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Um cinema de relações fraturadas e solitárias posto em evidência na 20ª edição do Indielisboa: Sick of Myself, Watcher e The Adults

Na 20ª edição do Indielisboa, para além de muitas outras linhas temáticas, é posto em evidência o cinema das relações fraturadas e débeis através de três filmes que constam na programação: uma sátira, um thriller e um drama-comédia familiar. Os dois primeiros pertencentes à secção Boca do Inferno, a secção de filmes desconcertantes do festival, e por último aquele que encerrou o festival no passado domingo. Fala-se, portanto, da sátira norueguesa Sick of Myself (2022), de Kristoffer Borgli; da primeira longa-metragem da norte-americana Chloe Okuno, Watcher (2022); e da longa-metragem de Dustin Guy Defa, The Adults (2023). 

Sick of Myself é uma comédia desconfortável na qual a sua personagem principal, Signe (Kristine Kujath Thorp), ultrapassa todos os limites para chamar a atenção, num gesto narcisista e sem escrúpulos. Watcher, por sua vez, é um thriller sobre um casal que se muda para Bucareste, na Roménia: Julia (Maika Monroe) e Francis (Karl Glusman). Ele, meio romeno, fala e entende a língua, enquanto ela acaba por se ver sozinha e sem nada para fazer num país que lhe é estranho. Para além do isolamento, Julia começa a sentir-se observada por um olhar estranho vindo do prédio em frente ao seu (num piscar de olhos ao filme Rear Window de Alfred Hitchcok). No filme escolhido para encerrar esta edição do festival, o mais intimista e melancólico dos três, Dustin Guy Defa foca-se na relação entre três irmãos que se veem reunidos devido a uma visita curta de um deles, Eric, à sua terra natal. Eric é interpretado por Michael Cera que coloca o espectador numa posição saudosa, relembrando-se do seu carisma. Em todos estes filmes, as relações humanas são postas em evidência e são, até mesmo, testadas, mostrando-se frágeis e quebradiças, o que parece culminar num isolamento e numa tendência para a autocentralidade.

The Adults, de Dustin Guy Defa – © Dweck Productions, Savage Rose Films

De certa forma, os três filmes parecem existencialistas na sua génese, no sentido em que as suas personagens vivem dentro de si próprias e parecem muitas vezes entrar em colisão consigo próprias, seja pela forma como se veem, seja como são vistas pelos que as rodeiam. Signe (Sick of Myself) é o culminar desta autocentralidade. Uma mulher que tem um trabalho que não gosta e um namorado fútil e despreocupado, que ao ver-se num estado extremo de solidão, começa a destruir a sua vida para chamar atenção sobre si própria. O seu desejo é não cair na sombra do namorado, um artista contemporâneo que representa muito bem a artificialidade do panorama artístico dos nossos dias, e ser a “donzela em apuros” que este quer salvar. Signe é o exemplo perfeito do “main character syndrome”, e do fetiche pela vitimização cada vez mais recorrente numa sociedade da fama artificial e efémera das redes sociais. A personagem da sátira norueguesa começa a tomar uma droga russa chamada Lidexol que tem como efeito secundário uma doença de pele grave. Este masoquismo da personagem, que é, por sua vez, também uma forma de narcisismo, é o que na cabeça dela lhe vai trazer a fama e a atenção que esta sempre quis.

O vazio e a solidão parecem contribuir para este narcisismo e para esta autocentralidade de personagens solitárias que se querem de alguma forma fazer evidenciar. Signe não é a figura solitária por excelência, dado que várias vezes a vemos em festas e ambientes sociais. Contudo, as pessoas que a rodeiam revelam-se ocas e fúteis e acabam por apenas colorir um vazio que, na verdade, permanece. No caso de Julia (Watcher) o isolamento é evidente, mas este não provoca esta autocentralização, mas sim uma espécie de interiorização existencialista, distanciando-se assim de Signe. Desta forma, Julia, acaba por passar os dias muito dentro de si mesma, à falta de companhia, o que a leva a pensar que talvez esteja a ver coisas onde elas não parecem existir. Julia e Signe são quase o oposto uma da outra: a primeira anula-se viajando para um país desconhecido em prol da carreira do marido, e quando o perigo se mostra real esta tem dificuldade em validar aquilo que está à sua frente; a segunda traz o perigo para si, vitimizando-se aos olhos de todos à sua volta. No entanto, é possível encontrar-se um fio condutor nestas duas personagens: a ideia de autovitimização, seja ela real, ou imaginada. Por sua vez, Eric em The Adults, escolhe o isolamento, ficando num hotel em vez de na sua casa de família, na qual mora a sua irmã mais velha, Rachel. Eric vai, ainda, prolongando a sua estadia, que inicialmente seria curta, de modo a conseguir participar em jogos de póquer (com velhos conhecidos, com os quais não parece ter qualquer tipo de relação de intimidade) que vão ficando cada vez mais competitivos, e ao mesmo tempo convencendo as irmãs que este alongamento da estadia se deve a elas. O ego de Eric sobressai nesta intensa competitividade e importância que parece dar ao póquer, contrariamente à sua passividade sobre tudo o resto, numa espécie de exercício de escape. Desta forma aproxima-se de Signe: ambos mentem para manter aparências e parecem viver uma vida falsa e vazia, que no caso de Eric se prende numa incapacidade em comunicar com as suas irmãs.

Eric é um mistério para as suas irmãs, para ele mesmo e até mesmo para o espectador, que parece ter dificuldade em lê-lo. Os momentos em que os três irmãos estão juntos tentam de alguma forma trazer ao de cima este lado mais sentimental de Eric, com jogos teatrais enferrujados recuperados de infância distante. Porém, esta nostalgia da infância acaba por dar a entender a distância que, atualmente, afasta os irmãos. Há neles uma quase negação da vida adulta (na qual os seus pais já não estão lá para os amparar) e isto faz com que as personagens neste coming-of-age de Defa sejam profundamente existencialistas. Eric foge ao confronto emocional, Rachel está deprimida e Maggie (a mais nova dos três) deixou a faculdade e não sabe bem o que fazer com a sua vida. Os três, como acontece também com Signe e Julia nos outros dois filmes, parecem passar muito tempo perdidos nos seus próprios pensamentos e falham quando é preciso enfrentar o outro e o desconhecido, num gesto também ele autocentrado.

Sick of Myself, de Kristoffer Borgli – © Film i Väst, Garage Film International, Oslo Pictures

Em Sick of Myself, a montagem revela-se muito importante, pois as cenas do dia-a-dia são intercaladas pelas fantasias vividas na cabeça de Signe, que, por vezes, passam despercebidas e colocam o espectador a questionar-se sobre a sua veracidade. Este conjunto de cenários comprovam a autocentralidade da personagem, que vive tanto na sua cabeça que parece até ficar sem vida fora desta. O prazer de Signe está na fantasia, no desejo de ser alguém que nunca consegue alcançar, sendo o clímax desta loucura narcisista a cena de sexo que é intercalada por flashes do seu suposto funeral. Um funeral é simbolicamente o lugar onde nada é mais importante do que aquele que está morto. A idealização deste momento é em si um dos pontos máximos do narcisismo de Signe.

Em suma, nestes três filmes podemos ver ao microscópio as dinâmicas de uma (ou várias) relação humana. No caso de Sick of Myself, a futilidade de uma personagem leva-a à sua destruição, não percebendo que o problema é procurar a atenção nas pessoas erradas. A relação entre Signe e Thomas (o namorado artista) é prova disto, dado que nenhum deles parece querer realmente saber um do outro, e ambos estão constantemente em disputa. É a fragilidade que caracteriza esta relação. 

Em Watcher, a distância que Julia sente de Bucareste acaba por a distanciar de um marido que nem sequer parece acreditar quando esta lhe conta que acredita estar em perigo. O enredo do filme coloca à prova esta relação que, apesar de inicialmente ser a mais forte de todas (comparativamente com os outros dois filmes analisados), vai dando de si e revelando os seus pontos menos fortes. 

Em The Adults começamos por ver uma relação, que em tempos acreditamos ter sido forte, e que, no ponto inicial do filme, se mostra enferrujada, talvez num reflexo realista das relações entre irmãos e na forma como estas vão mudando à medida que o tempo passa. 

Watcher, de Chloe Okuno – © Animal Casting Time, Imagenation Abu Dhabi FZ, Lost City

A verdade é que manter uma relação com outra pessoa é cada vez mais difícil numa sociedade que se revela fútil e hipócrita. Notemos a cena da campanha inclusiva, em Sick of Myself. A estratégia de marketing da campanha seria mostrar ao público corpos com defeitos e fazer com que estes fossem aceites pela sua diferença. No entanto, quando a mesma campanha se apercebe da deterioração do estado de Signe, a inclusividade parece perder-se e a máscara parece cair. As relações inter-humanas desafiam a fragilidade, e exigem que o Eu saia de si mesmo para se colocar no lugar do outro. Thomas, Signe (Sick of Myself) e Francis (Watcher) falham. Contudo, Eric, Rachel e Maggie (The Adults) dão-nos esperança que tal seja possível mesmo que de forma morosa e estranha. O final do filme de Dustin Guy Defa acaba por aquecer uma sala de cinema que se vê sorridente nesta sessão de encerramento do Indielisboa.

Inês Moreira

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