Bonello é um verdadeiro romântico. Romântico no verdadeiro sentido do romantismo, um cineasta que realmente sente. E realmente aprecia os extremos da emoção, da imaginação, do irracional e, claro, da paixão, independentemente do lado para qual a balança pende. Um homem que aprecia a beleza do bom, independentemente se é ou vai eventualmente ser destruído pelo mal. Um homem que mesmo depois dessa destruição, encontra o sublime nessa explosão. Ou seja, um realizador que acaba o seu igualmente tétrico remake de Elephant (2003), de Gus Van Sant, com uma dedicatória à filha adolescente. Um realizador que sabe que o céu de França é iluminado pela imolação das habitantes de um bordel. Um realizador que realiza La Bête.
La Bête passa-se num futuro aparentemente utópico (que Bonello apresenta inversamente) onde os humanos neutralizam as suas emoções industrialmente, de forma a serem mais eficientes. O filme concentra-se numa personagem chamada Gabrielle, protagonizada por Lea Seydoux, que está a passar por este processo de neutralização, revivendo duas vidas passadas. Nestas duas vidas que o filme apresenta com a mesma importância que o presente narrativo, Gabrielle encontra um homem chamado Louis com quem uma atração magnética se estabelece. É importante também notar que o título do filme vem do facto de ser uma adaptação de uma novella de Henry James, The Beast in the Jungle, sobre um homem que vive e morre uma vida sem qualquer paixão devido a um medo visceral de algo que vai pôr em risco a sua vida como ele a conhece (sendo o grande desenlace que esta “fera” foi o seu próprio ato de se recusar a realmente viver – e se apaixonar).
A estrutura narrativa (e mesmo o clímax) são completamente diferentes, sendo uma adaptação muito livre, mas o que é realmente impressionante é a forma como o filme consegue perfeitamente captar o debilitante pavor romântico deste texto. Cada um dos três segmentos deste filme apresenta-se como um género diferente de cinema: o mais antigo como um filme de época no estilo d’os Mistérios de Lisboa, de Raul Ruiz; o do “nosso tempo” como um filme de terror; e o do futuro como um filme de ficção científica.
Devido a este facto, o filme foi muito acusado, tal como vários dos filmes anteriores deste cineasta, de ser um trabalho vazio, de pastiche, feito para agradar uma cultura acelerada de festival. O que eu quero principalmente defender é como a pastiche deste filme, não só é consciente, como é completamente essencial.
Primeiramente, funciona puramente a um nível narrativo. Existe um contraste constante do medo romântico e do romantismo a ser posto em causa em cada um dos três segmentos. Pode ser visto, como muitos dos detratores da filmografia de Bonello costumam fazer, como uma desculpa simples para chegar a uma facilmente digerível crítica à sociedade contemporânea, mas isto seria uma projeção ao filme em si por duas grandes razões. Sem contar com o final, o filme recusa dar uma interpretação óbvia à relação entre o romântico e o mundo (ou cada era). Melhor ainda: o filme tem uma grande afirmação que o permeia, mas em cada secção em vez de criar relações estritas dialéticas onde a síntese é óbvia, o cineasta coloca o objeto – esse espírito romântico e o pavor que o envolve – em cada ambiente, e mesmo sabendo o final, decide estar aberto a ver que faíscas este choque emite*1. Algo raríssimo: um filme obviamente planeado ao milímetro que, não só respira, como também DEIXA RESPIRAR. Sem contar que a nível narrativo, ao estender a uma visão épica a narrativa de James, o filme mostra compreender e exacerba com sucesso um dos seus aspetos mais atemorizantes: o medo do risco que leva a uma vigília míope que deixa a catástrofe passar, ao ponto de ser irreparável antes de se aperceber dela:
“I’m not sure you understood. You’ve nothing to wait for more. It HAS come.”
Oh how he looked at her! “Really?”
“Really.”
“The thing that, as you said, WAS to?”
“The thing that we began in our youth to watch for.”
Face to face with her once more he believed her; it was a claim to which he had so abjectly little to oppose. “You mean that it has come as a positive definite occurrence, with a name and a date?”
“Positive. Definite. I don’t know about the ‘name,’ but, oh with a date!”
He found himself again too helplessly at sea. “But come in the night — come and passed me by?”
May Bartram had her strange faint smile. “Oh no, it hasn’t passed you by!”
“But if I haven’t been aware of it and it hasn’t touched me —?”
“Ah your not being aware of it” — and she seemed to hesitate an instant to deal with this — “your not being aware of it is the strangeness in the strangeness. It’s the wonder OF the wonder.”
(…)
Say, however,” he added, “that I’ve eaten my cake, as you contend, to the last crumb — how can the thing I’ve never felt at all be the thing I was marked out to feel?”
She met him perhaps less directly, but she met him unperturbed. “You take your ‘feelings’ for granted. You were to suffer your fate. That was not necessarily to know it.”
Encontra-se aqui a principal subversão narrativa do filme: e se o horror do texto original – a “fera na selva pronta a saltar a qualquer momento” -, não só fosse real, como em vez de estar no nosso futuro, já tivéssemos despercebidos passado despercebidos por ele. AE além disso, e se o perpetrador deste horror fosse um coletivo (todos nós) em vez de um solitário indivíduo?
Em segundo e último lugar, é importante notar que a importância desta pastiche vai além de um nível narrativo. Grande parte do seu interesse é como contrasta uma narrativa sobre a morte do afeto (e de toda a afetação e singularidade), através de um contraste tripartido com os excessos da afetação cinematográfica como a conhecemos hoje. De novo, não o faz de forma a ter um sentido monolítico, mas apresenta estes choques e contrastes de forma a permitir cada um a escavar os seus diversos caminhos acerca deste binómio durante toda a sua duração.
Um filme explícito, que chega a ser chocante na sua simultânea simplicidade e ferocidade ardente. Raramente se ouve uma mensagem tão simples que não tem vergonha dessa mesma natureza, a ser vociferada tão alto. Um grito completamente honesto. Um berro dilacerante que faz um kebab de todos os planos de existência. Tudo através de close-ups de Léa Seydoux, uma atriz que já em 2021 (no filme France, de Bruno Dumont) nos tinha provado que é a única atriz viva que consegue evocar o profundo horror de Goya no seu rosto. Embora se perceba que esta sobre-sinceridade e sobre-elementarização temática possa para muitos parecer ridícula, não é esse o coração em chamas do romantismo?
Vasco Muralha
- *Conseguir-se-ia criar uma analogia desta abordagem com uma das minhas frases favoritas de Camilo Castelo Branco, oriunda do Amor de Perdição: “Um ano de convento é um ótimo vomitório do coração. Não há nada como isso para limpar o sarro do vício em corações de meninas criadas à discrição.” – O cintilante vómito extraído do coração pela sua restrição conventual. ↩︎