Categorias
20º IndieLisboa Críticas Festivais de Cinema Indielisboa

O Raio Ofuscante da Beleza Artificial: Shin Ultraman

Avatar 2: The Way of Water foi um sismo cultural. Qualquer espectador que se tenha sentado durante as 3 horas da sua duração em sala e que se tenha permitido ver o filme nas regras que este propõe, que tenha deixado aberto em si um intervalo livre para a possibilidade de arrebatamento, consegue corroborar este facto. Um filme que não existe. Filmado num espaço artificial com atores não reais. Mas quem se sentou na sala 4D, sentindo os borrifos de água na cara e os solavancos das cadeiras, sabe isto. O cerne do interesse de Avatar 2 é simples, mas elementar: a ligação entre artifício e realidade. Neste caso nem seria correto dizer que James Cameron está a tentar entender qual o limite extremo a que o artifício pode ser esticado de forma a ainda conter credibilidade imersiva: o que realmente é impressionante em Avatar 2 é que este está a usar o extremo do artifício, esticando-o bem para além do limiar da realidade, de forma a perfurar um cerne de verdades e narrativas emocionais eternas.

Shin Ultraman, realizado por Shinji Higuchi e escrito por Hideaki Anno (realizador do prévio Shin Godzilla e criador da obra-prima Neon Genesis Evangelion), chega agora a Portugal com um ano de atraso. É o segundo filme na trilogia Shin, reboots liderados por Anno focados em antigas propriedades de kaiju ou tokusatsu (sendo o anterior Shin Godzilla e o seguinte Shin Kamen Rider). O cerne deste filme é semelhante ao de Avatar 2, porém diverge na sua abordagem em relação à artificialidade. Enquanto Avatar 2 tenta ativar a crença do espectador ao criar um universo de extrema artificialidade que mesmo assim é percecionado como real, Shin Ultraman faz o oposto: estabelece uma artificialidade tão extrema, tão não-credível e mesmo assim desafia o espectador a conseguir estabelecer uma ligação com os seus raios laser de VERDADE ofuscante.

Shin Ultraman, Shinji Higuchi ©  Toho Co., Ltd.

Higuchi aniquila qualquer mísera pepita de verossimilidade ainda existente no seu universo (algo já escasso devido à realização frenética e desconcertante em que o filme opera) com Ultraman a despenhar dos céus. Propositadamente cria uma artificialidade que é instintivamente alienante. O uso de efeitos em complô com a narrativa e realização, cria uma experiência genuinamente desconcertante. A artificialidade não é um erro (ou um acidente), até sendo utilizados os efeitos de forma a que as criaturas e heróis não pareçam o que são, mas sim pessoas a usar fatos e a representar o que são no filme (algo que não é real na narrativa, mas que vai de encontro ao referente metatextual das séries e filmes originais).

O filme, através de uma trama extremamente nietzscheana (no meio deste filme de super-heróis e monstros, as personagens começam praticamente a citar a sua obra ipsis verbis), é injetado com vitalidade incandescente. Existe uma palpável admiração pela ambição necessária para escapar a um uno primordial sem seguir falsos ídolos, que consegue mesmo assim ir de encontro a ideais de comunhão, empatia e solidariedade. Nietzsche acreditava que a filosofia tinha de aprender a dançar. O cinema também! Deste baile de mensagem pop-Nietzsche (algo em que Hideaki Anno se especializa desde Neon Genesis Evangelion) com artifício extremo, surge um filho, fruto de acasalamento divino: um recém-nascido (ou de novo nascido – Shin), Ultraman, um verdadeiro ícone da realidade emocional que destrói todos os falsos ídolos da razão lógica.

Vasco Muralha

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *