A 17ª edição do MOTELX, Festival Internacional de Cinema de Terror, animou Lisboa na passada semana, com inúmeras sessões de cinema, masterclasses e convidados. Brandon Cronenberg, filho do cineasta canadiano David Cronenberg, foi um desses convidados, ele que é uma das mais recentes promessas de cinema de género: um cinema que combina o horror psicológico e o sci-fi. Cronenberg esteve no Cinema São Jorge para acompanhar a estreia portuguesa do seu novo filme: Infinity Pool. Todavia, este ano, o festival decidiu fazer uma retrospetiva de toda a sua obra, passando ainda em sala as suas duas longas-metragens anteriores – Possessor (2020) e Antiviral (2012) – e ainda uma das suas curtas-metragens – Please Speak Continuously and Describe Your Experiences as They Come To You (2019).
Neste texto, o foco será a análise das suas duas longas mais recentes: a estreante Infinity Pool e Possessor. Em Infinity Pool, um casal, James (Alexander Skarsgård) e Em (Cleopatra Coleman), passam umas férias numa espécie de resort excêntrico num país ficcional chamado La Tolqa (que se assemelha ao cenário de White Lotus ou de Triangle of Sadness) na esperança de James ganhar inspiração para um novo livro, após o seu primeiro não muito bem sucedido romance. O casal conhece um outro casal, Gabi (Mia Goth) e Alban (Jalil Lespert), que os leva num passeio fora do resort que acaba com o atropelamento de um local. James, culpado do crime, é julgado e percebe que, segundo regras do país, no caso de morte, é o filho mais velho da vítima que deve vingar esta. Contudo, nesta realidade distorcida, há uma saída para os mais privilegiados: a criação de um doppelgänger que assumirá as culpas e morrerá no lugar do culpado. O único senão é este ter de assistir à sua própria execução.
Três anos antes, em Possessor, Brandon Cronenberg explora uma premissa um pouco mais simples, mas apoiada num mesmo sistema corrupto que valoriza aqueles com mais poder. Voss, interpretada de forma brilhante por Andrea Riseborough, é uma assassina contratada que consegue “possuir” o corpo de uma pessoa próxima da sua vítima, facilitando assim o crime. Quando ao entrar na mente de Colin (Christopher Abbott), o seu novo bode expiatório, algo não corre tão bem e a própria vítima começa a ter controlo sobre a mente da sua parasita (Voss). A partir deste momento, o filme começa a caminhar para uma esquizofrenia mental, muito bem retratada visualmente por Cronenberg, que só pára na destruição e caos total.
Ambos os filmes fazem o espectador questionar-se sobre a decência humana e sobre o quão longe alguém iria sabendo que não haveria consequências para as suas ações. É quase como se estivéssemos perante uma régua moral e essa régua parece estar partida, e talvez seja essa a mensagem que o realizador canadiano nos quer passar: a de uma sociedade estilhaçada e que não parece conseguir encontrar o caminho para o bem, associando o mal a algo prazeroso e afrodisíaco. A violência nos dois filmes é praticada da forma mais violenta possível, aproveito a redundância. No caso de Voss (em Possessor), esta evita o uso da pistola substituindo-a por uma arma mais sangrenta, e no caso de Infinity Pool, a violência é quase sempre associada a sexo (vemos quase tantas cenas sangrentas como orgias) e a festa, num tom quase medieval. A crítica social é forte. Nos dois filmes, mas ainda mais evidente em Infinity Pool, o realizador parece mesmo sugerir que é apenas o medo das consequências que impede as pessoas de praticarem o mal, e que se numa sociedade paralela, estas consequências fossem extintas por via, por exemplo, da tecnologia (notemos ainda a crítica ao aumento do uso desta, que nos remete inúmeras vezes para a série televisiva Black Mirror e para, no caso de Possessor, o episódio específico Crocodile, com Andrea Riseborough também como protagonista), o caos estaria instalado e a sobrevivência seria apenas um jogo de poder.
Apesar da crítica ser algo muito evidente, e de o body horror e as cenas sangrentas estarem lá, Brandon Cronenberg explora um lado muito mais identitário e psicológico nos seus filmes: o das repercussões psicológicas que os crimes praticados têm nos seus autores. Se, no caso do seu pai, o foco era o terror físico, no caso de Brandon o foco vira-se para a mente, a alma, e as suas assombrações e demónios. Em ambos os filmes, há uma espécie de duplicação identitária. Em Possessor, por uma via quase de parasita (de habitar o corpo do outro), e em Infinity Pool, através mesmo de uma duplicação, duplicando-se neste caso o corpo. Estas transposições ou duplicações de identidade parecem causar uma certa fragmentação na identidade original, que no caso de Voss, parece estar cada vez mais longe, e no caso de James, que acaba por se confundir com a identidade copiada (a dada altura, alguém lhe pergunta “mas não tens receio que tenham matado o James original?). As sequências experimentais do filme nas quais conseguimos acompanhar aquilo que está a acontecer na mente das personagens principais acabam por superar, ao nível do terror, do medo e da ansiedade, as cenas de violência gratuita e sangue. É muito interessante a forma como o realizador nos consegue conectar com o pânico sentido na mente destas personagens.
A retrospetiva a Brandon Cronenberg foi um dos momentos altos de um festival que segue mais um ano sem desiludir o seu espectador. E Brandon Cronenberg assume-se como uma estrela em ascensão do cinema de terror que, apesar da pesada herança do seu pai, se tem conseguido destacar com um cinema muito próprio e cada vez mais intrigante.
Inês Moreira