharão uma outra forma e novos sentidos, porque, como escreveu Madison Brookshire num texto dedicado à obra da realizadora equatoriana, “(…) an image can be made of many and happens because of the others around it”. É a partir dos outros que cercam João Vieira Torres numa exposição apresentada na Biennale de Veneza, composta por obras de artistas negros, e da pergunta que o realizador coloca aos visitantes brancos: “How many people of color are in this room?”, que nasce assim Mal di Mare. Não seria o primeiro filme político do realizador que vimos no Doc’s Kindgom, mas era, sem dúvida, o seu gesto de mostrar politicamente mais vincado. Por sua vez, todos os seus filmes anteriores, muitos deles sobre amor, como o próprio afirma, e dotados de uma ternura, tantas vezes risível (quem não se rendeu à criança que assiste ao Planeta dos Macacos, o de 2011, no seu quarto em Crianças Fantasma (2016)), exigiam uma gramática do olhar que nela contivesse a vontade e os instrumentos precisos para descortinar a dimensão política a eles subjacente e que Mal di Mare torna visível e inescapável, ainda que sempre distante. 

Nuno Lisboa, co-director artístico e programador do Doc’s Kingdom, e Boris Lehman © Magdalena Kielbiowska

Uma outra dimensão da (inevitável) obsessão pelo outro interpela-nos em Babel: Letter To My Friends Who Stayed In Belgium (1991) quando, pela voz de Boris Lehman, se ouve o realizador a questionar-se (e a devolver-nos as questões) sobre o quão justo seria contar a sua história usando os outros (e os seus corpos) e não exclusivamente as suas vivências através da sua figura. Trata-se de um filme que gravita em torno do realizador, cujo constante adiamento do fim revela o quão difícil é, senão mesmo impossível, dar uma obra por terminada, sobretudo quando sofre de uma depressão e, consequentemente, se atira para uma incessante procura por uma reunião com a vida e o presente, numa luta contra a melancolia. Por isso, afirma que filma as coisas que estão a desaparecer, “(…) uma frase que ilustra o próprio acto de filmar: o registo de imagens e sons de uma realidade que está sempre a escapar-nos, e que, por isso, como que desaparece quando é filmada.” Neste sentido, encontramos na natureza do próprio acto de filmar um impulso melancólico que antecipa, intencionalmente ou não, a perda do objecto ou realidade filmada ou, como diria Agamben em Notas sobre o Gesto, “In the cinema, a society that has lost its gestures tries at once to reclaim what it has lost and to record its loss.” (Agamben, 2000: 53).

Em nenhum outro filme o peso do desaparecimento a que o futuro tudo veta se fez sentir como em Notes, Imprints (On Love): Parte I e Notes, Imprints (On Love): Parte II, Carmela (2020), de Alexandra Cuesta, nos quais cada gesto filmado corresponde depois a um gesto total ao qual a possibilidade de perda dá sentido. Existe nestes dois filmes, como noutros da realizadora, a capacidade fantasmática de tornar visível uma atmosfera de luto que envolve e se aproxima, através do olhar cinematográfico, dos gestos, corpos, cidades e casas por onde passou o seu quotidiano. Da melancolia do acto de filmar desponta o sujeito melancólico, para quem o vínculo afectivo apenas a memória, infalivelmente falível como ela é, pode reter. 

Doc’s Kindgom 2022 © Magdalena Kielbiowska

Findo o Doc’s Kingdom de 2022, mais do que as imagens que a memória pôde cristalizar, são os gestos que ainda nos olham e ecoam por estas palavras. Se podemos culpar o cinema por fazer de nós um sujeito melancólico, ao Doc’s Kingdom cabe a culpa, e que bela culpa, desse sujeito que nos tornamos não poder continuar a não se exprimir nas dimensões ética e política – e não só estética ou ontológica. Um dever ético de sempre questionarmos qual a nossa relação com o mundo e de compreendermos que o nosso olhar deve constituir uma atitude ética e politicamente envolvida, dever esse ao qual o Doc’s Kingdom nos parece inteiramente devotado. Por isso, quando ali me vi pela primeira vez, na leitura dos versos que principiaram a experiência do seminário, um compromisso com ele nascia, um onde, de forma consequente, grandes coisas, daí a poucas horas, poucos dias, entenderia e sentia.

Lisboa, Outubro de 2022

Cátia Rodrigues

[Foto em destaque: Gestos e Fragmentos, de Alberto Seixas Santos]

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