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73ª Berlinale (2023) Berlinale Críticas

As Naturezas Mortas-Vivas de Mammalia

No Q&A pós-projeção, Sebastian Mihăilescu, realizador de Mammalia, discutiu em detalhe o longo e conturbado caminho desde a conceção da ideia original do filme, até à obra final que estreou na Berlinale. Embora seja um filme contemplativo, que assumidamente faz sentir a sua jocosa meditação contemplativa, a sua esquizofrenia conceptual não se consegue esconder.

O filme foca-se na vida de um homem recentemente despedido do seu emprego, que, perante a entrada da sua namorada numa seita pagã feminina, entra em crise face à sua masculinidade.

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

Mihăilescu mencionou no Q&A a forma como o seu caminho até ao cinema passou primeiro por ser um “pintor falhado”. O talento pinturesco transborda em todos os planos, sendo a sua maior qualidade. Não se trata apenas da fotografia a 16mm, que mistura um ambiente frio com a entrada de amarelos quentes e decadentes, o enquadramento em si é onde a obra brilha mais. Quase todos os planos são longos e estáticos, sendo enquadrados em volta de conceitos individuais que se fazem sentir através da sua duração. 

A estagnação estática da imagem não é o destino final, havendo sempre algo sinistro que começa a invadir o ecrã. Algo vivo, mas em putrefação, imagens paradas que parecem estar cheias de ovas de moscardo, prontas para nascerem e espalharem o seu zumbido monótono e ameaçador pela realidade apresentada. Um filme constituído, não por naturezas mortas, mas por naturezas mortas-vivas: planos mortos à beira de uma ressurreição demoníaca.

O cineasta menciona Buster Keaton como uma das maiores influências, algo visível na maneira como a segunda força que corrói estas imagens, além dos miasmas que o fora-de-campo emana, é o homem. Não necessariamente o protagonista, mas a figura do Homem como género, que deambula pela morbidez do filme sempre a tropeçar estapafurdiamente nas gavinhas do suposto caos feminino ao qual a namorada foi convertida.

Pior que Yorgos Lanthimos, realizador de algumas obras fascinantes, mesmo que acabe por cair muitas vezes num fetichismo auto-satisfeito de um estilo ascético vazio, são os seus imitadores. Desde o sucesso breakthrough d’ A Lagosta, festivais de cinema começaram a acolher uma praga específica de Lanthimos low-cost, que pegam na sua equivalência entre a escrita e atuação deadpan, com subversividade, humor e inteligência, sem conseguir emular o lado único que o torna interessante (ou desenvolver a sua própria visão única). Ao misturar a crise humana e o religioso sinistro com o humor juvenil recorrente, o filme poucas vezes chega a sair do registo de Lanthimos e a aproximar-se de Peter Strickland (um dos realizadores que melhor trabalha o humor e atuação deadpan nos últimos tempos, ao contrapô-los com humor excêntrico, fetichismo kitsch e um amor genuíno ao invés de cinismo).

Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM

O maior problema do filme acaba por residir no seu argumento. Mammalia, segundo o que foi dito pelo realizador após o fim do filme, nasceu deste se encontrar numa crise psicológica análoga à do protagonista durante o início do seu desenvolvimento. Ao amadurecer (desenvolvimento que coincidiu com uma troca de um argumento estrito por uma abordagem mais improvisada), mesmo que o problema já não preocupasse tanto o realizador, o tema tratado no filme não foi mudado. Isto leva a um apuramento muito trabalhado, não só do lado técnico, mas também da linguagem do realizador, que, sem perspetiva alguma, é por ser posto em serviço de nada. Não é que o rei vá nu (o rei vai com roupas lindas e extravagantes), ele acaba é por ser uma pessoa muito desinteressante…

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Mammalia, Sebastian Mihăilescu © microFILM]

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