As luzes apagam-se e a sala de cinema é submetida ao anúncio de 2017 da Pepsi com a Kendall Jenner, apresentado na sua forma integral. Curta-metragem publicitária que causou controvérsia mundial pela sua atitude leve e superficial face a violência policial e manifestos do movimento Black Lives Matter: dentro deste mundo tudo é resolvido com uma super modelo bilionária a entregar uma lata de Pepsi a um polícia.
Soda Jerk, o coletivo artístico constituído pelos irmãos Dan e Dominique Angeloro, fez uma sala inteira de críticos na Berlinale ver o Pepsi: Live for Now, numa qualidade gloriosa de 480p. Era impossível entender se a resposta era choque, ofensa, ou admiração, mas a única resposta que emanava era um coro de pequenas e descoordenadas explosões de risos pontuais que se tentavam esconder e abafar.
Hello Dankness é uma obra experimental constituída unicamente de centenas de clips pré-existentes, reutilizados e reapropriados com engenho de forma criar um retrato dos Estados Unidos pós-eleição presidencial de 2016. O filme não se limita a ser um clipshow, que reconstitui um ambiente ou sensação (como se especializam na Everything is Terrible, ou outros adjacentes artistas de vídeo), esta obra tem ambições narrativas. Começa por pegar em filmes focados em paranoia nos subúrbios (desde The Burbs de Joe Dante a Serial Mom, de John Waters) e a contrapô-los em montagem alternada e direta, de forma a criar um só universo onde todas estas personagens se encontram em convívio.
O material usado não se segrega a um género. Começa como uma manipulação de montagem e imagem, de forma a criar um thriller de conspiração jocoso sobre o país dividido antes, durante e pós-eleição (remetendo constantemente ao conceito tão falado nessa época da “sinistra e ameaçadora silent majority”). Ao longo da sua progressão, entra num hyperdrive aceleracionista: filmes, séries de televisão, anúncios, vídeos virais e memes começam a partilhar o suporte com igualdade de importância (desde o aparecimento de Dasha Nekrasova, uma figura pública de nicho que simboliza perfeitamente esta época, a cortes de campo/contra-campo nos quais é insinuado que o Fantasma da Ópera esteve envolvido no russiagate).
As referências começam a desdobrar-se em caminhos cada vez mais rebuscados, extremos e numerosos. A manipulação do material eventualmente sai da montagem e incorpora técnicas cada vez mais bizarras de manipulação de som e da própria imagem dentro do plano. A velocidade é tão rápida e o conteúdo tão absurdo, que se torna impossível assimilar todos os seus momentos e referências.
O espetador, na sua cadeira, deixa-se levar por uma torrente interminável de referências, sendo obrigado a consumir milhões de estilhaços do vidro da realidade que se partiu. Ele é deixado, com níveis iguais de horror e humor, a tentar (com o auxílio da montagem dos cineastas) colar os pedaços numa só peça que talvez se aproxime de uma verdade pura, há tanto tempo já perdida.
Vasco Muralha
[Foto em destaque: Hello Dankness, Soda Jerk © Soda Jerk]