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Peeping Tom,um vídeo-ensaio sobre o mórbido prazer de olhar 

What paper are u from? The observer. 

Tudo começa com a imagem de um olho: aproximado, anónimo e fechado. O olho abre-se ao som de música experimental. Cresce o ambiente de tensão a par das questões relativamente àquilo que vemos. Inegavelmente enigmático, este início é representativo da essência de Peeping Tom. Realizado por Michael Powell, este filme é, acima de tudo, uma reflexão sobre o olhar, um ensaio sobre os impulsos e tendências voyeuristas humanas.  

Peeping Tom dá-nos a conhecer a história de Mark Lewis (protagonizado por Karlheinz Böhm), um jovem discreto que trabalha num estúdio de cinema britânico. Nós, espectadores, com acesso privilegiado ao seu ponto de vista, sabemos que nem tudo aquilo que aparenta ser, o é. Interessa-nos especialmente a sua vida oculta, marcada por um voyeurismo obsessivo e uma profunda deterioração interior.  

Aparentemente apaixonado pela fotografia, ele tem, afinal, uma perturbadora obsessão por registar o terror na cara das suas vítimas antes de as matar. São elas exclusivamente mulheres, prostitutas e aspirantes a atrizes, filmadas e entregues à morte pela mesma arma: a câmara. O lento processo de aterrorização é sempre acompanhado pelo (re)visitar das imagens. Mark torna-se espectador do terror que provoca: todas as noites, no seu quarto e em nome da sua gratificação sexual. Isto porque, para si, a imagem em movimento, o sexo, a dor e o medo são elementos indissociáveis.  

Ora, a verdade é que, apesar dos crimes que sabemos ter cometido, a relação que estabelecemos com o protagonista não deixa de envolver alguma empatia e proximidade. Filho de um psicanalista, especialista nas reações do sistema nervoso das crianças ao medo, viu a sua infância ser reduzida a uma experiência científica do pai. Constantemente filmado e fotografado, foi apenas quando recebeu uma câmara que os papéis se inverteram. Deixou de ser objeto de observação e conheceu, finalmente, o poder e prazer associados a ser espectador. Compreendemos, portanto, a sua macabra compulsão para colecionar imagens de terror como o reflexo inevitável de uma infância traumática, uma repetição do trauma passado nas suas próprias vítimas.  

O seu voyeurismo traduz-se numa quase identificação com a câmara. Ao longo do filme, são inúmeras as situações que evidenciam esta confusão da sua identidade com a posição de observador. Uma delas – talvez a mais relevante – corresponde à cena em que espelha os movimentos de Helen (Anna Massey), a jovem que vivia num quarto arrendado em sua casa e com a qual se envolve. Enquanto Helen decide onde colocar a peça de joalharia que Mark lhe havia oferecido, este observa e reproduz todos os seus movimentos. Não consegue controlar os seus impulsos e age como se de uma câmara se tratasse. Ainda assim, consciente das consequências da sua perigosa obsessão, pede-lhe: Don ´t let me see you frightened.

Por escopofilia entende-se o prazer e desejo mórbido de observar algo ou alguém. Neste caso, a escopofilia de Mark é levada até às últimas consequências: o seu desejo mórbido torna-se literal quando sente prazer na observação da morte. Em última instância, concretiza-se na cena do seu massacre final. Assistir à sua morte é também para si prazeroso.  

Peeping Tom, de Michael Powell ©

Este massacre encerra um ciclo, é o último e o maior de todos os seus prazeres. Quando o protagonista morre, o nosso próprio voyeurismo é revelado. Olhamos atentamente para o ecrã, simultaneamente fascinados e aterrorizados. A atracção pelo filme vai além da vontade de acompanhar o protagonista e de conhecer os seus crimes. Porque não somos apenas espectadores de um espectador, mas também nós retiramos prazer da observação do medo. Neste sentido, Peeping Tom é mais do que uma narrativa sobre um homem com tendências voyeuristas. É, acima de tudo, uma desconstrução da nossa posição de espectador e uma reflexão sobre a relação que estabelecemos com o cinema. 

A péssima recepção deste filme pela crítica da época contribuiu para o fim precoce da carreira e sucesso do realizador. Mas a que se deveu esta receção? A verdade é que, em Peeping Tom, a audiência não pode observar anonimamente, escondida e protegida pela escuridão da sala de cinema. 

Shut the door, diz a primeira vítima numa das cenas iniciais. A porta fecha-se atrás de nós: somos trazidos para este lugar de intimidade, vemos tudo aquilo que o protagonista vê. O filme acontece na primeira pessoa e, por isso, somos necessariamente implicados na narrativa, tornando-nos cúmplices dos crimes de Mark. Esta cumplicidade torna-se especialmente evidente quando a luz da lanterna, utilizada para procurar o assassino, aponta para nós. Aqui, percebemos que as atrocidades que ele cometeu são, no fundo, as atrocidades de todos nós. E isto é indubitavelmente difícil de assumir. Mas mais difícil do que assumir a cumplicidade com os crimes cometidos, é assumir que dela advém um prazer, associado ao ver algo indevidamente. 

Pensado com atenção ao mais ínfimo detalhe, este filme parece dar vida às ideias desenvolvidas por Laura Mulvey, feminista e crítica cinematográfica britânica. Segundo esta, o cinema narrativo proporciona e satisfaz inúmeros prazeres, nomeadamente o prazer visual, um instinto da sexualidade que implica a objetificação de outrem. Para além disso, defende que o cinema é marcado por uma relação assimétrica de poder e que, consequentemente, o homem e a mulher surgem em extremos opostos da estrutura do olhar. Por um lado, a mulher corresponde a um objeto erótico, imagem passiva cujo propósito existencial é ser olhada (pela câmara, pelas personagens do argumento cinematográfico e pelo espectador). Por outro lado, o homem corresponde ao detentor do olhar, ao elemento ativo que projeta as suas fantasias na figura feminina. 

Peeping Tom, de Michael Powell ©

Esta reflexão crítica sobre a assimetria do olhar está contida no enredo principal. Neste caso, Mark é o detentor do olhar e as suas vítimas, frequentemente enquadradas e aprisionadas pelo campo de visão da câmara, são o objeto erótico olhado. A par do enredo, também os pequenos detalhes vêm enriquecer a discussão. Desde o enquadramento de uma das vítimas debaixo de uma placa onde se lê: STAGE, até à venda de revistas pornográficas, onde a imagem da mulher está à mercê do prazer masculino, são inúmeros os aspetos em concordância com aquilo que Laura Mulvey teorizou. 

Em contraste com as cores vibrantes e saturadas que o caracterizam, Peeping Tom é um ato de brutalidade cinematográfica. Mais do que a violência implícita na temática dark e no terror psicológico, importa considerar o discurso crítico sobre a perversidade e violência associada ao ato de olhar e aos novos media, evidenciada pela utilização da câmara como arma. Afinal, estes parecem tornar-nos ‘Peeping Tom(s)’, alimentando a nossa tendência voyeurista – dentro e fora da sala de cinema. 

Maria Inês Mendes

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