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73ª Berlinale (2023) Berlinale Críticas

Tótem, a alquimia humana na corrida contra o tempo

De Lila Avilés, realizadora de La Camarista, filme que representou o México na corrida aos Óscares para Melhor Filme Internacional em 2020, chega-nos Tótem, drama familiar cujo burburinho o coloca no grupo de favoritos a receber Urso de Ouro na 73.ª Berlinale. 

Passado ao longo de um dia preenchido por preparativos de uma festa de aniversário, importante por, provavelmente, vir a ser a última do infermo Tonas (Mateo García Elizondo), Tótem toma como ponto de partida Sol (Naíma Sentíes), sua filha. Num ritual comum entre mãe e filha, em que a bem-sucedida travessia da ponte com a respiração presa equivale a um desejo realizado, é-nos apresentado o panorama: “pedi que o pai não morra“.

Sol é deixada em casa da família do pai, um casarão cheio de vida. Por todo o lado pairam plantas e animais das mais variadas espécies, desde caracóis a papagaios, mas também pinturas e fotografias, estabelecendo-a como uma casa repleta de história. Enquanto as tias Nuri (Monserrat Marañon) e Alejandra (Marisol Gasé) se apressam pela casa em limpezas e cozinhados, Sol ronda a casa em passinhos de lã, observando as diferentes dinâmicas enquanto não lhe é permitida a visita que tanto anseia ao quarto do pai. 

Tótem, de Lila Avilés Sol © Limerencia

Através de um trabalho de câmara intrinsecamente ligado às sensações, habitamos demoradamente nas expressões de Sol, por onde espreitamos o seu mundo interior. Com uma sensibilidade imensa, contraposta pela franqueza infantil da prima mais nova Esther, Sol vai-se soterrando pelos cantos mais íntimos da casa. “Quando é que o mundo vai acabar?” pergunta ao motor de busca do telemóvel do avô. Ainda nos restam milhões de anos, responde-lhe o software. A dúvida existencial é imensa, ainda mais através dos olhos de criança, mas a pergunta não é naïve. Contrapõe-se o fim do mundo ao fim do pai  – um tão longínquo, o outro tão iminente. 

Mesmo com as conversas focadas em Tonas, é no grupo de mulheres que lideram a casa que o filme se debruça. A relação quezilenta entre as irmãs Nuri e Alejandra, que acompanham de perto a obliteração causada pelo cancro do irmão, é simultaneamente carregada de tensão e de carinho constrangido. A relação entre mães e filhos é desenvolvida com delicadeza, num retrato provável da afeição que obriga ao walking on eggshells em volta de temas complicados que, todavia, Sol observa com atenção redobrada.

A cinematografia é quente e abafada, espelhando a casa. Envolta na penumbra da memória, a câmara acompanha a fugidia Sol. A exigência de arejar é sublinhada pelo formato 4:3, que delimita a família numerosa em planos apertados e frenéticos e enfatiza a doença de Tonas numa aproximação aterradora à vulnerabilidade da sua pele nua. Lentamente, o foco é deslocado entre os membros da família, instalando-se enquanto voyeur, um papel que Sol frequentemente encarna no meio do alvoroço.

As curandices e remédios caseiros estão, desde o princípio, cravados em Tótem. Num discorrer que privilegia a espiritualidade acima da religião, Ale contrata uma espírita para livrar a casa de más vibrações. Depois de queimar sálvia e eructar, pronuncia a casa livre de espíritos e extorque três mil pesos à crédula, que de tudo faz para estender o curto tempo do irmão – exceto pagar à enfermeira que o acompanha, a quem deve há duas semanas. Noutro momento, a família junta-se (tirando o pai cético e carrancudo) em círculo, de “corpo aberto” numa terapia quântica, na tentativa de alinhar os chacras para que Tonas consiga participar na festa. Com um suspiro de alívio, constatamos que a superstição resulta. 

Nuri (Montserrat Marañon) e Esther (Saori Gurza) em Tótem, de Lila Avilés Sol © Limerencia

O filme culmina numa comunhão fraternal, onde família e amigos de longa data discursam num tom que aproxima a despedida da celebração. O que Lila Avilés descreve como “atores como seres alquímicos” é elevado. Há uma autenticidade tão simbólica nos corpos e palavras dos modelos que torna impossível não criar uma profunda empatia. Ainda assim, Tótem vence ao não se deixar levar num sentimentalismo banal.

O filme de Lila Avilés é preenchido por símbolos, pelos tótems que o designam. Os animais povoam os cenários: Sol tem um conhecimento enciclopédico sobre eles, homenageado no emocionante quadro – uma espécie de Arca de Noé, onde os favoritos da filha puderam embarcar – que Tonas pinta e lhe oferece. Um pássaro negro, confundível com um corvo, ronda os telhados da casa, como que à espera da morte. 

Há, todavia, tanto que remete à esperança. O gafanhoto que, no Feng Shui, é o emblema da imortalidade, sobe pelo dedo de Tonas. O presente do pai, um bonsai tratado por ele há oito anos, rima com paciência e boaventura. No final, entrelaçam-se no microcosmos de fraternidade tão marcado nesta família que, apesar de todas as contrariedades, faz de tudo para esticar o tempo.

Kenia Pollheim Nunes

[Foto em destaque: Sol (Naíma Sentíes) em Tótem, de Lila Avilés © Limerencia]

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