Após o falecimento de seu mentor artístico e amante Charles, a jovem Jeanine (interpretada por Amanda Seyfried) é contratada para assumir o papel de direção na produção da ópera Salomé. É através da câmera de um iPhone que são registrados os bastidores desta. Apesar do uso supostamente inocente deste dispositivo, o realizador egípcio-canadense Atom Egoyan explora o seu potencial como instrumento de vigilância neste seu novo longa-metragem, Seven Veils, que acaba de estrear na Special Gala da Berlinale.
A construção do espaço cênico tem em conta as contradições da cena artística pós movimento #MeToo, acrescida de forma inegociável dos tais coordenadores de intimidade, mas ainda bastante cética quanto a denuncias de assédio no ambiente de trabalho. Por meio de close-ups longos e duros, o cineasta enquadra a protagonista não só na posição claustrofóbica de líder feminina, que nem as mulheres enxergam como tal (em dado momento, o maestro conduz a orquestra a meio de sua fala), mas também na de artista que precisa barganhar sua visão com aqueles no poder.
O uso de sombras na fotografia do filme é demonstrativo dos obstáculos de ordem burocrática, relacional e psicológica que Jeanine deve subjetivar em forma de arte para conseguir assumir o controle da narrativa: dentro e fora do palco. Estas sombras ganham corpo através das found footage, (outro uso bem articulado de dispositivo) e, em último caso, trazem até nós a presença invisível de Charles.
Por mais que não seja dado a catarses e imprima um ritmo irregular na projeção, Egoyan faz uma escolha certeira com sua atriz principal. Seyfried consegue transpor a angústia de um corpo em areia movediça no seu olhar e em cada um dos seus gestos. Além de propor uma visão instigante sobre os fantasmas do processo criativo, o filme se sobressai esteticamente na sequência de dança que o intitula: de certeza uma das mais belas dessa edição do festival.
Alexandre Bispo