Gustav Möller traz Vogter (em inglês, Sons, ou “guarda”, na tradução literal portuguesa), um thriller psicológico construído a partir de um só espaço, à Competição da Berlinale. Isto após o sucesso da primeira longa-metragem (O Culpado, estreado em Portugal em 2019, que deu azo a um remake americano), situada na sala de uma central telefónica de emergência. Möller escolheu localizar a ação da segunda numa prisão, nesse sentido, podemos ver aqui uma certa continuidade entre obras. A intenção é clara: usar o espaço como revelador de um profundo conflito interior que faz questionar a moralidade da protagonista e a do próprio espectador. Algo que é conseguido, mas só em parte.
O filme conta a história de Eva, uma guarda prisional que pede para ser transferida para a ala de maior segurança após o aparecimento de uma figura do seu passado. Eva, nesta situação, terá os seus valores de justiça e moralidade desafiados num ambiente de crescente tensão.
O primeiro ato procura estabelecê-la como uma figura benevolente e verdadeiramente maternal para os presos na ala de menor segurança, moralmente irrepreensível, num espaço prisional quase utópico. Porém, tudo muda com a chegada de Mikkel (Sebastian Bull), prisioneiro de alta segurança: a luminosidade de Eva é coberta pela névoa da ambiguidade das suas ações, em total contraste com o apresentado até este momento. A relação entre os dois é mantida como um mistério ao espectador, embora seja evidente que há um lado de vingança.
A tensão passa a ser constante a partir do momento em que é transferida de ala, conferindo uma poderosa energia ao filme que agarra o espectador. Começando pelo espaço, somos transportados para o piso inferior da prisão, onde a luz natural é substituída por um laranja artificial e áspero. A metáfora é óbvia – Eva está a descer ao inferno, filmado entre corredores claustrofóbicos e labirínticos. Möller sabe muito bem a força de Knudsen enquanto atriz e escolhe aproximar a câmara do seu rosto, dos seus olhares e das suas expressões. Com o tempo, convida-nos a decifrar a motivação na base das suas ações e da sua fixação com o prisioneiro. O movimento do filme é o de um constante aumento da pressão a partir da sucessão de encontros entre Eva e Mikkel. A fixação da guarda acaba por se traduzir num abuso do seu poder, por exemplo, impedindo-o de receber correio. Estas exteriorizações da prisão interior em que Eva se encontra pontuam picos de tensão, mas não há nenhuma libertação: apenas uma amplificação.
A culminação deste sufoco e declínio da moralidade da protagonista dá-se numa busca às celas. A guarda incrimina Mikkel e isto dá-lhe palco para um exercício de extrema violência. A sonoplastia destaca-se neste momento, permitindo-nos sentir o efeito de cada golpe desferido, o que acentua ainda mais a imoralidade de Eva. O mistério da relação entre os dois impede, porém, que haja uma rutura da identificação com a protagonista, e ficamos com maior curiosidade para saber a justificação destas ações.
Na segunda parte do filme, há uma inversão da relação de poder, com Eva em dívida para com Mikkel, com medo de ser acusada pela agressão e despedida. Se a construção da tensão na primeira parte faz mover o filme, aqui perde-se todo esse fulgor. É sugerida uma possível aproximação entre os dois (com uma dimensão maternal já mencionada), mas é óbvio que não existe qualquer chance depois de todo o trabalho realizado anteriormente, e sobretudo após a resolução insatisfatória do mistério da relação (que exige uma significativa suspensão da descrença à qual nem todos conseguirão corresponder). As pistas dadas permitem que o espectador chegue à solução antes do esperado, de tal maneira que a revelação não comporta a emoção desejada. Toda a tensão na primeira parte está aqui ausente. A personagem de Eva perde a sua agência e, com isso, perde-se o conflito interior e moral. O final ainda reconvoca essa tensão, mas de forma vazia e sem qualquer emoção.
Nuno Gaio e Silva