No fim de Following The Sound, de Kyoshi Sugita, uma personagem abraça outra. É um grande plano. A câmara prolonga-se na cara da personagem abraçada, que carrega na sua mudança progressiva todo o peso do filme. No entanto, a forma como Sugita chega aqui é através de uma abordagem rara e extraordinária.
Não há dúvidas ao ver o filme – ou pelo menos não devia haver – que se trata de uma abordagem absolutamente radical. Se o espectador não vê isto, é porque ainda nos encontramos no dilema, já resolvido por Nietzsche no século XIX (it is easier to be titanic than to be beautiful; we know that.… – Nietzsche em O Caso Wagner), que o melhor é aquilo que é maior, mais difícil, mais complexo*1. Ou de uma forma mais destilada, que o que é mais complexo a um nível concreto (tanto a narrativa como a forma), é o mais complexo e de maior valor enquanto obra.
Não só já é erróneo pensar que o mais complexo é o mais profundo, como também isto se trata de uma visão superficial da complexidade. O mais complexo nem sempre é o mais barroco, pensemos nos livros tardios de Marguerite Duras em que há um despojamento tão profundo do seu texto até chegar a um desconcertante minimalismo, que apenas conseguiria existir como produto de um árduo trabalho de depuração, e que no seu propositado e assombroso simplismo se torna ainda mais difícil de ler do que a mais púrpura prosa.
Já tentei estabelecer por analogia que este filme é de uma lindíssima simplicidade complexa que não deve ser desprezada (tal como a simplicidade não complexa também não deve ser!), mas dentro deste registo, o que a torna tão radical? O seu explosivo gesto em oposição é o da valorização da filmagem das superfícies. No cinema, por regra geral, a câmara está de fora das pessoas. A linguagem cinematográfica evoluiu desde muito cedo de forma a que o filme conseguisse “entrar” nas pessoas; seja isto pelo acesso direto à sua interioridade (narração), pela câmara que vê pelos seus olhos (plano subjetivo), ou até pela infestação do mundo em volta das personagens pela interioridade das mesmas que o habitam (o cenário subjetivo de um melodrama, por exemplo). Numa linguagem fluida e não estanque, filmes da maior diversidade partilham estes métodos. O filme de Sugita quase que os rejeita. “Rejeita” pode não ser a palavra certa, não há nada de assumidamente provocador, o filme não os rejeita como uma declaração artística. Mas o organicamente chegar a este ponto sem uma atitude de polemista, torna-o ainda mais especial (e realmente radical).
O cineasta cria um filme em que o espectador, tal como a câmara, está de fora, mas mesmo assim sente. É uma narrativa que nos é mostrada, mas não nos é dada. Não temos acesso a tudo tal como a câmara não o tem. Tal como na vida não o temos. Mas por ser acima de tudo uma narrativa real (independentemente do nosso acesso) que prioriza as suas personagens, emoções e gestos – na vida real alguma vez nos paramos de emocionar se o que nos emociona não verbaliza a sua interioridade? – é dos filmes com um foco no gesto não psicologizado (mas não sem psicologia), mais comoventes que vi nos últimos tempos.
Chego a lembrar-me de uma frase de Cristina Fernandes numa discussão acerca do Pedro Costa: “Neste momento só consigo rebater o último: prefiro não colocar nada de mim nas obras e ver apenas os outros e os seus sentimentos. Aliás, gosto de fazer na sala de cinema o mesmo que faço no metro ou no autocarro ou no supermercado: ver os outros, ver como se movem ou falam, apanhar-lhes um sorriso, a irritação, ou um gesto qualquer banal. Nem sei explicar isto, mas gosto cada vez mais de olhar para os outros — parecem-me sempre muito bonitos e muito interessantes. Depois, de facto, surgem em mim sentimentos, mas seguem outros caminhos.”. Following the Sound é um filme que não é naturalista, nem necessariamente realista. Mas é absolutamente radical, e absolutamente real.
Vasco Muralha
- *e também se o mais simples fosse o mais fácil… ↩︎